Tradição ou Doutrina?

chaoAinda hoje, acho incrível como um povo é capaz de produzir costumes. O fato de que um hábito muito disseminado numa sociedade – principalmente quando existe algum tipo de princípio por trás dele – vira uma tradição em relativamente pouco tempo é quase inquestionável. Todos os povos, grandes e pequenos, têm tais hábitos. Nem sempre eles são saudáveis, mas significam muito para eles.

Os japoneses da época feudal são um exemplo clássico. Desenvolveram todo um código de conduta para seus guerreiros samurais que, de tão rígido e respeitoso, virou tradição. Uma de suas maiores tradições, o Seppuku (também conhecido como Harakiri), dizia que era preferível que uma pessoa cometesse suicídio e morrer com honra do que cair em mãos inimigas; também servia como pena capital por insurreição ou insubordinação. Todos concordamos que suicídio não é lá muito saudável, mas, ainda assim, é uma tradição do código Bushido que, de tão forte, ninguém se atrevia a questionar.

Os Mórmons, como povo, possuem tradições? A pergunta chega a ser tola de tão óbvia que é a resposta. Sim, nós temos. Muitas. Tantas que, se fossem listadas, dariam um livro. Uma outra pergunta não tão óbvia seria: essas tradições são saudáveis? Bem, isso cabe a cada um analisar – de preferência, alguém que não esteja atrelado a ela.

Nos meus tempos de missão, passei por determinada ala considerada tradicional (olha a palavrinha aí). Era uma das primeiras do estado onde eu estava. Longe de ser perfeita, eles ainda se reuniam numa casa alugada. Foi uma experiência incrível. No entanto, uma das coisas me chamou muito a atenção. Num convite atípico para abençoar o sacramento, um irmão me ofereceu um pequeno pote com água e uma toalha. “Limpar as mãos”, pensei. “Nada mais higiênico”, se bem que eu pessoalmente prefiro álcool em gel. Entretanto, antes de eu limpar as mãos, o irmão me disse: “Isso serve como um ato simbólico de lavar as mãos, deixando as impurezas para trás”. Um batismo das mãos, em outras palavras. Um tanto curioso, não encontrei nada sobre isso em nenhum livro que tenha lido (se estiver errado, por gentileza, estou aberto a correções), e parece que a coisa toda foi bem disseminada naquela ala, porque muita gente a praticava.

Uma outra tradição – dessa vez de efeito benéfico, mas não mais fraco – eu vi também na missão, em outra ala. Sei que existe a instrução de que deve ser tocado um prelúdio e um poslúdio em reuniões sacramentais, entre outras. Passei por uma ala em que as duas coisas eram feitas, mas com um porém bem peculiar: era pedido que todos os membros, tanto quanto fosse possível, estivessem na capela, sentados em seus lugares durante o prelúdio e o poslúdio. Eles só poderiam sair depois que o poslúdio terminasse. As exceções exisitiam, claro, mas eram raras. O resultado era claramente benéfico: as pessoas tinham uma reverência muito mais produnda nas reuniões. As coisas eram feitas em mais ordem. E, vale lembrar, isso não existe no manual.

Enfim, as tradições estão aí para quem quiser vê-las. Não existe muito problema nelas, a não ser que se ocorra uma coisa muito comum: sua transformação em doutrina. Como o caso do “batismo de mãos” acima, ela havia virado uma doutrina particular. Tudo era feito como se fosse algo realmente pertencente ao rito do sacramento, como se fosse verdadeiramente sagrado. Mas não passava de uma tradição. Foi por isso que a nação nefita sofreu tanto – por causa de tradições erradas. Por causa de uma coisa aparentemente pequena que, uma vez disseminada, se torna uma pseudo-verdade. Ora, todos temos tradições, elas são necessárias para gerar a identidade de nossa cultura. O perigo reside quando essas tradições viram doutrina – apostasia para os íntimos. Seria interessante verificar até onde uma tradição é benéfica ou não; é por isso que líderes de área visitam estacas regularmente. Eles podem identificar uma dessas apostasias porque é de fora, não faz parte dela. Quanto a nós, macacos me mordam, não saiamos por aí dando uma de puritanos e erradicando as tradições. Eu bem que gostava daquele silêncio depois da sacramental.

38 comentários sobre “Tradição ou Doutrina?

  1. Uma bela estreia, Paulo. Parabéns! Penso que não há problemas em estabelecer regras pessoais de conduta ou viver de acordo com suas crenças (por mais estranhas que elas pareçam), o problema é tentar impor essas crenças aos outros como “doutrinas” – como você enfatizou em seu texto. Tenho pensado nisso nesses dias, tanto que postei o seguinte no Facebook:

    “Um fenômeno interessante que caracteriza a religião é como ela se desenvolve na ‘periferia’, ou seja, longe de seu foco de irradiação; Em geral, quanto mais se afasta do seu centro, maior é a tendência de seus praticantes tornarem-se ‘fundamentalistas’ em relação à prática e costumes que caracterizem a comunidade da fé. Por exemplo, pessoas convertidas ao judaísmo são mais ‘judeus’ (ou seja, encaram determinadas práticas com maior severidade) que os próprios judeus. Práticas culturais com forte apelo local acabam adquirindo um caráter distintivo, uma amplitude maior com status de “doutrina”. Vejo isso acontecendo com os mórmons. No Brasil, é difícil fazer essa distinção entre doutrina e cultura – pois, em geral, os membros da Igreja acreditam que TUDO que vem de Salt Lake foi fruto de revelação divina (principalmente normas de vestuário e comportamento).”

    • Obrigado, Leonel! De fato, muita coisa da Igreja hoje (principalmente no Brasil) é cultura. Quero ver mesmo quem é capaz de ser ortodoxo ao extremo… não dá. Nem na época de Cristo foi assim. Nem antes. Nem depois. Vestuário, por exemplo… descobri um discurso, isso com meu presidente de estaca, de uns quatro anos atrás, que falava sobre o uso de camisas brancas. Até então, era pura tradição, um bom costume, ou a “ordem das coisas não escritas”. Eu ainda acho que seria mais fácil colocar tudo no papel, mas vai entender…

  2. Curti d+ esse texto . Todo mormon deveria ler … Parabéns irmão Paulo , um texto muito bem escrito sem difamar os irmãos e/ou a Igreja. Parabéns .. Vou compartilhar com os amigos.

    • Marcus: Difamação é crime no Brasil, previsto pelo Artigo 139 do Código Penal, com pena de 3 a 12 meses de reclusão mais multa. Isso é sério. Você poderia nos apontar casos específicos de difamação no site para que possam ser corrigidos e/ou removidos? Obrigado.

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