Permanecer em lugares santos: reflexões sobre a questão antropológica do “nós” e dos “outros” no contexto SUD.

Neste ano, o tema da mutual dos jovens para 2013 é “Permanecer em lugares santos”. De acordo com Monica Lunardelli (2012), “as presidências gerais dos rapazes e das moças esperam que o tema e os recursos a ele relacionados ajudem os jovens a focar no trabalho do templo, viver os padrões e seguir o exemplo de Cristo”.

Este tema faz referência à escritura Doutrinas & Convênios 87: 8. Esta passagem está no contexto de uma revelação dada a Joseph Smith no natal de 1832. Haveria um período de guerra e, desta forma, muitas calamidades surgiriam na Terra. Para que os santos[1] não sejam desvirtuados do caminho do Senhor, eles devem permanecer em lugares santos.

O atual presidente da Igreja, Thomas S. Monson, busca explicar esta questão em um discurso da Conferência Geral de outubro de 2011. De acordo com Monson, haveria uma analogia entre a diversificação da moral (e dos “bons costumes”) e a guerra citada na escritura acima. Diante de um discurso onde afirma que “sabemos que a moralidade não é coisa ultrapassada” porque “as leis de Deus permanecem constantes” (Monson: 2011), um discurso moralizante, nos é posto a ideia de que devemos “estar no mundo, mas não ser do mundo”, ou seja, que como santos dos últimos dias, nós devemos nos distinguir das demais pessoas por termos uma “moral mais elevada”.

Como sociólogo, costumo questionar e não aceitar passivamente tudo que vem da liderança da Igreja. Quando vi este tema começar a ser divulgado nos perfis de jovens que tenho no Facebook e de alguns líderes (da primária, principalmente) eu me assustei. Pensei comigo, “permanecer em lugares santos” é aquilo que Jesus faria?

Ao menos em relação as pessoas próximas a mim, este tema da mutual está sendo usando para diferenciar algo que nas Ciências Sociais é chamado de “nós e os outros” ou então, se utilizarmos a terminologia do sociólogo Norbert Elias, entre “os estabelecidos e os outsiders”. O que eu quero dizer com isso? Este tema vem sendo utilizado para diferenciar o outro enquanto uma ameaça a nós. Os outros, os outsiders, que não possuem nossos hábitos, nossos costumes estão se aproximando de nós e ameaçam a nossa estabilidade no meio social no qual convivemos.

Vamos tentar compreender esta discussão teórica na prática.

Meses após eu me batizar em 2010 um missionário retornou a ala na qual eu frequento. Contudo, ele não continuou a frequentar as reuniões sacramentais ou a quaisquer outras reuniões. Certa vez um membro antigo do M.A.S.[2] chegou próximo a mim enquanto eu recolhia os hinários após a sacramental e comentou que aquele missionário retornado tinha-lhe respondido um SMS dizendo que não participaria de nenhuma atividade de integração do M.A.S. porque estaria cansado de tanta hipocrisia. Ao me mostrar a mensagem comentou: acho que ele é homossexual.

Pedi então seu contato para tentar conversar com ele, mas foi-me recusado. Depois como secretário do quórum dos élderes tentei inúmeras vezes fazer com que fizessem uma visita de mestre familiar a ele, mas sempre me respondiam: “o caso dele é complicado, vamos deixar pra depois” – e o depois nunca chegou.

A impressão que eu tive fora que seria preferível a não convivência com um missionário retornado gay, pois, talvez, isso poderia “contaminar” os demais jovens que estão prestes a servir uma missão.

Para confirmar minha hipótese, comecei a postar em meu perfil do Facebook alguns vídeos e fotografias de apoio ao casamento entre casais não-heterossexuais. Postei, também, algumas críticas em relação à homofobia e à intolerância religiosa encontradas na literatura das Ciências Sociais e da Filosofia como citação. Qual fora o resultado? Pessoas que sempre sorriam para mim passaram a não mais olhar para o meu rosto nos corredores da capela. Mesmo a visita dos missionários não aconteceram mais após isto.

Isto fora em dezembro de 2011. Na ocasião, em nossos encontros de Natal, foi-nos exibido o filme da Igreja chamado Encontrar a Fé em Cristo. Neste filme, é-nos relembrado a vida de Cristo como forma de fortalecimento da fé de um personagem que está em dúvidas. Por que eu cito este filme? É porque nele está mostrado de forma bastante clara o que está nos evangelhos: Jesus Cristo vivia entre a escória da sociedade de seu tempo. Ou seja, dentro daquele contexto histórico-cultural, Cristo vivia com aqueles que eram renegados pela sociedade: cegos, leprosos, prostitutas, etc.

Numa das aulas finais para os membros novos que eu resolvi assistir o missionário disse sobre a homossexualidade: “não devemos tolerar”. Em seguida lhe escrevi uma carta questionando a sua fala em relação ao filme que ele mesmo tinha exibido para nós no dia do encontro. Questionei-lhe: “por que não devemos tolerar alguém que em nosso atual contexto histórico-cultural não é bem visto se o exemplo de Cristo foi tolerar quem não era bem visto no contexto histórico-cultural dele?”.

Não obtive resposta. E penso que não obteria uma resposta plausível de nenhum membro que simplesmente aceita tudo que lê e ouve dentro da Igreja sem se quer tentar contextualizar o discurso em sua história e cultura.

Dei um exemplo que me foi vivenciado, mas esta relação entre o nós e os outros, ou, entre os estabelecidos e os outsiders pode ser encontrado a qualquer relação entre nós, membros SUD e os outros, não-SUD. Seja uma menina que usa uma saia “curta demais”, um rapaz de 12 anos que está no auge do período de experimentar a masturbação como auto-descoberta, seja a moça que quer namorar com 15 anos, seja o jovem que já passa dos 30 anos e ainda não está casado (quase o meu caso), a mulher que se separou, etc.

Por que este tema da mutual vem me preocupando?

Observo que este tema está servindo para que sejam reforçados estas diferenças e, desta forma, aumentar a intolerância para com o outro. Preocupo-me com certas interpretações moralizantes que perpassam o imaginário religioso (e mórmon em particular) que são utilizados para julgar e condenar determinados agrupamentos sociais.

Questiono-me: se devemos seguir os exemplos de Cristo, por que não devemos estar em lugares não-santos e, desta forma, estar próximo de quem precisa da palavra de Cristo? Não era isto que Cristo fazia? Por que devo “me fechar” em lugares santos e só conviver com membros da Igreja? Afinal, na prática, é isto o que acontece.

Estas são algumas questões que me vêm a cabeça quando penso neste tema “permanecer em lugares santos”. Neste momento, enquanto sociólogo, sem uma pesquisa séria feita, não poderia afirmar nada categoricamente. Só posso mesmo levantar estes questionamentos e hipóteses que levantei neste texto. Escrevo este último parágrafo para deixar esta questão bastante clara aos leitores.


Referências bibliográficas

LUNARDELLI, Monica. Tema da mutual para 2013 e recursos anunciados. In: A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias:notícias e acontecimentos da Igreja. 20 de outubro de 2012. Conteúdo onlinehttp://www.lds.org/church/news/2013-mutual-theme-announced?lang=por, acessado em 18 de janeiro de 2013.

MONSON, Thomas S. Permanecer em lugares santos. In: Confêrencia Geral de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Salt Lake City, Outubro de 2011. Conteúdo onlinehttps://www.lds.org/general-conference/sessions/2011/10?lang=por, acessado em 18 de janeiro de 2013.


Texto convertido para de autoria anônima a pedido do autor em 10/1/2020.

NOTAS

[1] Santos, no contexto do mormonismo, se refere aos membros de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.
[2] M.A.S.: membros adultos solteiros; uma organização para jovens solteiros de idade entre 18 e 30 anos da Igreja.

27 comentários sobre “Permanecer em lugares santos: reflexões sobre a questão antropológica do “nós” e dos “outros” no contexto SUD.

  1. Olá jonipinto.

    Eu nunca havia pensando a questão do “permanecer em lugares santos” da maneira como você colocou em sua reflexão.

    Achei muito interessante quando você aponta o exemplo da vida de Jesus Cristo, porque ele viveu entre os que eram considerados a “escória” da sociedade daquela época. Não só conviveu com estas pessoas como também procurou ajudá-las e resgatá-las.

    Particularmente acredito que a prática da tolerância e de aceitar a diferença do “outro” ainda é algo que falta a muitos de nós membros da IJCSUD. Acredito que sua relfexão acima é uma iniciativa no sentido de contribuir no processo de ajudar os membros SUD a exercitarem a tolerância e a aceitação àqueles que são “diferentes” do contexto social dos SUD.

    Um abraço.

  2. Acho que concordar ou não com os profetas da igreja não é exatamente a questão. Pois desde Joseph Smith ter revelado e trazido a luz o evangelho “restaurado” não existe uma única novidade que outro profeta tenha revelado. Parece, que o que nos sobrou é seguir o evangelho e nada mais. Todos discursos, conferências e publicações não trazem nada de novo! São válidos mas são apenas interpretações de leitores e estudantes do evangelho o que todos nós somos. Por isso, e digo! O importante é seguir o evangelho de “Cristo” pois eu posso ler as escrituras e compreende-las e para o estudante e praticante! Não será necessário nada mais… Pessoas acreditam que precisam serem conduzidas por outros é verdade talvez no princípio seja assim. Mas, o que te impede de estudar e receber luz e conhecimento através da revelação pessoal? Nada te impede. Ninguém está me conduzindo a lugar algum! Porque o lugar onde pretendo chegar, existe apenas três que podem guiar-me 1) O pai, 2) O filho 3) O Espirito Santo. Para mim todos são iguais com funções diferentes! Os profetas conduzem os que precisam serem conduzidos e esperam que os que aprendem utilizem o dom da revelação pessoal para se guiar. Não foi isso que Joseph Smith ensinou? -”Ensino-lhes princípios verdadeiros, e eles guiam a sí mesmos!”. Quem pode negar esta verdade?

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