Um vira-lata maravilhoso e um assombro

Blogueiro convidado: Robert Kirby

Como um cachorro ensinou a um missionário um novo truque.

Obrigado, Élder Solavanco, por ser um vira-lata maravilhoso e um assombro

O melhor companheiro de missão que tive foi esse sujeito. Não o da esquerda, nosso líder de distrito, Brent Merrell, de Vernal.

Quero dizer o outro sujeito. Calça vermelha. Língua comprida. Aqui ele está dando a Merrel as boas-vindas ao distrito San José de Carrasco, da Missão Uruguai-Paraguai, em 1975.

Pois é, eu sei, é um cahorro. Mas ele também foi chamado para ser um servo do Senhor.

Por mim.

Ao contrário das crenças populares pós-missão, minha missão não foi os dois melhores anos da minha vida. Na verdade, os primeiros 18 meses com certeza foram os piores. Culpa minha. Desperdicei todo aquele tempo tentando ser alguém que eu não era.
Seis meses antes do final, o presidente de missão decidiu que eu precisava de um tempo para mim. Fui mandado para uma pequena, desconhecida cidade litorânea a leste de Montevidéu, no Rio da Prata. O outro único missionário num raio de quilômetros era meu companheiro júnior, Carl English, de Nova Jersey.

O trabalho missionário em San José era duro. Além de boa parte da população não ser permanente, ninguém queria ser interrompido na praia para conversar com uma dupla de babacas andando de bicicleta.

Eu entendia perfeitamente. Batíamos nas portas para perguntar se as pessoas estavam interessadas em nós. Se não estivessem, não estávamos interessados nelas e íamos embora. Esse era o único contato que elas tinham com mórmons até que a próxima dupla de missionários chegasse e fizesse a mesma coisa.

Era sem sentido. Para as pessoas de San José, éramos apenas norte-americanos altos, ricos, loiros, que vinham encher o saco sobre o evangelho. Eles não gostavam disso e não gostavam de nós.

Eles nos informavam a respeito batendo a porta na nossa cara. Era apenas chato de início, mas então ficou realmente entendiante.

Um dia, na rua, um cachorro marrom faminto veio até nós. Fiz um carinho na cabeça dele e ele nos seguiu até em casa. Estava coberto de machucados e carrapatos, e morrendo de fome. Dei algo para ele comer.

Quando abri a porta na manhã seguinte, o cachorro estava dormindo do lado das nossas bicicletas. Deixei ele entrar, o limpei e dei a ele um nome. Uma semana depois ele estava dormindo na minha cama.

O Solavanco não deixava a desejar. Ele nos seguia a todo lugar, às vezes correndo junto conosco por 10 km ou mais. Ele logo entendeu que sempre voltávamos para as bicicletas e ficava de guarda até nosso retorno.

Ele era um ótimo guarda-costas. English e eu não fomos mordidos por outros cães, atacados por vacas ou roubados naqueles últimos seis meses da minha missão.

Um dia, sem nada para fazer, coloquei um shorts no Solavanco. E uma camisa branca. E uma gravata. E uma plaqueta. Ele ficou ótimo.

English não se entusiasmou muito para trabalhar ao lado do o novo élder, mas era uma oportunidade boa demais para que um sujeito como eu deixasse passar. Disse a ele que o Espírito Santo havia me inspirado. Ele não conseguiu provar que não.

Era ótimo. Batíamos nas portas. As pessoas abriam a porta e paravam tão de repente que era possível ler seus pensamentos: “Putz, que maravilha, são os %&*@ dos mórmons de novo. Opa… Um deles é um cachorro”.

Eu podia falar com elas o tempo que quisesse. Elas sabiam que algo não estava certo mas não queria parecer burras apontando isso. Esperavam que eu explicasse, o que eu nunca fazia.

Se você tivesse que ficar grudado em outro missionário cada minuto do seu dia — como eu tinha — seria impossível achar alguém melhor do que o Solavanco. Ele era agradável, nunca falava muito e estava totalmente comprometido com o trabalho, sem ser um arrogante insuportável.

Nem todos estavam felizes com isso. Nosso líder de distrito apareceu no apartamento. Vestir um cachorro como um missionário dava às pessoas a ideia errada sobre o evangelho restaurado.

Um vigoroso debate teológico se seguiu. Ele citou regras da missão como sua autoridade para banir o cachorro. Quando rebati com a possibilidade de um de nós ser seriamente machucado no serviço do Senhor, ele foi embora soltando fumaça.

Reclamações sobre o élder cachorro chegaram até o presidente de missão, que era verdadeiramente inspirado. Quando o líder de distrito foi transferido algumas semanas depois, eu tomei como um sinal.

Solavanco ficou.

Mesmo assim, tivemos que desobrigar o cachorro como missionário de tempo integral no final das contas. Depois da terceira ou quarta briga com um gato, English não podia mais deixar Solavanco vestir suas camisas. Reduzimos então a indumentária do cachorro missionário a apenas uma gravata.

Ainda que não tenhamos batizado ninguém por causa do Solavanco, conseguimos ganhar alguns poucos “conversos.” Graças a ele, o povo de San José parou de nos xingar. Quando ouviam que estávamos na vizinhança, saiam e conversavam conosco. Fizemos amigos.

Não era difícil entender o porquê. Paramos de ser o estereótipo que eles pensavam que éramos. Tínhamos ficado talvez insanos, mas agora pelo menos éramos interessantes.

À medida que o tempo corria, eu lutava sobre o que fazer com o Solavanco. Escrevi aos meus pais. Meu pai viu que o preço para enviar um cachorro de 23 kilos era astronômico.

Me convenci de que o Solavanco odiaria o quintal pequeno dos meus pais em Salt Lake. Assim como eu, odiaria ser forçado a se tornar algo que não era. Ele não havia nascido para viver numa varanda.

Meu companheiro prometeu tomar conta do Solavanco até a sua própria eventual transferência. Depois disso, seria por conta dos outros missionários e mórmons locais.
English caminhou comigo até a estrada naquele último dia. Havíamos trancado o Solavanco no apartamento. Uma quadra de distância e ainda conseguíamos ouvi-lo destruindo o lugar, tentando sair. Uma das coisas mais difícieis que eu já fiz foi continuar andando.

Eu ainda penso muito nele. Na minha cabeça, o Solavanco está sempre correndo na praia, gravata e língua contra o vento.

Às vezes, a única coisa que se pode mudar nas pessoas é maneira como veem você. Nesse sentido, Solavanco é ainda capaz de pegar as pessoas desprevenidas, incluindo eu.
No mês passado, a Biblioteca de História da Igreja SUD adquiriu a foto dos missionários Merrell e Solavanco. Eles queriam tê-la no acervo. Enviaram um formulário para preencher dizendo onde e quando havia sido tirada.

Numa caixa na minha sala, há uma gravata velha. Imunda e se desfazendo em duas, graças a uma cerca de arame farpado, há décadas ela me faz lembrar da importância de ser eu mesmo, apesar dos riscos.

Robert Kirby escreve para o jornal The Salt Lake Tribune. O presente texto, publicado originalmente na sua coluna, foi traduzido aqui com a permissão do autor.

Tradução de Antônio Trevisan Teixeira.

Kirby pode ser contatado pelo e-mail rkirby@sltrib.com ou na página facebook.com/stillnotpatbagley.

15 comentários sobre “Um vira-lata maravilhoso e um assombro

  1. Linda história, excelente artigo! O Robert Kirby é realmente fora de série.

    Me entristece nunca ter tido um companheiro de missão como o Élder Solavanco. Me entristece não ter sido o tipo de missionário que teria um companheiro de missão como o Élder Solavanco!

  2. Que ótimo! Enquanto reconheço a importância do uniforme missionário, também vejo o valor de temperar a rigidez da vestida. Sem algo como o Élder Solavanco, ficamos só a variar as gravatas….

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