Em algum dia de novembro de algum ano do final da década de 90, minha mãe chegou em casa radiante com uma árvore de natal. Uma vizinha lhe vendera a um preço acessível. Os anos de FHC não haviam sido muito bons para uma casa que tinha como provedor um funcionário público. Qualquer oportunidade de economizar era bem-vinda.
Perguntei a minha mãe o motivo de aquela simpática senhora querer vender aquele símbolo natalino. Segundo minha genitora, o pastor da igreja que minha vizinha frequentava havia ensinado que o verdadeiro cristão não comemora natal, pois Jesus não nasceu em dezembro, e pelo fato do natal ser originalmente uma festa para o deus Sol.
À época, como um adolescente mórmon discípulo de B.H. Roberts e Talmage, eu identificava o 6 de abril como a data do nascimento de Jesus. Se por um lado a suspeita de que Jesus não nascera em dezembro já existia em mim; por outro, era a primeira vez que tomava conhecimento das origens pagãs daquela festa do final do ano.
Pouco tempo depois, teria outro choque de natureza semelhante. Em uma conversa entre dois líderes SUD, ouvi que a cerimônia do templo mórmon havia sido influenciada pela maçonaria. E agora?
Essas experiências foram mudando meu modo de entender a tradição religiosa na qual eu fora criado e contribuíram para uma leitura menos literal que viria a ter das escrituras. Entender o processo de composição dos textos judaico-cristãos e o desenvolvimento de suas teologias nos ajudam a desconstruir as noções austeras daquele líder religioso a quem minha vizinha seguia.
Quando tomamos o Primeiro Testamento como referência, os eventos e lendas nos quais os israelitas saíam fortalecidos eram interpretados como a mão do Todo Poderoso agindo em seu meio, mesmo que isso significasse a morte de uma população inteira [1]. Quando registraram esses episódios, os autores bíblicos fizeram ser vontade de Deus atrocidades capazes de chocar até mesmo o leitor mais belicoso.
Os textos ditos sagrados, pensam os fundamentalistas religiosos, são a pura palavra de Deus. Já muitos céticos, de maneira igualmente fundamentalista, desprezam seu valor por encontrar nesses escritos marcas das mãos humanas. A lógica de muitos é: ou as escrituras e as práticas religiosas são provenientes de Deus ou de homens; ou uma coisa ou outra. Essa polarização do humano versus o divino não é só desnecessária como vai de encontro à concepção semita, de onde vem nosso legado religioso, de que “o divino se revela no humano, e não na negação deste” [2].
Por mais que se aceite que suas composições foram divinamente inspiradas, não se deve esquecer que as escrituras, ritos e concepções religiosas trazem muitas das noções da época e ambiente em que foram produzidas. Era natural que os autores bíblicos olhassem para certas doenças e identificassem-nas como possessões demoníacas [3]; que tivessem uma percepção diferente sobre o movimento dos astros [4]; ou que vissem as divindades dos seus inimigos como demônios [5].
Assim como é estranho para nós hoje vermos um Abraão, devido a esterilidade de sua esposa, ter um filho com outra mulher [6]; um pai justo categoricamente amar um filho mais que os outros [7]; um homem ter mais de uma esposa[ 8]; pessoas justas terem escravos [ 9 ]; a noção de que a mulher tenha que ser submissa ao homem como ao Senhor [10] e que devesse ficar calada na igreja, abrindo sua boca apenas em casa para seu marido [11]; o adultério ser punido com morte [12]; a mãe do Salvador ser uma adolescente [13]; achar que a vontade de Deus se manifesta no ato de “lançar sorte” [14].
Olhar para o passado com nossa ótica de hoje nem sempre é tão adequado, em especial, quando se reconhece a grande distância espaço-temporal entre nós e os escritores das Sagradas Escrituras. Portanto, buscar precisão de noções científicas nesses textos é tão absurdo quanto acreditar que as posições morais e políticas neles encontradas devam ser necessariamente aplicadas nos nossos dias. As escrituras são fontes de inspiração e sabedoria que nos liga a uma tradição antiga, e não um código intocável do qual extraímos todos os detalhes do nosso proceder.
Pode parecer estranho e soar liberal demais essa ideia, não obstante, quando se permite que as mulheres falem na igreja ou quando se acha normal que uma pessoa casada pela segunda vez [15] desfrute plenamente a membresia , já se está fazendo uma leitura seletiva da “palavra de Deus”.
Em relação ao Natal, festa sobre a qual me veio a ideia de escever, parece-me um tanto equivocada a noção de que não deva ser comemorado pelos “verdadeiros cristãos”, com o argumento do caráter sincrético que essa festividade recebeu no quarto século. Por acaso em algum momento o Judaísmo ou Cristianismo não foram sincréticos?
Quando reconheço o sincretismo da tradição Cristã, não quero com isso invalidar ou deslegitimar a religião. Trata-se do reconhecimento de que, não existindo um vácuo cultural, todos nos apropriamos dos elementos a nossa volta. Nesse processo, é natural que certas coisas sejam rejeitadas; algumas, absorvidas e significados diferentes sejam dados a outras. Sendo assim, a religião de Jesus foi enriquecida com as tradições de diversas culturas, absorveu novos conceitos, símbolos e pôde, desse modo, despontar como uma religião universal.
O Cristianismo tanto influenciou quanto foi influenciado pelas religiões das quais foi rival. Diante de um culto a um deus estranho, os seguidores de uma determinada crença tendem a ter um comportamento paradoxal: por um lado rejeitam e demonizam a crença alheia; por outro, absorvem e dão novos significados àquelas práticas.
A região onde se iniciou o movimento de Jesus estava dominada militarmente pelos romanos e culturalmente pelos gregos. O Cristianismo, portanto, surge a partir de um judaísmo já helenizado. Os primeiros discípulos de Jesus interpretaram a vida e ações de seu mestre à luz das escrituras judaicas e desenvolveram sua teologia com forte influência do platonismo helênico. As estruturas organizacionais romanas se fizeram presentes e, claro, se tornaram mais evidentes quando o Cristianismo foi institucionalizado e tiveram seu auge quando este foi adotado como religião estatal.
Quanto à religião da qual o Cristianismo se originou, mesmo bem antes da influência grega, crenças e práticas de outros povos já haviam servido de substrato para o desenvolvimento da teologia judaica, tendo esta sido por demais influenciada pelos mitos e práticas de diversas civilizações que floresceram no Crescente Fértil.
Estórias contadas no Gênesis têm seus correspondentes mesopotâmicos mais antigos [16]. A Lei de Moisés, inclusive, muito se assemelha aos códigos que outras nações já usavam antes do período no qual Moisés supostamente viveu [17]. A própria percepção sobre Satanás foi sendo mudada em consequência do contato dos israelitas com outras culturas. Satã, que estreia na Bíblia como aliado de Jeová, cumpridor de missões específicas, torna-se, nos textos inter e neotestamentários, o arquirrival do Senhor [18].
Ao contrário do Judaísmo, a religião cristã possuía um caráter proselitista muito forte; o que potencializava ainda mais sua chance de sincretismo. Em sua ambição missionária, o afã de poder se expandir fez com que o Movimento de Jesus se adaptasse a uma diversidade de correntes culturais e religiosas. Nessa empreitada, absorveu elementos estrangeiros, não se restringindo puramente à pregação de seu personagem principal.
O Mormonismo, de algum modo, defende que a busca por poder e crescimento fez o Cristianismo ultrapassar algum limite depois do qual a importação de elementos culturais não era mais salutar, contribuindo para chamada Grande Apostasia. Sempre será um imenso desafio estabelecer qual é esse limite. Porém, há de se reconhecer a influência do contexto histórico até mesmo nas tradições religiosas que afirmam manter a “pureza” do Cristianismo Primitivo.
A julgar pela construção de sua teologia, o próprio Mormonismo nos parece campeão em absorver noções da época e lugar em que suas crenças foram se definindo. É facilmente identificável a influência da cultura estadunidense do século XIX, assim como as mudanças de paradigma do século seguinte, na práxis mórmon: palavra de sabedoria, percepções raciais, ritos templários, aparência e vestuário (ex. uso da barba), idade de namoro [19] são alguns exemplos disso.
Seria errado da minha parte, obviamente, reduzir essa importante tradição religiosa a um mero produto de seu tempo, uma vez que em seu meio foram desenvolvidas várias ideias próprias, e toda uma teologia radical que, embora suavizada, permanece no imaginário e na visão mórmon de mundo, na forma de “doutrinas profundas”. Mas isso requereria um post específico.
O nascimento de Jesus
Dos evangelhos canônicos, apenas Mateus e Lucas narram o nascimento de Jesus. Esses dois textos foram produzidos com base no Evangelho de Marcos – o primeiro evangelho canônico escrito -, e na hipotética fonte Q.
Quanto aos pormenores do nascimento de Jesus, é pouco provável que esses evangelistas tivessem arquivos antigos onde pesquisar ou testemunhas a quem consultar. Ao incorporarem elementos fantásticos ao nascimento de Jesus em suas obras, esses autores queriam trazer a ideia de que aquele nascimento havia sido diferente, que Jesus já nascera com o selo de divindade.
A ausência da narrativa do natal no texto marcano e no escrito de João é um sinal de que os evangelhos são mais projetos teólogicos que biografias. Afinal, qual biógrafo em sã consciência omitiria detalhes como o surgimento de uma nova estrela no céu, uma concepção virginal ou que devido ao nascimento do biografado dezenas de crianças foram mortas pelo rei?
Mais do que narrar o que de fato aconteceu, os evangelhos são releituras da vida e obra de Jesus com objetivos catequéticos específicos. Esses textos refletem as percepções, vivências e desafios das comunidades que os produziram; o que explica as diferenças entre um evangelho e outro, assim como suas contradições.
Para a comunidade que produziu o Evangelho de Mateus, Jesus era um devoto judeu que acreditava na Torah e a interpretava aos seus seguidores. A pregação de Jesus consistia, portanto, em dar a lei mosaica outros patamares; sendo Jesus o doador de uma nova lei, que aperfeiçoava e cumpria a anterior. Um paralelo entre Jesus e Moisés é construido. Não foi à toa que, ao contar os primeiros anos do Salvador, o texto mateano revive em Jesus a mesma dramaticidade do nascimento de Moisés, que quase foi morto pelo governante local.
Para que se acomodasse às expectativas messiânicas dos grupos que produziram os textos do nascimento, os evangelistas tornaram Jesus um descendente de Davi e fizeram com que o homem de Nazaré nascesse teologicamente em Belém, Judá. Não só o natalício, mas toda sua vida seria interpretada como o cumprimento de profecias judaicas antigas.
Aproveitando-se de um privilegiado contexto histórico e de um império com certa estabilidade, cujos territórios estavam unidos por importantes portos e por uma grande rede de estradas, os cristãos e suas ideias puderam se espalhar com relativa rapidez.
Muitos foram os momentos de intensa perseguição externa; bem como grandes as diferenças de opiniões entre as comunidades que seguiam Jesus. As ideias mais radicais aos poucos foram se mostrando inviáveis. A prática de Paulo de se “fazer gentio para ganhar os gentios” foi a fórmula adotada. Uma geração de cristãos, que entrou para história patrística como Padres Apologistas, procurou mostrar que o Cristianismo não era uma religião apenas de pobres e analfabetos, que sua teologia não só fazia sentido, como era superior a qualquer uma outra.
É nesse contexto de acomodação, que entendemos o sincretismo que o nascimento de Jesus viria ganhar. Na tentativa de unificar a data da celebração do nascimento do Salvador, o 25 de dezembro foi escolhido pois trazia uma cristianização de festejos do império em homenagem a outros deuses, dentre eles o Sol Invencível, que após um período de longas noites, nascia vitorioso. Ao mesmo tempo que marcava a imposição de um deus sobre outro, apropriava-se da rica simbologia já existente.
Muitos cristãos, à guisa da apropriação paulina do altar ao deus desconhecido em Atenas[20], viram na ideia do Sol Invencível uma oportunidade didática de conversão. Assim como o sol retomava a vitória sobre a noite, o Salvador veio para iluminar as trevas de nossa vida; Cristo, o sol nascente que nos veio visitar.
Além de importar elementos teológicos, o Cristianismo também influenciou as religiões com as quais conviveu. Nos cultos a Mitra, a Isis-Osíris e em outras religiões de mistério, que tiveram grande penetração no Império Romano, Jesus deixou sua marca. Quando recontaram a história de suas divindades, os seguidores desses cultos trouxeram pra si partes das narrativas evangélicas, fazendo de Jesus um protótipo desses deuses. Vale ressaltar que muitos veem esse empréstimo também na direção contrária.[21] Algo que não traz grandes problemas para nosso raciocínio.
Uma outra iluminação – esta proveniente de seres angelicais – antecipa aquilo que será uma constante do ministério do Salvador. Segundo o Evangelho de Lucas, pastores estavam a cuidar de seus rebanhos quando foram surpreendidos pela glória de um anjo que lhes anunciava o nascimento de Cristo-Senhor. De acordo com esse texto, as primeiras pessoas que provaram da luz do natal eram pessoas muito simples, desprovidas de bens materiais, sem qualquer poder religioso ou político.
Ao envolver de luz primeiramente pessoas de tão pouco prestígio na sociedade de então, a estória narrada no terceiro evangelho nos transmite a mensagem da inclusão. Em Jesus, os privilégios advindos de estruturas sociais e eclesiásticas são deslegitimados, os excluídos se incluem. O Natal é a festa de todos.
Mesmo com o sol lá fora, só podemos desfrutar plenamente de sua luz quando abrimos nossas portas, nossa janela. Sigamos os passos do homem que abriu as portas e janelas da fraternidade, do amor; que deu carinho e atenção a todos, sem esquecer daqueles que costumamos ignorar. Nisso consiste o espírito natalino. Como diz o hino 153 do hinário Sud, que há anos minha família vem cantando no natal: “Deixa a luz do sol entrar, deixa luz do sol brilhar dentro de teu coração, pode pouco parecer mais venturas hás de ter, tendo sempre o sol no coração. Tendo o sol no coração, tu verás a doce luz irradiando de Jesus; tuas mágoas longe vão, tendo sempre o sol no coração.”
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[1] Josué 6:21; 10:40. De acordo com essas passagens, Deus havia ordenado a morte de populações inteiras, incluindo crianças e animais.
[2] VASCONCELLOS, Pedro Lima. “O Código Da Vinci e O Cristianismo dos Primeiros Cinco Séculos”. São Paulo: Paulinas, 2006. p. 84
[3] Marcos 9:17-19
[4] Josué 10: 12
[5] Mateus 12:22-24. Episódio em que Jesus é acusado de expulsar demônios por meio de uma divindade cananéia, entendida como “príncipe dos demônios”. Algo semelhante à interpretação que fundamentalistas cristãos fazem dos cultos afro-brasileiros.
[6] Gênesis 6:1-6
[7] Gênesis 37:3
[8] Personagens como Abrão, Jacó, Davi e Salomão tiveram várias esposas. A identificação com os judeus e primeiros cristãos fizeram com que os mórmons vissem a si como a continuação das histórias bíblicas. A consequência disso foi a tentativa de viver em suas comunidades do século XIX práticas austeras e anacrônicas, mas que encontram algum precedente em práticas antigas, mesmo que de maneira distorcida. A poligamia talvez elenque esse quadro.
[9] Levítico 25: 44-48; Colossenses 3:22
[10] Efésios 5:21-22
[11] 1 Coríntios 14:34-35
[12] Levítico 20:10
[13] Segundo um piedoso evangelho apócrifo, Maria, mãe de Jesus, tinha 12 anos quando foi recebida na casa de José, um viúvo idoso. Maria concebe Jesus aos 16. Trata-se do Proto Evangelho de Tiago, texto riquíssimo que, embora não se encontre em nossa Bíblia, é fonte de diversas tradições, incluindo a origem de meu sobrenome, Santana (Santa Ana, mãe de Maria).
[14] Atos 1:24-26
[15] Mateus 5: 31-32; Marcos 10: 1-12; Lucas 16:18
[16] Um exemplo ilustrativo é a Epopéia de Gilgamesh: texto babilônico que narra acontecimentos que muito se assemelham aos da Arca de Noé.
[17] Como o Código de Hamurabi, que antecede em mais de dois séculos o período mosaico.
[18] PAGELS, Elaine. “As Origens de Satanás” Ediouro Publicações S.A. Rio de Janeiro, RJ, 1996. pag. 61-92.
[19] A idade mínima para o namoro no mormonismo contemporâneo coincide com a idade que marca o início da vida adulta da menina americana, o Sweet Sixteen. Muitas moças mórmons aqui no Brasil têm sua festa de debutante adiada em 1 ano. Já no século XIX, temos vários relatos de casamentos entre homens adultos e moças com idade inferior a 16 , incluindo as que foram seladas ao próprio fundador da Igreja.
[20] De acordo com Atos 17, Paulo, em sua tentativa de anunciar Jesus aos atenienses, aproveita-se de um altar que homenageava um “deus desconhecido”. Segundo Paulo, Jesus era o deus a quem eles honravam sem conhecer.
[21] Encontramos esse pensamento em estudiosos como John William Charles Wand, Paul Tillich, Joseph Campbell dentre outros.
Emanoel,
Gostei do seu texto, porém tem alguns pontos que me deixaram a pensar…entre ” ” as palavras de seu texto:
1) “Satan, que estreia na Bíblia como aliado de Jeová, cumpridor de missões específicas”
Bem, Satanás estreia na Bíblia no livro de Jó (o qual se remete a era dos Patriarcas). Apesar de termos a “serpente” no Gênesis e a figura de Lúcifer em Isaías e as referências a maus espíritos nos livros de Reis, Crônicas e Tobias, simplesmente não vejo como o Satanás do livro de Jó seria um “aliado” de Jeová, uma vez que a raiz de seu próprio nome neste livro significa “O opositor, adversário”, tanto na sua versão grega quanto na original em hebraico. Veja a referência do dicionário Strong abaixo:
http://www.blueletterbible.org/lang/lexicon/lexicon.cfm?Strongs=H7854&t=KJV
2) Quanto aos pormenores do nascimento de Jesus, é pouco provável que esses evangelistas tivessem arquivos antigos onde pesquisar ou testemunhas a quem consultar.
Não sei de onde tirou esta afirmação, apesar dos evangelhos terem sido escritos 30 ou 40 anos após o nascimento de Jesus, Lucas deixa claro que baseou seus relatos no testemunho de conhecidos de Jesus:
<Tendo, pois, muitos empreendido pôr em ordem a narração dos fatos que entre nós se cumpriram, segundo nos transmitiram os mesmos que os presenciaram desde o princípio, e foram ministros da palavra,
Eu colocaria a composição dos evangelhos (talvez com uma exceção ao de João) logo após a morte de Cristo e antes da destruição do templo, ou seja entre 40 e 50 AD, onde seria ainda perfeitamente possível Lucas encontrar várias testemunhas a consultar para descrever seu evangelho.
A alta Crítica geralmente coloca os evangelhos após a destruição do templo de Jerusalém (70 AD), alguns mesmos os colocam no fim do século I
Esta percepção para mim é muito difícil de ser aceita por algumas evidência históricas:
1) Paulo em suas epístolas cita várias vezes passagens dos evangelhos, sabemos ainda que Paulo é um assíduo frequentador do templo de Jerusalém, se o templo já tivesse sido destruído quando Paulo escreveu suas epístolas certamente ele teria isto mencionado em alguma parte de suas muitas epístolas. A tradição coloca Paulo e Pedro morrendo na perseguição que Nero fez aos cristãos entre os anos 64 ou 67 AD. Se Paulo conhecia várias passagens dos evangelhos, estes devem ter sido escritos bem antes desta data
2) O pergaminho 7Q5 (Pergaminho 5 da caverna 7 de Quran) pode conter uma passagem do evangelho de Marcos.
http://www.bib-arch.org/online-exclusives/dead-sea-scrolls-13.asp
Como a biblioteca Quran foi selada no ano 68 AD, antes da destruição de Massada, os essênios já consideravam este evangelho suficientemente canônico para enterrar junto com as outras escrituras hebraicas, colocando novamente o evangelho de Marcos para uma data anterior a década de 60 AD.
3) A principal pressuposição dos que defendem uma composição tardia para os evangelhos é o preconceito de que não pode existir alguma coisa como “profecia”. Como os evangelhos claramente citam frases de Cristo sobre a destruição do templo, e como este somente seria destruído no ano 70 AD, a alta crítica simplesmente coloca os evangelhos após esta data, como se as profecias inseridas fosse um pos factum a fim de enfatizar o caráter messiânico e profético de Jesus. Creio que se esse fosse o caso, os judeus e adversários dos Cristãos claramente levantariam esta acusação. Entre as muitas acusações contra os cristãos conhecidas do século I e II não vemos nenhuma de fabricação de falsas profecias, pelo contrário, vemos cristãos reclamando de judeus alterarem seus textos canônicos para que se distanciassem das profecias do AT sobre Jesus.
Olá Marcelo, fico muito feliz que tenha gostado do texto. Conforme você deve ter notado, não foi meu objetivo detalhar cada afirmação que pus no texto. Como duas delas lhe chamaram atenção, permita-me tecer um breve comentário sobre cada uma. Sobre a questão de Satã, entrarei em mais detalhes em um artigo que pretendo escrever sobre o demoníaco na retórica mórmon; quanto à escrita dos evangelhos, pelo que sei, há planos no Vozes Mórmons de se escrever sobre a perspectiva acadêmica à respeito das escrituras.
Nos textos do Antigo Testamento, Satã nem de longe tem a mesma importância e presença que no Novo. Em várias passagens do VT, Iahweh é o único responsável pelo bem e o mal no mundo ( Deuteronômio 28:63; Lamentações 3:33). É com essa ideia em mente que podemos compreender passagens em que espíritos maus provenientes de Deus atacam os homens(I Samuel 18: 10; 19:9; I Reis 22: 21-22), afinal nessa teologia mais antiga, Deus é o senhor do bem e do mal.
Ele muitas vezes enviava certos personagens para que fizessem o trabalho “sujo”, como no caso do “destruidor” enviado para matar os egípcios. Assim como o “destruidor”, Satanás nos parece um personagem que cumpre missões específicas, que embora necessárias no contexto teológico, não são apreciadas pelos homens.
Um episódio da época de Davi, que é narrado em duas passagens diferentes, parece corroborar nosso raciocínio: I Crônicas 21:1 e 2 Samuel 24:1. Segundo esta, a Ira de Deus incitou Davi a levantar um censo; já a primeira culpa Satã. Afinal, quem incitou o censo, Satã ou a Ira de Deus?
Na estória de Jó, citada pelo nobre colega, Satã faz jus a etimologia: ser um OPOSITOR. Só não vejo nessa estória Satã como rival de Deus nos moldes dos textos neotestamentários; Deus e Satã conversam, combinam, fazem de Jó um objeto de estudo, no qual são cúmplices. Se não podem ser considerados amigos, são pelo menos colegas que se aliam em um experimento no qual Satã age sob as asas do Todo Poderoso.
Em Zacarias 3:1, Satã aparece mais uma vez como uma espécie de promotor publico. Ou seja, Satã, como promotor, faz oposição ao réu, não ao Juiz (Deus). Portanto, o Satã de Jó e de Zacarias é digno de ser chamado OPOSITOR; porém é opositor do homem, embora concorra para o que as escrituras entendem como o bem da humanidade.
Somente quando se aproxima o período de Jesus, a demonologia babilônica e a influência grega, assim como eventos da história judaica, farão com que Satanás aumente sua importância e se torne o arquirrival de Deus; que é o quadro que vemos no NT.
A mensagem que fez o Cristianismo ganhar o mundo era a que Jesus havia ressuscitado; de início, seu nascimento pouco importava a seus discípulos. A ressurreição foi que lançou luz sobre sua vida. Ele ressuscitou, mas quem foi ele?
Com o tempo foi surgindo a necessidade de se contar e se registrar as palavras e eventos da vida do mestre. Pessoas que conviveram com Jesus serviram de fonte para contar as experiências que tiveram com o Salvador. Fatos reais, modificações da história quando passada de boca a boca, lendas e uma boa dose de criatividade foram os ingredientes da composição dos evangelhos.
O evangelho canônico mais antigo que temos é o de Marcos, que nada fala sobre o nascimento de Jesus. Outros textos que podem ser mais antigos, como o apócrifo evangelho de Tomé- que enfatiza os ensinamentos do Salvador-, ou as epístolas genuinamente paulinas, que enfatizam o significado de sua morte e ressurreição, pouco ou nada falam sobre o natal; tudo isso, aliado a minha crença de que os evangelhos foram escritos mais tardiamente (que podemos comentar em um texto mais específico sobre o NT) me leva a crer que os pormenores do nascimento de Jesus, em especial os elementos fantásticos pouco tem a ver com história e, portanto, conforme mencionei, não foram tirados de fontes provenientes de testemunhas oculares do evento.
Sendo assim, os elementos fantásticos do Natal me parecem ter sido criados após a morte do Salvador como projetos teológicos, que visavam mostrar que desde o nascimento Jesus já trazia a marca de divindade.
Excelente texto, Manoel. Poste mais, sua linha de raciocínio e conhecimento histórico são extremamente bem-vindos.
Olá Emanoel,
Concordo com você com que os relatos do “Natal” possam ter incorporado dados mais “místicos” do que históricos a medida que os entrevistados por Lucas e demais evangelistas recontam uma história com um hiato de 35 a 50 anos. Nos evangelhos da infância de Jesus este fantástico é ainda mais evidente, tão evidente que a própria Igreja antiga os rejeitou.
Agora com relação ao papel de Satanás no VT creio que temos uma leitura um pouco diferente. A competição entre Satã e Deus pela alma de Jó é claramente uma metáfora da disputa de ambos pela alma do homem, e creio que se relaciona muito bem com I Cor. 10:13 (não é permitido ao homem sofrer uma tentação superior àquela que possa suportar). Concordo com você que é difícil extrair o real papel de Satanás (o opositor) dos livros de Reis e de Crônicas, onde as passagens são contraditórias (Satã ou Deus inspira Davi a realizar o censo? Espírito maligno da parte de Deus…?). No Gênesis a serpente é claramente colocada como inimiga da semente da mulher (do homem). Em Isaías 14, Lúcifer, claramente é comparado com Athar, o feroz, o deus Cananita que quis subir até o trono de Baal e é punido e lançado à terra. Há uma figura contemporânea na religião Cananita que se assemelha a Helel em Isaías 14. A figura é ‘Athtar. Em determinado ponto do mito Cananita, ‘Athtar tenta sentar no trono de Ba’al, o rei dos deuses. Ele falha em sua tentativa, e ao invés disso desce à terra para lá reinar (veja a semelhança também com Loki, Odim, Asgard e Midghard na mitologia nórdica). ‘Athtar é conhecido em inscrições do sul da Arábia como Vênus, ou a estrela da Manhã. Mais do que isto então, formam o contexto do relato de Isaías (ele compara a ambição do rei da Babilônia com a de Lúcifer). As “estrelas de Deus” é uma referência à assembléia divina – todas as divindades dos céus. O monte da congregação da banda do norte (no original em Hebreu) é equivalente a frases Cananitas descrevendo o lugar de habitação de Ba’al. Então, em efeito, temos em Isaías a descrição de uma divindade quem desejava usurpar o trono de Ba’al e reinar nos céus. Claro que existem diferenças assim como semelhanças, mas acho este argumento perfeitamente convincente para mim.
Para ler mais sobre isto: “The Mythological Provenance of Isa. XIV 12-15: A Reconsideration of the Ugaritic Material” by Michael S. Heiser, in Vetus Testamentum, 51/3 [2001], p. 354-369).
Ao mesmo tempo, esta percepção parece ter sido a mesma que vemos no Novo Testamento quando vemos Jesus clamar que viu Satanás “cair como um raio do céu” (Lucas 10:18) e em João (João 12:31; 14:30; 16:11) e Paulo (Efésios 2:2) encontramos Satanás descrito como o “Príncipe deste mundo.” Paulo ainda em sua epístola a Timóteo relata que o grande pecado de Satanás foi a soberba (I Timóteo 3:6). Foram estas referências (entre outras) que levaram os patriarcas da igreja Cristã concluírem que Helel em Isaías 14 era Lúcifer e também Satanás.
Por este motivo não vejo tanta distinção entre o opositor no VT e no NT, vejo esta distinção apenas na leitura protestante que é feita destes 2 testamentos. Na leitura mórmon, claramente Satã é um mal necessário para o crescimento do homem (II Néfi 2:11) , onde podemos chegar a conclusão que até mesmo ele tem seu papel dentro do plano de Deus…
Ótimo texto. Nos dá um ponto de vista mais equilibrado sobre os acontecimentos bíblicos, especialmente o relato do nascimento de Jesus. Parabéns, Emanuel.