Sou Outra Pessoa em Português?
Era uma tarde normal, com a gente batendo portas na nossa área de Planalto, uma área de gente das classes média e alta no centro de Manaus. Como era normal naquela área, recebemos cumprimentos como gritos de “Sai daqui, safados!” e “Vou morrer católico, seu americano!” Era a área mais difícil que eu já tinha encontrada, e esta tarde, como muitas outras, estava ficando longa, e ainda não tinha batido quinze horas.
No meio de uma rua nova que nunca batemos antes, encontramos algo diferente nos cumprimentando no portão–um homem bem branquinho que, falando inglês com sotaque britânico, nos mandou entrar.
Acabamos sabendo que ele estava lá só há dois meses, depois de casar com uma amazonense que ele conhecera na Inglaterra. Ele ainda não falava português, e estava se sentindo bem isolado com ninguém com quem pudesse falar fora a esposa, cujo inglês era bem iniciante. Já que a gente estava desesperado para alguém nos aceitar, estávamos felizes da vida para passar a tarde com ele, falando sobre sua vida passada na Inglaterra, nossas famílias nos EUA, e nossas experiências no Brasil como missionários.
Depois de um tempo, começamos a falar da religião, uma conversa que saía estranha da minha boca em inglês depois de quase um ano no campo. Nosso novo amigo não era religioso e se considerava agnóstico sobre a existência de Deus. Então, nossa conversa se concentrava principalmente nos nossos testemunhos sobre as experiências pessoais que tivemos com orações respondidas e sentimentos do amor do Pai Celestial para nós como seus filhos.
Ele nos agradeceu pela visita, e quando saímos meu companheiro ficou quieto por várias casas que batemos. Depois de meia hora, ele simplesmente disse, “Você é uma pessoa totalmente diferente em inglês.”
Quando pensei nisso, fiquei mais e mais assustado–quem sou quando falo inglês, se não sou eu? Como posso ser tão diferente ao falar inglês que meu companheiro, com quem já passei vários meses, quase nem reconheceu minha personalidade, meu jeito de ser?
Ao pensar mais nisso, comecei a achar que esta mudança tinha mais a ver com a diferença entre meu jeito de ser anterior (antes da missão, quando costumava falar inglês) e atual (como missionário, fixado em fazer o meu melhor), pois a oportunidade de falar inglês de certa forma me deu oportunidade de voltar para o “eu” antigo, antes da missão. Sabia que eu tinha ficado mais estrito na minha vida pessoal ao me tornar missionário, e um pouco menos paciente com fraquezas, pois não queria perder nem um momento ou oportunidade como missionário para fazer o bem ou ajudar alguém. Sabia que esta atitude já tinha dado problemas para mim com outros companheiros–mas era uma mudança tão grande que, ao voltar-me para meu jeito de ser anterior, falando do evangelho em inglês como fazia em casa, meu companheiro nem me viu como a mesma pessoa?
Gostaria de poder dizer que essa experiência me ajudou a ser um companheiro mais gentil, paciente e bondoso para o resto da minha missão, mas a verdade é que meu jeito de ser não mudou muito até a minha volta para casa, e na verdade ainda levou mais dois ou três anos depois disso para realmente relaxar. Mas agora, 10 anos depois, sempre olho para essa experiência para me centrar quando sinto que estou escolhendo o zelo em vez da sabedoria, a escolha “correta” em vez da escolha misericordiosa.
Alguém aqui já teve uma experiência parecida, que lhe chamou a atenção de como deveria mudar o comportamento com respeito à sua vida religiosa?
Enquanto eu nunca tive uma experiência tão clara, as vezes me parecia que eu era outra pessoa quando eu falava em português na missão. Mas ao contrário, eu pensei que fosse mais manso, sossegado, amável.
Eu acho que a cultura portuguesa que eu experimentei durante a missão me deu a capacidade de mudar muito dentro de mim, e assim eu melhorei, até através dos anos depois da missão.
Mas como há tanto que aconteceu durante os 30 anos seguidas, é quase impossível dizer sim ou não, ou até ter mais que uma impressão.
Mas, a ideia que alguém possa ser diferente só por falar outra língua parece-me possível.
Kent, é interessante, nas experiências que já tive no Brasil depois da missão, pensei a mesma coisa–que o meu “ser brasileiro” fosse mais simpático, mais relaxado. Acho que o meu comportamento estrito tinha mais a ver com a cultura da missão do que a cultura brasileira–mas como a minha maior associação com português era com a vida missionária, as duas coisas ficaram ligadas no meu jeito de ser.
Então você serviu em Portugal? E essa gente brasileira do ABEM ainda não te atirou pela janela por causa do sotaque? 🙂
Interessante Rolf. Fez-me lembrar de quando na missão encontrava alguém da minha cidade. Voltavam as piadas, as expressõs e assuntos locais. Mesmo no assunto religião o clima parecia mais leve como se o Elder Santana ficasse mais parecido com o Emanuel.
É isso mesmo, Emanuel, especialmente esta frase sua: “como se o Elder Santana ficasse mais parecido com o Emanuel.” Com a linguagem que usamos sobre a missão, como você tem que “erguer a barra” e ser mais devotido e espiritual do que nunca, acho que as vezes damos a impressão errada de que um missionário tem que parar de ser si mesmo, na busca de ser um “gigante espiritual.” Estas duas coisas não têm que ser separadas.