Políticos ‘Lavam as Mãos’ e Culpam Outros Desde a Crucificação de Jesus

Tony Keddie

O ato de lavar as mãos recebeu uma cobertura substancial no ano passado durante a pandemia do COVID-19, e não apenas em relação à higiene. Você pode ter visto algumas das muitas acusações nos EUA e no Canadá de que um político “lavou as mãos” de suas responsabilidades pandêmicas.

Novo Testamento Evangelhos Pilatos
“Pilatos lavando suas mãos”, de Hendrick ter Brugghen, século 17. | Imagem: Cortesia de Shipley Art Gallery, The Public Catalog Foundation/Wikimedia Commons.

Às vezes, a referência inclui um aceno à figura histórica associada a tal frase. Recentemente, nos EUA, um comentarista conservador criticou o presidente Joe Biden, dizendo que ele é “como Pôncio Pilatos: apenas lava as mãos e fica quieto”.

Essas imagens de lavar as mãos derivam de escrituras bíblicas icônicas que se referem a eventos anteriores à crucificação de Jesus.

Em uma das primeiras versões desses eventos, Pôncio Pilatos, o governador romano da Judéia de pelo menos 26 a 37 da Era Comum – o único homem com o poder de ordenar uma crucificação – lava suas mãos diante de uma multidão. No Evangelho de Mateus, ele simultaneamente concorda com a execução de Jesus e não reivindica nenhuma responsabilidade pessoal.

Ao longo da história do cristianismo, representações da lavagem das mãos de Pilatos têm sido frequentemente usadas para transferir a culpa pela morte de Jesus aos judeus e fazem parte de um legado tóxico do antissemitismo cristão e ocidental.

O Pilatos histórico

No primeiro século E.C., o Império Romano governava a sub-província da Judéia por meio de governadores militares como Pilatos, encarregados de reprimir quaisquer rebeliões contra o domínio romano. Pilatos era a única pessoa na Judéia com autoridade para executar alguém por crucificação, uma forma brutal de pena capital reservada a escravos e não cidadãos considerados subversivos.

Helen Bond, professora de origens do cristianismo, explica que “a execução de Jesus foi com toda probabilidade uma crucificação rotineira de um agitador messiânico” por um governador romano.

Fontes judaicas expressam que Pilatos era hostil aos judeus e seus costumes. Filo de Alexandria até lamentou os “assassinatos contínuos de pessoas sem julgamento e sem condenação” por Pilatos.

Exonerando Pilatos

No entanto, os evangelhos do Novo Testamento oferecem retratos ambivalentes do homem que ordenou a execução de Cristo. Existem quatro relatos diferentes da condenação e morte de Jesus, mas todos concordam que Pilatos estava relutante em declarar Jesus culpado.

Cada evangelho retrata Pilatos considerando Jesus inocente, mas concordando em executá-lo, seja por fraqueza pessoal, para apaziguar as multidões ou para legitimar sua própria autoridade e a do imperador. Em vez de impugnar Pilatos, os evangelhos transferem a culpa pela morte de Jesus para as autoridades judaicas.

Cada um desses evangelhos foi escrito durante as décadas seguintes à destruição do templo de Jerusalém pelos romanos (70 E.C.), o clímax da Primeira Revolta Judaica. Foi um período de antijudaísmo desenfreado: artefatos imperiais, como moedas e monumentos, ligavam indiscriminadamente os judeus de todo o império aos rebeldes na Judéia e os classificavam como traidores bárbaros. O império punia todos os judeus, por exemplo, com um imposto.

Isso criou um desafio para os primeiros seguidores de Jesus – judeus e gentios – que proclamavam que seu Salvador era um judeu executado por Roma como criminoso. Os autores do evangelho enfatizaram que Jesus se opusera às autoridades judaicas e não foi considerado culpado pelo governador romano.

Seguidores judeus e gentios de Jesus

Entender as representações de “judeus” nos evangelhos escritos antes da auto-identificação “cristão” se espalhar no início do segundo século é, portanto, imensamente complicado. O Evangelho de João, por exemplo, surgiu de uma comunidade gentia. Nunca usa o termo “cristão”, mas distingue os seguidores de Cristo dos judeus por meio de uma retórica hostil que demoniza “os judeus” como filhos do diabo, como mostrou a estudiosa do Novo Testamento Adele Reinhartz.

O evangelho de Mateus, no entanto, foi produzido por uma comunidade de seguidores de Cristo que se encaixam mais claramente no espectro de identidades judaicas, mas estavam ansiosos para se distinguir dos líderes judeus que estiveram envolvidos na revolta e dos líderes judeus do pós-guerra (ou seja, os rabinos). Nesse caso, os ataques retóricos contra certos líderes do judaísmo refletem uma discussão intersectária entre judeus.

Transferindo a culpa

O padrão de exonerar Pilatos culpando os líderes judeus é inconfundível no evangelho de Mateus. Inclui uma “maldição de sangue” que é a base de uma fórmula tóxica que os cristãos usaram para justificar séculos de antijudaísmo cristão, muitas vezes resultando em atos repreensíveis de violência contra os judeus: “Então, quando Pilatos viu que não podia fazer nada … tomou um pouco de água e lavou as mãos… dizendo: ‘Sou inocente do sangue deste homem; considerem isso.’ Então o povo como um todo respondeu: ‘Que seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos!’”.

Mateus também escreve que “os principais sacerdotes e os anciãos” estavam manipulando as multidões. Ele frequentemente acusa os líderes judeus de tal corrupção, bem como de hipocrisia e má interpretação da lei judaica.

O lavar as mãos de Pilatos alude a um relato mais antigo das escrituras judaicas. Deuteronômio 21:1-9 prescreve um ritual pelo qual Israel pode ser “absolvido da culpa de sangue” por um assassinato cometido por uma pessoa desconhecida. Como o culpado não pode ser processado, esse ritual remove a “culpa de sangue”, ou responsabilidade comunal por “sangue inocente”, que de outra forma permaneceria no meio do povo de Israel.

O ritual envolve os anciãos do povo lavando as mãos da culpa de sangue enquanto os sacerdotes quebram o pescoço de uma bezerra. Mateus inverte o ritual de Deuteronômio e coloca os sacerdotes e anciãos como hipócritas que trazem a culpa de sangue a seu povo.

A redenção de Pilatos e antijudaísmo

Através dos primeiros escritores cristãos, Pilatos tornou-se uma figura ainda mais positiva quando o Império Romano adotou o cristianismo. Alguns consideravam Pilatos um cristão, pelo menos “em sua consciência”, como escreveu o teólogo Tertuliano. A Igreja Copta proclamou-o santo no século 6. Pilatos aparece até no credo niceno-constantinopolitano, uma declaração de fé cristã: Jesus foi “crucificado por nós sob Pôncio Pilatos”. Observe que a declaração diz “sob” e não “por” Pilatos.

Textos cristãos antigos enfatizaram a transferência de culpa dos evangelhos do Novo Testamento de Pilatos aos judeus, como o demonstrou o professor do Novo Testamento Warren Carter.

Autores cristãos usaram imagens ambivalentes e positivas de Pilatos para mostrar que o cristianismo não era uma ameaça à lei e à ordem romanas. Ao fazer isso, atiçaram as chamas do antijudaísmo. O historiador de arte Colum Hourihane explorou como essas interpretações antijudaicas acabaram levando a caracterizações negativas do próprio Pilatos como judeu durante o período medieval na Europa. Naquela época, os cristãos culpavam os judeus pelas pragas.

Política de lavar as mãos

Algumas acusações de lavar as mãos buscam justamente responsabilizar os líderes políticos, ou apontam para a corda bamba em que políticos andam para atingir seus objetivos. O Papa Francisco declarou que aqueles que ignoram o sofrimento causado pelo COVID-19 são “devotos de Pôncio Pilatos que simplesmente lavam as mãos”.

Mas a expressão também deve nos lembrar dos perigos da difamação: como vimos sob a liderança pandêmica do ex-presidente Donald Trump, quando líderes ou comunidades se distinguem por meio de bodes expiatórios, isso facilita uma perigosa redistribuição de culpa para outras partes, frequentemente comunidades marginalizadas e racializadas.

Assim como Trump, influenciadores políticos difamaram pessoas de ascendência asiática, e tanto os EUA quanto o Canadá viram um aumento nos crimes de ódio anti-asiáticos.

Alguns teóricos da conspiração culparam falsamente os judeus e Israel pelo vírus. Alguns políticos e comentaristas dividiram comunidades direta ou indiretamente culpando ou apontando para pessoas que vivem em pobreza ou comunidades negras, racializadas e indígenas.

A história das interpretações da lavagem das mãos de Pilatos é manchada por tentativas maliciosas de definir a identidade cristã através da demonização do outro judaico. Seja procurando explicar problemas, responsabilizar as pessoas ou afirmar nossas próprias identidades, vamos fazê-lo de maneira que não desumanize ninguém.


Tony Keddie possui Doutorado em Estudos Religiosos pela Universidade do Texas, Austin, e atualmente leciona como professor assistente de História e Literatura Cristã Primitivas na Universidade da Columbia Britânica.

Artigo originalmente publicado aqui. Reproduzido sob permissão.

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