Outro Tijolo na Parede

Alguns meses atrás, notei que uma moça que eu há pouco conhecera ouvia o que me pareceu ser um hino da Primária. Foi o suficiente para o tema mormonismo entrar na conversa e eu descobrir que se tratava de um membro da Igreja. Ela me contou sua história mórmon, e conversamos sobre vários aspectos da cultura SUD.

Uma das falas que chamaram a minha atenção foi sua abordagem sobre testemunho. Afirmou que, em se tratando de testemunho, ela se viu muitas vezes como as personagens de um determinado episódio do Chapolim Colorado.

O episódio a que ela se referia fazia alusão ao conto A Nova Roupa do Imperador, do dinamarquês Hans Christian Andersen. Nessa estória, dois vigaristas chegaram a uma localidade e afirmaram ser tecelões capazes de confeccionar uma roupa especial, que possuía “a maravilhosa capacidade de ser invisível a qualquer pessoa que não tivesse preparada para o cargo que ocupava ou fosse imperdoavelmente tola”.

Assim como as personagens do conto, para não parecer pouco inteligente (ou quem sabe, inapta para um cargo), a moça com quem eu conversei me confessou que em vários momentos forçara uma certeza inabalável da veracidade do mormonismo para não se sentir diferente e inferior aos demais membros com quem ela convivia.

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Aquela conversa imediatamente me transportou para uma outra experiência de anos anteriores, quando confessei para um amigo da Igreja que eu tinha certa dificuldade em acreditar literalmente em certas passagens bíblicas como a estória da Arca de Noé, Adão e Eva, etc.

Lembro-me de ele olhar para mim espantado e afirmar: “Cara, eu pensava que era só eu que tinha isso”. Investigando mais e mais, descobri que não éramos só ele e eu que “tínhamos isso”. E por que essa dúvida não era exposta? Por qual motivo as opiniões na Igreja pareciam ser uma só?

Espiral do silêncio

Espiral do Silêncio é uma teoria proposta nos anos 70 pela cientista política alemã Elisabeth Noelle-Neumann. Segundo ela, por medo do isolamento social, tendemos a omitir nossas opiniões publicamente quando sentimos que elas vão de encontro ao pensamento dominante em determinado grupo. Como não expomos a opinião, criamos a impressão de que compactuamos com o pensamento dominante. A não verbalização de nossa voz contribui para que outros discordantes do pensamento majoritário também se calem, perpetuando o silêncio.

Aquele conceito pareceu se encaixar perfeitamente no que acontecia comigo.

Nos últimos 20 anos, coube à internet ser o meio pelo qual vozes mórmons diferentes da dominante se expressassem; porém, por muito tempo, predominou a dicotomia mórmons versus anti-mórmons.

Com uma proposta diferenciada, a ABEM surgiu para promover a superação desse desnecessário e infantil maniqueísmo. Através deste site, que não por acaso recebe o nome de Vozes Mórmons, opiniões que o ambiente devocional reprimiria segundo a Teoria da Espiral do Silêncio puderam ser emitidas. Assuntos pouco comentados e visões não sanificadas rapidamente causaram estranheza para muitos.

Acostumados ao silêncio dos crentes, nossos correligionários logo se espantaram com o tipo de abordagem aqui apresentada. O Vozes Mórmons não tardou a ser caracterizado como anti-mórmon, apóstata. Campanhas e textos contra o site começaram a circular na rede.

“Não leiam este site, procurem informações nos sites oficiais da Igreja.”

Incrivelmente, as palavras acima continuam entre as mais usadas na alerta contra o Vozes Mórmons. Tal como o catolicismo da “longa noite da apostasia”, mórmons parecem querer fazer uma nova versão do Index Librorum Prohibitorum. Inquisição não foi só coisa de católico, Talmage bem que poderia ter pegado mais leve.

Dois anos depois da publicação do livro de Elisabeth Noelle-Neumann, o saudoso Rubem Alves lançava o seu clássico Protestantismo e Repressão [1], de 1979, no qual apontou como aquele grito reprimido de liberdade, que marcou o momento carismático fundador do protestantismo, rapidamente havia se arrefecido.

Refletindo sobre as interseções entre a religião em que fora criado e o catolicismo, no que tange aos pecados mais graves, ele escreve:

“A bondade importa menos que o pensar correto. Por isso os hereges são mais temidos que os de moral frouxa (…) Possuir a verdade é mais crucial que viver a verdade. Os pecados morais podem ser perdoados. Mas os pecados intelectuais, o crime de pensamento a que Orwell se refere em 1984, não têm perdão.” [2]

“Os hereges que as religiões queimam e matam não são assassinos, terroristas, ladrões,adúlteros, pedófilos, corruptos. Esses são pecados de um pássaro engaiolado que precisa ser curado pelo perdão e pelos sacramentos. Os hereges, ao contrário, são os pássaros que recusam as gaiolas de palavras que os prendem, que falam palavras proibidas. Para esses não há perdão.” [3]

Em se tratando de crianças, a introjeção de frases como “não fale com estranhos” e de uma visão de mundo não nuanceada, como estorinhas de mocinho e vilão, fazem sentido. Porém, sempre chega a hora de “deixar as coisas de menino”, como dizia Paulo.

Se assim não for, continuaremos em nossa tendência a querer fazer das crianças pessoas adultas, como quando queremos que elas fiquem quietinhas na sacramental e saibam que pertencem a única igreja verdadeira, e transformar nossos adultos em crianças, como quando censuramos parte da história da Igreja apontamos quem trabalha para o Lobo Mau.

O fato de aceitarmos esse tipo de policiamento, de aceitarmos que todas as informações e exegese têm de vir de fonte oficial é sintoma de que perdemos o hábito de pensar por nós mesmos. O que seria isso senão um tipo de escravidão? Até que ponto um mórmon é livre para pensar, para falar o que pensa?

Há quase cinco séculos, o então pós-adolescente Étienne de La Boétie, em seu celebrado Discurso da Servidão Voluntária, discorreu sobre cerceamento da liberdade causado pelo hábito da servidão.

(…) essa vontade obstinada de servir criou raízes tão profundas que se julgaria que o próprio amor à liberdade não é tão natural (…) E como dizem de Mitríades, que foi se acostumando aos poucos ao veneno, aprendemos a engolir sem achar amargo o veneno da servidão.

(…)Assim, a primeira razão da servidão voluntária é o hábito. É o que acontece com os cavalos mais briosos, que no início mordem o freio e depois brincam com ele, que há pouco escoiceavam assim que viam a sela e agora se apresentam sozinhos sob os arreios, e, vaidoso, pavoneiam-se debaixo da armadura. [4]

Vários membros da Igreja têm lido, curtido e compartilhado nossos textos. Entretanto, não poucas vezes temos observado outros membros criticando nossos leitores por terem compartilhado “tamanha apostasia”.

Controle e vigia mútuos sempre foram comuns em confissões religiosas minoritárias; agora vemos claramente isso no meio virtual. O panóptico de Jeremy Bentham, tornado mais famoso por Foucault, tem mostrado todo seu poder.

Religião é um fenômeno marcado pela ambiguidade. A mesma religião que amedronta com o inferno o adolescente que descobriu a masturbação também pode ser competente em enxugar as lágrimas daquele pai que acabou de perder um filho. Com base na religião se promove paz e se declara guerra. Em nosso país, agradeceu-se a Deus pela intervenção militar e foi também em nome Dele que muitos lutaram pela redemocratização.

O mesmo cânone que aplaude a intervenção de Jesus no apedrejamento da prostituta vê como modelar a morte de Ananias e Safira. O protestantismo que surgiu como baluarte da modernidade em vários momentos se mostrou tão contra a ciência e tão dogmático quanto os católicos a quem tanto criticaram. O mesmo mormonismo que têm articulado conferências de liberdade religiosa mundo afora também é capaz de ser intolerante.

Ao contrário do que muitos vaticinaram nos últimos séculos, a religião sobrevive até hoje – e sobrevive bem, obviamente com os ajustes que as condições da pós-modernidade lhe impuseram. Tendo em vista que, a despeito de todo avanço da liberdade, pensar por si mesmo continua sendo tabu em tradições religiosas como o mormonismo, cabe a nós a transgressão.

Transgressão aqui não no sentido da desobediência gratuita, de um rebelde sem causa, mas na rejeição de modelos antigos, pouco adequados ao atendimento dos problemas hodiernos.

Reconhecer que “nem tudo vai bem em Sião” foi leitimotiv para a transgressão de um jovem nazareno que bateu de frente com os líderes políticos e eclesiásticos de seu tempo, bem como a daquele rapaz da Nova Inglaterra que se dirigiu a um bosque no início da década de 1820.


NOTAS

[1] Acreditando que suas conclusões não se limitavam ao protestantismo, alterou o título para Religião e Repressão.
[2] ALVES, Rubem, Religião e Repressão, São Paulo: Loyola-Teológica (2005), p. 144
[3] Ibid., p. 10
[4] BOÉTIE, Étienne de La, Discurso da Servidão Voluntária, São Paulo: Martin Claret (2009), pp. 39-50

10 comentários sobre “Outro Tijolo na Parede

  1. Emanuel,

    Que ótimo texto e que ótima reflexão nos causa. Eu não escreveria tão bem (até porque não escrevo tão bem), algo que já vi, percebi e vivo.

    Atualmente, por exemplo, em momentos onde presto ‘testemunho’ só o faço daquilo que realmente é um testemunho para mim, alguma experiência realmente real (ainda não desmistificada) sobre o assunto. Parei de falar há muito tempo de coisas genéricas como “a igreja verdadeira, ‘santos’ profetas, obediência, etc.”, porque não as sinto como os demais parecem sentir.

    E é a mais pura verdade, falar daquilo que você realmente acredita ou não em meio a esse grupo deixa eles bem assustados, então, por um pouco de ‘bondade’ com alguns, omito certos detalhes até saber o ‘estrago’ que isso possa vir a causar.

    Também valorizo um espaço como o Vozes que permite liberdade de ouvir e falar de assuntos espinhosos para grupos fechados. De muitos grupos onde assuntos assim foram abordados, é um dos poucos onde permitem que você continue com suas crenças: não é um proselitismo para tirar você da Igreja, mas para melhorar você dentro da Igreja. Embora ‘crescer’ dói, para alguns, como eu, tem sido algo que faltava na minha vida.

    E Emanuel, conseguiste um fã. Se quiser me adicionar na tua página do Facebook, sinta-se a vontade para me convidar. Gosto de ter contato com pessoas com visões como a sua para trocar ideias de vez em quando.

    Forte abraço.

    PS.: Depois vem uns aqui reclamar dos textos, mas poucos vem aqui e escrevem algum artigo para a página dando seu ponto de vista sobre este ou aquele assunto.

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