Um vídeo explicando poligamia para o público geral publicado na semana passada está rodando as redes sociais de mórmons.

O bispo Ira Eldredge e suas esposas Nancy Black, Hanna Mariah Savage e Helwig Marie Anderson, circa 1864. | Fotografia colorizada. Imagem: cortesia de WikiCommons.
Contudo, o vídeo inteiro é recheado de mentiras e mitos populares.
Mentira #1
“Alguns mórmons ainda vivem com múltiplas esposas? Não.”
A resposta honesta seria “sim”. Como o próprio vídeo menciona depois.
Mentira #2
“… mórmons seguiram essa prática por uns 50 anos durante o século 19…”
Poligamia surge como um conceito concreto no Mormonismo em 1831, quando Joseph Smith ditou uma revelação que incentivava poligamia entre os missionários mórmons e os ameríndios (i.e., Lamanitas) para criar uma geração de Nativos mais “branca e deleitosa”. [1] Antes mesmo dessa primeira revelação, rumores sobre o jovem Joseph Smith e suas propensões polígamas já corriam desde 1827 e 1828. [2]
A primeira experiência polígama de Joseph Smith ocorreu entre 1833 e 1836, com Fanny Alger (13-16 anos de idade) enquanto morava e trabalhava no lar dos Smith. [3] O primeiro casamento plural de Smith do qual temos registro ocorreu em 1841, com Louisa Beaman. [4] Entre 1841 e sua morte em 1844, Joseph Smith casou-se com mais 31 mulheres, nas estimativas mais conservadoras, e oficiou o casamento de mais de 52 mulheres a 31 homens. [5]
Em 1878, a Suprema Corte decidiu que a Igreja não tinha recurso por cláusula religiosa contra a lei antibigamia de 1862, assinada por Abraham Lincoln, o que resultou no fim de quaisquer recursos legais para a prática da poligamia. A Igreja continuou praticando poligamia de maneira ilegal publicamente até 1890 e secretamente até 1904, mas uma série longa de represálias legais, baseadas nas leis antipoligamia e na decisão de 1878, acabou forçando a Igreja a abandonar a prática terminantemente, como o próprio vídeo admite depois.
Entre 1904 e 1833 são 71 anos.
Por que essas duas décadas a mais são relevantes? Veremos abaixo.
Mentira #3
“De tempos em tempos e para cumprir Seus propósitos específicos, Deus, através de Seus profetas, sancionou a prática de casamento plural.”
A prática de poligamia era comum na antiguidade, e não apenas entre os hebreus. Monogamia foi introduzida na cultura ocidental pelo império romano, e apenas cementada como a norma absoluta pela Igreja Católica entre os séculos 6 e 9 da Era Comum.
Mentira #4
“Era praticada apenas por mandamento de Deus para trazer uma nova geração…”
Estudos estatísticos e populacionais demonstram que a taxa de natalidade geral da comunidade mórmon caiu com poligamia, ao invés de subir.
Isso é muito fácil de ilustrar com o maior polígamo de todos: Brigham Young. Young foi selado a 55 esposas e teve apenas 59 filhos. Mesmo considerando que dessas 55 mulheres, 6 viviam com outras maridos (em relações poliândricas), 10 se divorciaram dele, e apenas 16 lhe geraram prole, a média de natalidade de Young por esposa era bem abaixo (quase metade) da média nacional monogâmica.
Ademais, o Apóstolo John A. Widtsoe demonstrou que isso simplesmente não era verdade em 1943. Basta ler o que ele escreveu (e a Igreja publicou) aqui.
Mentira #5
“Era praticada… como um teste de fé para os santos da época…”
Joseph Smith, Brigham Young, e dezenas de outros Profetas e Apóstolos deixaram claro e explícito que poligamia é um princípio divino e eterno, necessário para exaltação, enquanto que monogamia é contra os planos de Deus. Basta ler o que eles disseram (e a Igreja publicou no passado) aqui, aqui, e aqui.
Mentira #6
“Era praticada… para permitir todas mulheres dignas a chance para ser seladas em famílias eternas.”
O Apóstolo John A. Widtsoe demonstrou que isso simplesmente não era verdade em 1943. Basta ler o que ele escreveu (e a Igreja publicou) aqui.
Como explicado por Widtsoe, em nenhum momento a população mórmon apresentou escassez de homens comparados com a média nacional. [6] Olhemos, porém, para a origem da prática: Dentre as 33 mulheres mencionadas acima que Joseph Smith desposou em sua vida (como esposas polígamas), apenas 4 eram viúvas. De todas as esposas plurais, Smith não sustentou nenhuma! [7] Ainda, destas 33, 12 tinham outros maridos, com os quais viviam, o que eliminava a necessidade da pensão. Avaliando a origem do “princípio”, esse motivo (i.e., escassez de homens) simplesmente não figurava importantemente. [8] Ademais, dentre as 33 esposas de Joseph Smith, 2 tinham 14 anos, 5 tinham 16-17 anos, 5 tinham 18-22 anos, 5 tinham 23-27 anos, e 7 tinham 28-33 anos de idade. (Nesta época, Smith tinha entre 35 e 38 anos). Não eram velhas suficiente para serem consideradas excedentes (ou “encalhadas”). [9]
Mentira #7
“No final do século 19, as coisas ficaram muitos difíceis politicamente para os membros da Igreja.”
A afirmação em si não é mentirosa, apesar que as dificuldades políticas eram mais direcionadas à Igreja em si do que aos membros. A Igreja perdera dinheiro e propriedades com legislação anti-poligamia, e alguns membros foram presos pela prática ilegal de poligamia. É verdade que nova legislação ameaçava remover de todos os membros seus direitos políticos, porém as imagens no vídeo que ilustram essas “coisas… muito difíceis politicamente” simplesmente não ocorreu no “final do século 19” e certamente não por poligamia.
Os tumultos ilustrados no clipe acima retratam os conflitos em Missouri de 1833 e 1838, e nada tinham a ver com poligamia.
Mentira #8
“Então foi revelado ao profeta Wilford Woodruff, quarto presidente da Igreja, que a Igreja deveria parar com a prática de poligamia para evitar mais dificuldades.”
A julgar pelos documentos existentes, Wilford Woodruff recebeu revelações para continuar poligamia, não para suspendê-la. Não apenas uma, mas duas ordenando-o a continuar custe o que custasse. John Taylor, em seu último ano de vida e como Presidente da Igreja, também anotou uma revelação ordenando-o a manter poligamia a todos os custos. Nenhuma revelação jamais foi anotada contrariando esses mandamentos.
A decisão para suspender poligamia e escrever e publicar o chamado “Manifesto” (hoje conhecido como Declaração Oficial 1) foi política, tomada por um comitê de seletos líderes eclesiásticos e advogados, e em segredo da Igreja, até dos demais Apóstolos e Autoridades Gerais. Depois da publicação do Manifesto, vários Apóstolos e membros da Primeira Presidência continuaram a contrair, oficiar, e encorajar novos casamentos plurais por mais 14 anos. [11] Até que o Presidente Joseph F. Smith foi humilhado em depoimento ao Congresso Nacional, pego em contradições e mentiras sobre o assunto, e emitiu prontamente o “Segundo Manifesto” em 1904, a partir de quando a liderança da Igreja passou a cumprir com o primeiro manifesto. [12] [13]
Mentira #9
“A prática foi oficialmente interrompida em 1890, e não tem sido praticada pela A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias há mais de um século.”
A Igreja praticou poligamia em segredo oficialmente até 1904. Ela foi interrompida em público em 1890, certamente, mas ela só foi oficialmente interrompida em 1904. Muitos membros da Igreja, entre eles vários Apóstolos, opuseram-se à suspensão da poligamia, inclusive votando contra o Manifesto, enquanto a Igreja continuou a sancionar e a incentivar a prática secretamente.
Mentira #10
“Na época, contudo, alguns membros da Igreja não seguiram o chamado do profeta para suspensar a prática…”
Sim. A esses “alguns membros da Igreja” davam-se títulos como profetas, videntes, reveladores, apóstolos, e autoridades gerais, inclusive de Presidente da Igreja (a saber, Wilford Woodruff, Lorenzo Snow, e Joseph F. Smith).
Mentira #11
“…e fundaram suas próprias igrejas, usualmente com nomes similares, que ainda praticam poligamia.”
Alguns – e não todos – “fundaram suas próprias igrejas” décadas depois do Segundo Manifesto. Muitos desses mórmons “que ainda praticam poligamia” não pertencem à nenhuma igreja, e ainda muitos desses são membros da Igreja SUD. Alguns poucos mantém-se ativos na Igreja SUD, praticando poligamia às escondidas de suas autoridades eclesiásticas.
Mentira #12
“Algumas dessas seitas ainda existem hoje e podem até se chamar mórmons, mas esses grupos não têm nenhuma relação com A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.”
Em primeiro lugar, a Igreja SUD costuma repudiar o epíteto “seita” para si com a objeção que lhe parece desrespeitosa, mas aparentemente sente-se perfeitamente à vontade para classificar outros mórmons assim.
Isso, porém, não é uma mentira. A mentira nessa afirmação é de que nenhum mórmon polígamo tem “relação” com a Igreja SUD. Como citamos acima, muitos mórmons polígamos são membros da Igreja SUD, mesmo que essa repudie a prática na atualidade.
Mentira #13
“A Igreja hoje, para cumprir a lei nacional, proibe viver em poligamia…”
Se a Igreja apenas proibisse “viver em poligamia” para “cumprir a lei nacional”, ela permitiria membros da Igreja “viver em poligamia” nos países onde poligamia não é ilegal.
Ela não permite.
Mentira #14
“A Igreja hoje… foca em fortalecer famílias e casamentos entre um homem e uma mulher.”
Essa afirmação não é inteiramente mentirosa, como as demais citadas acima. Mas ela é parcialmente desonesta.
A Igreja não “foca em fortalecer famílias” inteiramente, esforçando-se bastante para enfraquecer famílias que sejam compostas por, ou tenham membros, LGBT. Além de discriminar contra famílias com laços polígamos.
O que torna bastante curioso, e irônico, que esse foco em “casamentos entre um homem e uma mulher” sirva de ímpeto para a atual perseguição SUD contra famílias LGBT. Especialmente considerando que muitos juristas consideram que a legalização do casamento gay seja o começo do fim para as leis antipoligamia. Será interessante acompanhar a reação oficial da Igreja SUD se ou quando isso ocorrer.
No artigo de ontem vimos como Joseph Smith mentiu sobre poligamia numa reunião sacramental ao ar livre, e agora vemos como mórmons continuam mentindo no YouTube e nas redes sociais. Por que mórmons ainda sentem a necessidade de mentir sobre sua prática preferencial de casamento? E a Igreja SUD é complacente com essa tradição?
NOTAS
[1] Collier, Fred. Unpublished Revelations of the Prophets and Presidents of The Church of Jesus Christ of Latter Day Saints, vol. 1, p. 58.
[2] Jesse, Dean, ed., The Papers of Joseph Smith: Autobiographical and Historical Writings, 1:314.
[3] Compton, Todd. In Sacred Loneliness: The Plural Wives of Joseph Smith, pp. 25-43.
[4] Bushman, Richard. Joseph Smith: Rough Stone Rolling, p. 494.
[5] Smith, George. Nauvoo Polygamy, apêndice A.
[6] Widstoe, John A. Evidences and Reconciliations, pp. 390-392.
[7] Compton, op. cit., Introdução.
[8] Ibid.
[9] Smith, op. cit., apêndice A.
[10] Newell, Linda e Avery, Valeen. Mormon Enigma: Emma Hale Smith, p. 98-99.
[11] Hardy, Carmon. Solemn Covenant: The Mormon Polygamous Passage, apêndice II.
[12] Paulos, Michael, ed., The Mormon Church on Trial: Transcript of the Reed Smoot Hearings
[13] Quinn, Michael. “LDS Church Authority and New Plural Marriages, 1890–1904,” em Dialogue: A Journal of Mormon Thought, 18:9-105
Novamente essa “pincelada” mal feita de “verniz” em nossa história. Que coisa chata tentar colocar cores e flores a onde o negócio é meio cinza mesmo. A história mormon é bonita e inspiradora por natureza e a beleza dela consiste justamente neste mesclar de virtudes e pecados nesse mosaico do divino com as mais banais tentações humanas. Isso faz a história da igreja parecer artificial É bastante claro para mim que a poligamia causou sérios problemas em nossa história e que isso pouco ou nada tem haver com Deus. Qual a intenção de Joseph em estabelecer tal conceito, talvez jamais saibamos ao certo. Isso desconstrói para mim a figura de “santo incorruptível” dele? não, pois eu nunca achei isso dele (e ele mesmo também não achava de si) isso abala minha crença pessoal dele como profeta-fundador e grande visionário? também não. Prefiro um profeta de “barro” que eu posso observar as imperfeições do que uma dúzia de alguns feitos de cristal polido e que eu não consigo enxergar o interior.
Muito obrigado pelo tópico Vozes Mórmons !! Ele está muito bem explicado e didático.
Me sinto feliz por saber que existe um site como o Vozes Mórmons para destrinchar diversos tópicos considerados tabus. Sempre tive esse grande curiosidade pela história Mórmon e pelos profetas. (curiosidade aliás que só aumentou assim que me mudei para Utah)
Muitos dos assuntos aqui abordados, infelizmente, são escondidos a 7 chaves. (até mesmo nas aulas de religião da BYU e do LDS Business College)
Falando nisso, não tenho tido boas experiências com os mórmons daqui. Só para citar alguns dos meus imprevistos :
1- Já fui convidado a ficar calado ou me retirar em uma das classes de religião, pois segundo o professor minhas dúvidas mais atrapalhavam do quê contribuíam com a classe;
2- Estava lendo o livro “No Man Knows My History”, sobre o Joseph Smith e fui totalmente repreendido por um casal de missionários idosos que estava no trem. A Sister chegou até a comentar que lendo isso eu estaria jogando uma pedra no profeta e que estaria a caminho de minha excomunhão.
Infelizmente aqui nos US não existe um meio termo. Temos praticamente dois lados:
1- Os quê adoram a igreja em tudo e não questionam nada. (tipo de pessoa que acredita piamente se você disser que o profeta recebeu uma revelação para construir um Shopping ou para doar 3 milhões para a criação de um estádio);
2- Os quê tem um ódio profundo a igreja e a tudo que ela representa.
E no meio dessa “guerra” há poucos que estão sob o muro, hora pendendo para um lado hora pendendo para outro.
Belo exemplo de ‘tolerância’ na prática, Fael. Faz me lembrar daquela máxima, “teu exemplo grita tão alto que mal consigo escutar o que você diz”.
E muitos membros pensam que é o céu viver em Utah, a pressão deve ser bem maior!
Excelente exemplo, no Brasil já observamos sinais de autoritarismo da Igreja, mas isso fica totalmente claro onde a mesma tem poder e influência, os membros tem que se tornar meros “robozinhos”, sem nada questionar, não podendo pensar, isso só tende a piorar no Brasil também.