40 Anos do Fim da Segregação Racial Mórmon

Celebramos hoje 40 anos desde o fim oficial do racismo institucional n’A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.

Spencer Woolley Kimball, 12o Presidente d’A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (30 Dezembro 1973 – 5 Novembro 1985), Presidente do Quórum dos Doze Apóstolos (1972-1973), Apóstolo (1943-1973)

Nessa data, há 40 anos, o Profeta Presidente da Igreja SUD Spencer Woolley Kimball anunciou publicamente que a Igreja não mais discriminaria contra negros e encerraria a política de proibir a ordenação de homens afrodescendentes ao sacerdócio, a sua inclusão em cargos de liderança, e a inclusão de homens, mulheres, e crianças negras nos cultos em seus templos sagrados.

Capa do jornal universitário The Universe da Universidade de Brigham Young (Provo, Utah) em edição extra no dia 9 de junho de 1978 anuncia acima de uma foto do Profeta-Presidente Spencer W Kimball: PRETOS RECEBEM SACERDÓCIO – Deus revela nova política a Profeta SUD

Introduzindo Segregação Racial (1852)

Se a data do fim oficial da segregação racial SUD, popularmente conhecida como “proibição ao sacerdócio”, está claramente marcada nos anais da história como 9 de junho de 1978, o seu início é um pouco mais convoluto. A data mais aceita entre historiadores é 23 de janeiro de 1852, quando Brigham Young anunciou à Assembléia Legislativa do Território de Utah que não apenas negros seriam banidos de inclusão no Sacerdócio e no Templo por herdarem a maldição de Caim, como deveriam continuar como escravos de seus superiores brancos:

“Eu tenho essa seção na minha mão, intitulada “Um Ato em Relação à Escravidão Africana.” Eu li sobre isso e fiz algumas alterações. Vou observar no que diz respeito à escravidão, na medida em que cremos na Bíblia, na medida em que nós acreditamos nas ordenanças de Deus, no sacerdócio e na ordem e nos decretos de Deus, devemos crer na escravidão. Esta raça negra têm sido sujeita a maldições severas, que eles têm em suas famílias e suas classes e nas suas diversas capacidades trazido sobre si mesmos. E até que a maldição seja removida por aquele que a colocou sobre eles, eles devem sofrer com as suas conseqüências; Eu não estou autorizado a removê-la. Eu sou um firme crente na escravidão.

(…)

O Africano goza do direito de receber os primeiros princípios do Evangelho; essa liberdade é oferecida a todos estes servos. Eles gozam da liberdade de ser batizado para a remissão dos pecados e receber o Espírito Santo pela imposição das mãos; eles desfrutam do privilégio de viver humildemente diante do Senhor, seu grande mestre, de modo a aproveitar o espírito do Senhor continuamente. Em suma, tanto quanto os confortos comuns da vida, salvação, luz, verdade, alegria e compreensão, o Africano Preto tem precisamente o mesmo privilégio que o homem branco. Mas eles não podem compartilhar no Sacerdócio; eles não podem reinar; eles não podem reinar em qualquer lugar até que a maldição seja removida deles; eles são um “servo dos servos.” Somos servos, como declarou o Conselheiro George Smith; ele diz que ele é um escravo; ele foi expulso de sua casa e de seus direitos – somos todos servos. Agora, suponha que nós tenhamos um servo, e ele deve ser um negro; está tudo certo; é perfeitamente razoável e estritamente de acordo com o Santo Sacerdócio. Eu detesto os abusos aos quais o escravo em muitos casos está exposto, embora como uma regra geral, essa parte da raça negra que está em servil cativeiro estão muito mais confortáveis e melhor cuidados do que as classes mais pobres das nações da Europa.

(…)

Quando o Senhor Deus amaldiçoou o velho Caim, Ele disse: “Até que a última gota de sangue de Abel receba o Sacerdócio, e goze das bênçãos do mesmo, Caim deverá portar a maldição”; depois, Caim é esperado receber a sua quota seguinte e não até então; conseqüentemente, eu sou firme na crença de que eles devem habitar em servidão.

(…)

Eu gostaria que mestres se comportassem bem com seus servos, e ver que cada pessoa neste território seja bem utilizada. Quando um mestre tem um Negro e usa-o bem, ele é muito melhor do que se ele estivera livre. Quanto aos mestres derrubá-los e chicoteá-los e quebrar os membros de seus servos, eu tenho uma opinião tão baixa disso quanto qualquer outra pessoa possa ter; mas boa servidão saudável, eu sei que não há nada melhor do que isso.”

Anunciado publicamente pela primeira vez para uma assembléia legislativa, e não para a Igreja, essa declaração de doutrina e política racial rompia com uma prática estabelecida pelo Profeta Joseph Smith de ordenar negros ao Sacerdócio.

Elijah Able (popular, e erroneamente, escrito como Abel) é o mais famoso, e provavelmente o primeiro, negro ordenado ao sacerdócio, recebendo o ofício de Élder em 1836 em Ohio, e servindo missões em Nova Iorque e Canadá, pertencendo ao Terceiro Quórum de Setentas, e até participando dos primeiros batismos pelos mortos em Nauvoo. Able emigrou com a Igreja para Utah, onde continuou servindo como Setenta até sua morte em 1884, meses após retornar de sua última missão de proselitismo.

Walker Lewis tem uma história pessoal ainda mais próxima ao centro da história da Igreja, e ainda mais trágica. Ele foi ordenado ao sacerdócio, no ofício de Élder, em 1843 na cidade de Nauvoo pelo irmão do Profeta Joseph Smith, o Patriarca William Smith. Lewis, que havia arriscado sua vida libertando escravos negros do Sul dos EUA, também emigrou para Utah junto com a Igreja, porém recebeu apenas ostracismo dos demais membros da Igreja lá por causa de seu casamento a uma mulher branca. Logo após sua chegada à Utah, Brigham Young não apenas ordenou a legalização de escravidão negra no Território de Utah, como passou e assinou uma lei que punia qualquer casamento interracial. Não satisfeito com leis seculares contra negros, Young anunciou do púlpito do Tabernáculo à Igreja em plena Conferência Geral que escravidão negra era uma instituição divina, e ainda em outro discurso que casamentos interraciais com negros deveriam ser punidos com a pena de morte.

“Veja que algumas classes da família humana são negras, rudes, feias, desagradáveis e de hábitos ruins, selvagens, e aparentemente desprovidos de quase todas as bençãos da inteligência que é doada à humanidade…. o Senhor colocou a marca em Caim, que é o nariz achatado e a pele negra. Rastreie a humanidade até o Dilúvio, e então outra maldição foi imposta à mesma raça — que eles seriam ‘servo dos servos’; e assim serão até que a maldição lhes seja removida.” — Brigham Young (Journal of Discourses 7:290)

Por décadas a Igreja SUD negou a ordenação de negros no século 19, insistindo que a discriminação (“proibição”) teria sido fruto de uma “revelação” desde a fundação da Igreja. Contudo, em 2013 a Igreja reconheceu pela primeira vez a existência histórica desses pioneiros negros, aceitando pela primeira vez o ano de 1852 como implementação da política, porém agora insistindo no argumento “nós não sabemos porque”, e em nenhum momento reconhecendo que o Profeta Young anunciou sua implementação em um contexto secular legalizando escravidão negra. A despeito desse reconhecimento parcial de um passado histórico conturbado, existe ainda muita hostilidade entre membros da Igreja contra aqueles que aceitam as evidências históricas – ou mesmo contra aqueles que citam a nova posição oficial da Igreja. Algumas publicações da Igreja seguem insistindo na origem divina dessa segregação racial.

Ensinando e Pregando Segregação Racial (1852 – 1978)

Enquanto a Igreja SUD mantinha uma clara posição de segregação racial e racismo institucional contra afrodescendentes, o filho mais velho do Profeta Joseph Smith, Joseph III, anotou e apresentou revelação autorizando a ordenação de negros ao sacerdócio em maio de 1865.

Durante 126 anos, a Igreja SUD abraçou ensinamentos racistas que proibiam relacionamentos e casamentos interraciais (como a Primeira Presidência em 1947, o Apóstolo Joseph Fielding Smith em 1954, o Apóstolo Mark Petersen em 1954, a Primeira Presidência em 1969, e até o próprio Profeta Spencer Kimball em 1976, entre outros), ensinavam que negros eram intelectualmente e/ou espiritualmente inferiores (como o Profeta John Taylor em 1881, o Profeta Joseph F. Smith em 1892,  o Setenta Brigham Roberts e o Manual dos Setenta em 1907, o Apóstolo Joseph Fielding Smith em 1954, o Apóstolo Mark Petersen em 1954, entre outros), ou mesmo representantes do “Diabo” ou de “Satanás” na Terra (como o Profeta John Taylor em 1881, e o Apóstolo Joseph Fielding Smith em 1954). O Apóstolo Ezra Taft Benson chegou a denunciar o movimento por direitos civis para negros e Martin Luther King Jr como uma “[a]meaça satânica para a paz, a liberdade e a obra de Deus”. Negros SUD eram proibidos de entrar no Templo. Negros SUD eram proibidos de se casar na cerimônia mais sagrada do mormonismo. Negros SUD eram proibidos de exercer chamados de liderança na Igreja.

“E depois do Dilúvio sabemos que a maldição pronunciada sobre Caim continuou-se através da esposa de Cão, pois este casou-se com uma mulher daquela linhagem. E por que passou-se a maldição adiante depois do Dilúvio? Porque era necessário que o Diabo tivese um representante na Terra, assim como Deus.” — John Taylor (Journal of Discourses 22:304)

Contudo, nem toda liderança compactuava com esse racismo institucional. Apóstolo e Primeiro Conselheiro na Primeira Presidência Hugh B Brown lutou por anos para convencer os demais Apóstolos a abandonar essa política racista. Em 1969, Brown aproveitou-se de moribundos e senis David McKay e Joseph Fielding Smith para assumir uma posição proativa e agressiva para pressionar os Apóstolos a suspender a “proibição”. Brown conseguiu a aprovação de 10 dos Apóstolos, porém com o retorno de Harold Lee de viagem, o então Presidente do Quórum dos Doze Apóstolos rapidamente reverteu a situação em favor da manutenção do status quo. Assim descreveu o historiador mórmon D Michael Quinn¹:

Em novembro de 1969, [o Primeiro Conselheiro na Primeira Presidência Hugh B.] Brown pressionou a Universidade de Stanford a adiar a decisão de boicotar a BYU. Na véspera do anúncio de Stanford, Brown disse ao vice-presidente da universidade que esperava que a igreja abandonasse essa restrição. Pouco depois da decisão de Stanford, Brown “conseguiu que uma proposta que permitiria o sacerdócio completo aos negros fosse aprovada pelo Quórum dos Doze Apóstolos.” Com o presidente da igreja David O. McKay incapacitado, o caminho agora estava aberto para os dois conselheiros e o Quórum dos Doze emitirem uma declaração conjunta concedendo o sacerdócio aos de ascendência negra africana. O segundo conselheiro N. Eldon Tanner confidenciou ao presidente da BYU Ernest Wilkinson em 3 de dezembro de 1969 que “um comitê especial deveria informar sobre a situação dos negros”. Wilkinson rotulou seu memorando da conversa como “ULTRA CONFIDENCIAL”. O apóstolo Harold B. Lee, um membro cada vez mais poderoso dos Doze, estava ausente durante a decisão do quórum e rejeitou-a após o seu regresso. Lee não apenas se opunha a dar o sacerdócio aos negros, ele também considerava “a crença tradicional como revelada no Antigo Testamento de que as raças deveriam ser mantidas juntas”.

Lee convenceu o Quórum dos Doze a rescindir seu voto. Então ele pressionou o primeiro conselheiro a assinar uma declaração que reafirmava a restrição do sacerdócio aos negros “em vista da confusão que surgiu”. O neto de Brown relata como o primeiro conselheiro entregou suas mais profundas convicções profundamente ao apóstolo Lee:

“Meu avô conseguiu adicionar linguagem à declaração do Élder Lee endossando plenos direitos civis para todos os cidadãos, mas ele ainda resistiu em assinar a declaração. No entanto, ele sofria de idade avançada e os estágios finais da doença de Parkinson e estava doente com a gripe asiática. Com o meu avô nessa condição, o Élder Lee exerceu uma tremenda pressão sobre ele, argumentando que, com o Presidente McKay incapacitado, o meu avô era obrigado a se unir ao consenso do Quórum dos Doze. Meu avô, profundamente doente, chorou ao relatar essa história para mim pouco antes de assinar a declaração que trazia os nomes dele e do Presidente Tanner.”

A reafirmação de Lee da restrição foi um esforço colaborativo envolvendo Neal A. Maxwell, Gordon B. Hinckley e G. Homer Durham. A este documento produzido em comitê, Brown fez seu acréscimo que endossou direitos civis [aos negros]. Com data de 15 de dezembro de 1969, esse documento extraordinariamente importante da Primeira Presidência foi assinado apenas pelos dois conselheiros.

Brown não aceitou graciosamente a derrota de seu esforço para reverter a proibição da igreja contra os afro-americanos. Menos de uma semana depois de ter relutantemente assinado a declaração de Lee, Brown disse a um repórter de um jornal em São Francisco que a proibição ao sacerdócio contra os negros da Igreja “mudará num futuro não muito distante”. Conhecido por “seu temperamento intempestivo”, Lee explodiu em privado em 27 de dezembro, dizendo que Brown estava “falando demais”.

O biógrafo de Lee observa que “porque anúncios enganosos na mídia causaram muita confusão durante as festas de Natal de 1969, a declaração, que antes havia sido distribuída aos líderes da Igreja em missões, estacas e alas, foi divulgada em todo o país. Os Santos dos Últimos Dias leram no Church News, no sábado, 10 de janeiro de 1970.” O mais recente “anúncio enganoso” foi uma afirmação publicada de que Harold B. Lee fora responsável pela declaração da Presidência. Brown provavelmente também foi a fonte disso. Inconsciente de todas essas discussões devido à sua incapacidade mental, o Presidente McKay morreu uma semana após a publicação da declaração.

Não surpreendentemente, não houve mudança nessa política de restrição ao sacerdócio durante as presidências dos dois sucessores de McKay. Lee foi o primeiro conselheiro do sucessor imediato de McKay, Joseph Fielding Smith, e Lee definia a agenda administrativa. Quando perguntado sobre a restrição ao sacerdócio contra os negros no dia em que se tornou presidente da Igreja, em 1972, Harold B. Lee anunciou que “pretendia aguardar e esperar até que o Senhor falasse”. Essa passividade não resultou em revelação, e o apoio de Lee à segregação racial não o predispusou a buscar ativamente tal revelação.

As tentativas de Brown não passaram incólume e sem retaliações. O historiador mórmon Gary James Bergera explicou o quanto sua ardente campanha para encerrar a segregação racial na Igreja SUD influenciaram na decisão de Joseph Fielding Smith e Harold B Lee para removê-lo da Primeira Presidência²:

“Enquanto a idade e a saúde de [Hugh B.] Brown desempenharam um papel na decisão de Joseph Fielding Smith de não reter [Brown] na Primeira Presidência, Edwin B. Firmage acreditava que a “posição de Brown sobre os negros e o sacerdócio … levou à sua remoção da nova presidência”. A questão era menos a discórdia privada de Brown com a política do sacerdócio e mais sua incapacidade, ou falta de vontade, para apoiar de forma pública e inequívoca o consenso dos Doze. Talvez uma preocupação semelhante, se não maior, para Smith e Harold B. Lee, no entanto, foi a oposição de Brown à sucessão de Smith à presidência da Igreja. Além da alfinetada das queixas de Brown, Smith e Lee teriam questionado a lealdade de Brown. Smith talvez tenha simplesmente concluído que não queria lançar uma presidência com um conselheiro possivelmente menos do que totalmente solidário.”

(…)

“Em privado, contudo, ele estava desapontado. Logo após uma longa conversa com seu tio [o Apóstolo N. Eldon Tanner] imediatamente após [o rebaixamento], Tanner anotou: ‘Eu tenho certeza que deve ser difícil se ajustar após pertencer à Primeira Presidência’. ‘Não há dúvidas de que houve um impacto emocional negativo’, notou o biógrafo de Brown. A própria ‘idade avançada [de Fielding Smith] tornava impossível para que ele assumisse uma carga administrativa significante’ e portanto ele ‘delegava amplamente a seus conselheiros desde o primeiro dia’, notou [o historiador] Gibbons. Mesmo assim, Brown sentia-se ferido pela omissão de cortesias cerimoniais. Quando sua desobrigação foi anunciada, ‘nenhuma menção foi feita de seus sete anos de dedicado serviço à Primeira Presidência’, notaram seu biógrafos, ‘e tampouco houve expressão de apreciação por suas muitas contribuições feitas à Igreja. Aparentemente, na ansiedade de inaugurar uma nova Primeira Presidência, o valoroso serviço do Presidente Brown havia sido temporariamente esquecido.’

Outras humilhações ainda viriam. Brown foi surpreendido pela descoberta em fevereiro de 1970 que ele havia ‘resignado’ de seus cargos em empresas filiadas à Igreja. ‘Um de meus maiores desapontamentos na vida’, confessou Brown, fora a omissão de seu nome numa lista de convidados para a primeira Conferência de Área da Igreja a ser realizada na Inglaterra em 1971. ‘Teria sido um grande conforto para mim retornar à cena de minha primeira missão em 1904 durante os primeiros dias quando tive tamanha experiência excepcional em Cambridge’, ponderou em seu diário, porém recusando-se a indulgência em auto-piedade. ‘Não importa quão duro trabalhemos ou quais sacrifícios façamos, sempre estaremos sujeitos a desapontamentos, mágoas, e até desesperos. Mas estou superando o sentimento original de crítica do ato que tornou minha visita impossível e estou tentando rearranjar minha vida para harmonizar com aquele a quem eu [apoio] como cabeça desta Igreja. Ademais, refletindo nos últimos anos de vida d[os Apóstolos que sofreram ostracismo por seus profetas] J. Reuben Clark e Henry D. Moyle, ele estava determinado em não morrer em mágoas. ‘Eu vou aceitar o que vier como minha sina na vida e satisfazer-me com o que tenho’, ele contou a seu neto.”

Encerrando Segregação Racial (1978)

Spencer Kimball ascendeu ao trono profético SUD em 30 de dezembro de 1973 com a súbita e inesperada morte do relativamente jovem Harold Lee (aos 74 anos de idade) após menos de 18 meses na liderança da Igreja. Kimball, diferente de Lee, havia abraçado o movimento de Brown em 1969 e, de acordo com seu filho e biógrafo Edward L Kimball, assumiu a presidência da Igreja com a expressa intenção de terminar o que Brown havia tentado e falhado: Suspender a proibição de ordenação de negros ao sacerdócio.

Nos anos anteriores à sua ascensão à presidência, Kimball mantinha anotações e recortes de jornais relacionados à questão da segregação racial SUD. Matthew L Harris, Professor de História da Universidade Estadual do Colorado (Pueblo), e co-editor do livro The Mormon Church and Blacks: A Documentary History, reconta como Kimball anotava em seu diário profunda angústia sobre a segregação racial nas comunidades SUD brasileiras durante a década de 1960, quando trabalhava como Apóstolo responsável pela América do Sul:

Harris reconta que Kimball havia escrito uma carta a seu filho Edward em 1963 reconhecendo que a proibição era “possivelmente um erro”, e que em 1969 havia vigorosamente apoiado os esforços de Hugh B Brown para suspende-la, o que justifica a suposição que ele iniciara sua presidência em 1974 disposto à retomar o projeto de Brown. Contudo, Kimball sagazmente teria reconhecido os mesmos obstáculos e reticências entre alguns Apóstolos que poderiam provocar a repetição do fracasso de Brown e a resultante esultante a entre líderes eclesiásticos.

Sobre o processo de decisão de Kimball, e suas manobras para lentamente preparar o Quórum dos Doze Apóstolos, elaborou o historiador mórmon D Michael Quinn¹:

“Cinco anos após a morte de Lee, o presidente da igreja, Spencer W. Kimball, em junho de 1978, estendeu a ordenação ao sacerdócio a todos os homens mórmons de ascendência negra africana. Durante décadas, ele se preocupara com essa restrição racial e estava entre os apóstolos que votaram sem sucesso por essa proposta oito anos e meio antes. Essa mudança na política SUD foi única em dois aspectos: o tempo que levou para o presidente da igreja indicar suas intenções a seus associados na hierarquia; e o cuidado com o qual ele obteve seu assentimento gradual antes de realmente submeter a proposta a uma votação.

Conforme revelado recentemente por um secretário da Primeira Presidência, no início de 1977, Kimball começou a enfocar nisso intensamente” e então decidiu encerrar a restrição ao sacerdócio num futuro próximo. Notavelmente, o presidente da igreja indicou isso a um mórmon fiel de ascendência africana, mas não para nenhum de seus associados na hierarquia SUD. Na cerimônia de assentamento da pedra fundamental para o templo brasileiro em 9 de março de 1977, Kimball disse privadamente a Helvécio Martins que se preparasse para receber o sacerdócio. Ele perguntou claramente se Martins “entendia as implicações do que o Presidente Kimball havia dito”, e o afro-brasileiro “disse que compreendia”. Kimball esperou mais de um ano antes de informar qualquer autoridade geral sobre suas intenções.”

O historiador Matthew Harris argumenta que Kimball, reconhecendo os mesmos obstáculos entre alguns Apóstolos com visões raciais mais preconceituosas (e.g., Ezra Taft Benson, Bruce R McConkie, Mark E Petersen, e Delbert L Stapley), manobrou para manipula-los a concordar com a ordenação de negros. Em primeiro lugar, Kimball anunciou a construção de um templo no país com maior presença de afrodescendentes na Igreja: Brasil.

O templo de São Paulo, primeiro templo SUD fora da América do Norte (e de países com enormes maiorias demográficas de brancos: Suíça, Inglaterra, e Nova Zelândia), serviria para convencer os demais Apóstolos que ordenar negros – após a construção de lindo e caríssimo templo com enorme sacrifício em um país profundamente miscigenado como o Brasil – seria o passo mais lógico e coerente.

Em junho de 1977, Kimball pediu a três Apóstolos (Bruce McConkie, Thomas Monson e Boyd Packer) para escreverem memorandos argumentando uma “base doutrinária para a proibição e como uma mudança poderia afetar a Igreja”. McConkie escreveu um longo tratado concluindo que não havia impedimentos bíblicos para uma mudança. Em 30 de maio de 1978, Kimball apresentou a seus dois conselheiros uma declaração que ele havia escrito à mão que removia todas as restrições raciais à ordenação ao sacerdócio, afirmando que “tinha uma sensação boa e calorosa a respeito.”³

Em 1º de junho de 1978, após a reunião mensal das autoridades gerais no Templo de Salt Lake, Kimball pediu aos seus conselheiros e aos dez membros do Quórum dos Doze Apóstolos que se apresentassem para uma reunião especial. Kimball começou descrevendo seus estudos, pensamentos e orações para remover a restrição e sua garantia crescente de que chegara a hora da mudança. Kimball pediu a cada um dos homens presentes para compartilhar seus pontos de vista, e todos falaram em favor da mudança da política. Depois que todos os presentes compartilharam seus pontos de vista, Kimball liderou os apóstolos reunidos em um círculo de oração para buscar a aprovação divina final para a mudança. Enquanto Kimball orava, muitos no grupo registraram sentir uma poderosa confirmação espiritual.³¹

O Apóstolo LeGrand Richards confirmou a importância da miscigenação demográfica brasileira e o impacto que a construção do templo causou na questão da segregação racial SUD em uma entrevista meras 5 semanas após o anúncio oficial:

“Bem, isso é muito verdade, e eu poderia dizer-lhe o que provocou isso, de certa maneira. No Brasil, há tanto sangue negro na população de lá que é difícil obter líderes que não tenham sangue negro neles. Acabamos de construir um templo lá. Vai ser dedicado em outubro. Todas aquelas pessoas com sangue negro nelas foram levantar fundos para construir esse templo. E então, se não mudarmos isso, então elas não poderão sequer usá-lo. Então, o irmão Kimball preocupou-se muito com isso, e orou muito sobre isso.

(…)

Bem, [os profetas do passado] esperavam que [os Negros] iriam eventualmente obter o sacerdócio, mas eles nunca determinaram o momento para isso. E assim, quando esta situação que enfrentamos lá no Brasil – O irmão Kimball preocupava-se muito com isso – como as pessoas são tão fiéis e dedicadas. A presidente da Sociedade de Socorro da Estaca é uma mulher de cor lá em uma das Estacas. Se eles fazem o trabalho, pois parece que a justiça do Senhor aprovaria dar-lhes a bênção. Agora é tudo condicionada à vida que eles vivem, não é?”

[Leia mais trechos traduzidos, ou ouça a entrevista na íntegra, aqui.]

A Igreja formalmente anunciou a mudança em 9 de junho de 1978, há 40 anos hoje.  O anúncio foi posteriormente aprovado em assembléia pela Igreja na Conferência Geral de outubro de 1978 e está agora incluído na edição da Igreja SUD de Doutrina e Convênios como Declaração Oficial 2, ironicamente escrita pelo Apóstolo Bruce McConkie.

Joseph Freeman, o primeiro negro a ser ordenado ao Sacerdócio pela Igreja SUD em 1978, apareceu em entrevista para o jornal The Times de Munster, Indiana, no décimo aniversário do anúncio, renunciando a crença de que a política SUD de segregação racial tivesse sido uma ordem divina profeticamente revelada.

Ironicamente, na mesma entrevista, o Apóstolo Dallin Oaks reitera a crença de que fora uma revelação e um mandamento divino, cujas razões e motivos supostamente seriam desconhecidos para homens mortais, mesmo profetas e apóstolos³².

Reportagem do jornal The Times de Munster, Indiana, 25 Jul 1988, página 7


Quer saber mais? Assista o excelente documentário Ninguém Sabe: A Estória Não Contada de Mórmons Negros por Darius A Gray e Margaret Young, exibido pelo Documentary Channel, recheado de entrevistas com historiadores e membros da Igreja, discutindo os assuntos mais espinhosos e difíceis da relação entre a Igreja e os negros, a sociedade mórmon e os negros, e ainda alguns casos específicos da história mórmon, como os primeiros élderes negros Walker Lewis e Elijah Able, e Jane Manning James, a primeira mulher negra entre os pioneiros mórmons (atravessou os 1300 km a pé até Utah), e que foi selada pela Primeira Presidência como “serva” de Joseph Smith por toda eternidade, ao invés de esposa de seu marido.

Assista os trailers aqui:


NOTAS
[1] Quinn, D Michael. Mormon Hierarchy: Extensions of Power, Signature Books, 1997, pp. 14-15.
[2] Bergera, Gary J. Tensions in David O. McKay’s First Presidencies em Journal of Mormon History, Vol. 33, No. 1 (Spring 2007), pp. 179-246, University of Illinois Press.
[3] Kimball, Edward L. Lengthen Your Stride: The Presidency of Spencer W. Kimball, Deseret Book, 2005.
[31] Kimball, Edward L. Spencer W. Kimball and the Revelation on Priesthood em  BYU Studies, Vol. 47, No. 2, pp. 4–78.
[32] Atualmente, o site oficial da Igreja SUD inclui um artigo que admite que a política foi instituída por Brigham Young e foi instigada por racismo, não por revelação divina como fora pregado por décadas. A Igreja SUD, inclusive, publicou discursos e artigos renegando os ensinamentos de seus Profetas e Apóstolos do passado sobre o assunto.

6 comentários sobre “40 Anos do Fim da Segregação Racial Mórmon

  1. A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias está cheia de cagadas desde o início de sua FUNDAÇÃO (Restauração meuzovo)! Preconceito racial, poligamia, pedofilia, abuso, mentiras e mais mentiras… mas por alguma razão, e julgo ser a imbecilidade do povo americano ufanista, de não se conformar que Jesus é algo de um OUTRO PAÍS, que não o deles, esta merda religião deu certo.
    Só que lá não tem profeta nenhum. Eles não veem nada, não sabem de nada, não tem revelações, coisa nenhuma… e como são uns psicóticos egocêntricos, não conseguiram sequer perceber as mudanças sociais na sua própria época. Aí foi discurso falando de gente habitantes na lua e outras tantas bizarrices que agora, depois de décadas de invencionices, eles têm que ficar tapando o sol com a peneira e jogando o lixo pra debaixo do tapete. Por isso de vez em quando nos deparamos com essas explicações ridículas. Por que é mais fácil colocar na conta de Deus do que assumir as cagadas!

  2. Considerando o fato que grande maioria das pessoas da década de 70 que eram convertidos a igreja Mormon eram pessoas vindas de países pobres da América Latina e ilhas dos Pacífico Sul, a igreja pensou em mudar a política racial da igreja já pensando em facilitar o crescimento da igreja nesses países.

    Após esse dia ocorrida em 1978, a igreja colecionou um grande número de conversos com sacerdócio nesses países a qual havia muitos que tinha linhagem afro em sua arvore genealógica.

    O sacerdócio foi dado aos negros, mas o negro e pessoas da linhagem africana de certa forma não gozam de mesmos privilégios que os membros de cor branca. Basta ver o número de membros negros e brancos que estão em posição de liderança mundial da igreja e todos verão o grande espaço de diferença entre os dois onde mais de 90% dos membros dos quórums são de origem caucasiana e uma minoria asiática, latina e afro.

    Na parte social a diferença também é brutal onde a classe afro digamos assim pelo menos no que se refere ao Brasil os negros em sua maioria são de classes baixa ou média baixa enquanto os brancos brasileiros gozam de uma vida financeira melhor na qual grande parte vive na classe média alta e até classe burguesa. Logicamente que há pobres brancos também, mas os negros ricos são a minoria infelizmente dentro da igreja SUD.

    Tudo isso falando sobre Brasil, mas na Africa do Sul segundo um membro norte-americano que teve oportunidade de estar lá disse que brancos não se juntam com negros mesmo sendo do mesmo grupo religioso a qual no caso são os membros SUD. Teoricamente a segregação racial na igreja SUD pode ter terminado em 1978, mas na prática há ainda membros brancos que tem certa atitude bem típica dos anos 60 quando a segregação racial era algo comum.

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