A diversidade de nomes e títulos atribuídos à deidade pelas escrituras e as diferentes interpretações que estas recebem podem tornar difícil a identificação exata de quem é quem e gerar um longo debate teológico, como tem acontecido na tradição cristã. Os santos dos últimos dias, os quais acreditam na existência de seres distintos e na consequente distinção entre o Pai e o Filho, também são apanhados nesse debate, especialmente no que se refere à identidade do Deus adorado pelos antigos patriarcas e as gerações de israelitas descritos na Bíblia hebraica ou Velho Testamento.
Algumas fórmulas procuram simplificar e uniformizar a leitura das escrituras no que concerne à identificação do Pai e do Filho, com a identificação promovida pela Igreja SUD, no séc. XX, de Jeová como o nome de Cristo antes de seu nascimento mortal e a afirmação de que ele é o Deus do Velho Testamento. Em conformidade com esse raciocínio, surgiu também a afirmação de que Jesus Cristo, e não Deus, o Pai, teria sido o Criador da terra.
Muitos santos dos últimos dias ficariam surpresos em saber que Joseph Smith não é o autor de tal teoria ou doutrina. O Profeta atribuía o papel de criador ao Pai, e não a Cristo, e era ao mesmo Pai que Joseph Smith se dirigia com o nome Jeová.
Tentarei questionar, pelas escrituras e citações a seguir, três afirmações que se tornaram senso comum na Igreja SUD mas que, ao meu ver, carecem de embasamento escriturístico e doutrinário:
– que Cristo é o Deus do Velho Testamento;
– que Jeová é o Cristo pré-mortal;
– que Cristo é o Criador.
Evasão e explicações pouco condizentes com o evangelho restaurado têm sido utilizadas para sustentar as doutrinas acima, ao ponto de que elas acabam sendo propostas como “provas de fé” ou afirmações que devem ser aceitas simplesmente porque são ensinadas na Igreja.
Não tenho um conhecimento profundo do texto bíblico. Desprovido de uma abordagem acadêmica, meu texto também diverge em propósito da esperada série sobre o Novo Testamento, por Marcello Jun; inicio aqui um debate doutrinário que lida com textos e crenças. Minha exposição, portanto, é a de um simples leitor das escrituras, leigo e curioso. Estou, por isso, aberto à crítica daqueles que quiserem compartilhar seu conhecimento ou questionar as afirmações do meu texto. Desnecessário dizer que, como qualquer texto neste blog, este reflete as ideias de seu autor e não pretende representar o pensamento de outros colaboradores.
Como alguém que acredita na realidade espiritual da restauração encabeçada pelo Profeta Joseph Smith, não pretendo me contrapor à Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias em sua missão divina, mas reconheço também o seu aspecto humano, bem como sua capacidade de aperfeiçoamento. Assim, aplico à Igreja as palavras de Morôni na folha de rosto do Livro de Mórmon:
E agora, se há falhas, são erros dos homens; não condeneis portanto as coisas de Deus, para que sejais declarados sem manchas no tribunal de Cristo.
“O Deus do Velho Testamento”
O Velho Testamento é muitas vezes concebido como um livro estritamente monoteísta. Dessa forma, todas as referências a um divindade verdadeira – em contraposição aos deuses falsos adorados por outros povos – fariam referência ao mesmo e único Deus. Há muitas evidências, no entanto, que mostram o conhecimento de uma pluralidade de deuses e particularmente da existência de dois Deuses sobre a Casa de Israel.
No Salmo 82, por exemplo, lemos que sobre um Deus que está em meio a outros deuses:
Deus está na congregação dos poderosos; julga no meio dos deuses.
O mesmo salmo afirma a divindade da espécie humana, descendente de seres celestiais:
Eu disse: sois deuses, e todos vós filhos do Deus Altíssimo.
Nos chamados salmos messiânicos, a vinda de um futuro libertador é profetizada de forma poética. Esse messias não é retratado como um homem comum, mas um homem que, embora se faça mortal, é um deus que vem redimir seu povo. No salmo 45, o messias é chamado de Deus, e aquele que o envia à terra recebe o mesmo tratamento:
O teu trono, ó Deus, é eterno e perpétuo; o cetro do teu reino é um cetro de equidade.
Tu amas a justiça e odeias a impiedade; por isso Deus, o teu Deus, te ungiu com óleo de alegria mais do que a teus companheiros. (Salmos 45:6-7)
O salmista inicialmente se dirige a Deus para falar de seu poder; mas esse Deus tem também o seu próprio Deus, aquele que o unge. O Deus ungido – o messias, de acordo com a interpretação cristã – recebe de seu Pai, um Deus maior, direitos e deveres que ultrapassam os dos demais deuses antes aludidos, “companheiros” do Deus Messias.
Identificando esse Deus Filho aguardado por séculos como o Messias nascido em Belém, entendemos que Cristo é, sem dúvida, um dos Deuses verdadeiros sobre o qual fala o Salmo 45. Em outras palavras, Jesus Cristo é um dos Deuses do Velho Testamento. Caso repetíssemos a afirmação de que Ele é o Deus adorado no passado israelita, estaríamos ignorando que o povo do convênio na antiguidade adorava Deus, o Pai, negando que a plenitude do evangelho tenha existido antes do nascimento mortal de Cristo. Ou, ainda, estaríamos colocando um limite ao Pai, ao sugerir que Ele não se comunicava com seus filhos diretamente.
Seria, portanto, correto afirmar que em todas as interações de Deus com o homem, como registradas no texto bíblico, era Jesus quem agia, ao invés de seu Pai? Em caso afirmativo, seria de se esperar que o próprio Jesus declarasse isso em seu ministério mortal ou, pelo menos, que seus apóstolos o fizessem. No entanto, muitas evidências do Novo Testamento vão na direção oposta.
Paulo, em sua epístola aos hebreus, afirma que Deus, o Pai era quem falava aos antigos profetas israelitas. Assim como os profetas haviam sido porta-vozes do Pai, o próprio Filho de Deus havia tomado diretamente esse papel em seu ministério mortal:
Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, a nós falou nestes últimos dias pelo Filho. (Hebreus 1:1)
Em Atos 3, temos a narrativa de Pedro falando às portas do templo de Jerusalém. Diante do público judeu que conhecia as escrituras do Velho Testamento, Pedro fala sobre Cristo ter sido glorificado pelo Deus dos antigos patriarcas bíblicos:
O Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, o Deus de nossos pais, glorificou a seu filho Jesus, a quem vós entregaste e perante a face de Pilatos negastes, tendo ele determinado que fosse solto. (Atos 3:13)
Pelas palavras de Pedro, Jesus é o filho do mesmo Deus adorado pelos patriarcas da Casa de Israel. Em outra ocasião, falando aos membros do sinédrio, o mesmo Pedro, em um discurso semelhante, menciona a ressurreição de Cristo, a qual foi efetuada por seu Pai:
O Deus de nossos pais ressuscitou a Jesus, a qual vós matastes, suspendendo-o no madeiro. (Atos 5:30)
Nas escrituras acima, “O Deus de Abraão, Isaque e Jacó” ou “o Deus de nossos pais” não é o mesmo Jesus Cristo; mas seu Pai, conforme Pedro. Ou seja, nessas passagens Cristo não é identificado como o Deus que interagiu com os patriarcas ancestrais do povo israelita. Nelas há a firmação de que Cristo foi enviado à mortalidade e ressuscitado por esse mesmo Deus do qual fala o Velho Testamento. O Deus adorado pelos ouvintes de Pedro, aquele que pode ser chamado de “o Deus do Velho Testamento” é, na verdade, Deus, o Pai.
Contradições em publicações
Ainda que a Igreja afirme insistentemente que o Deus que ministra aos personagens do Velho Testamento é Jesus Cristo, em suas publicações, as contradições ocorrem naturalmente. No “Topical Guide”, parte da edição completa das obras-padrão em inglês, o tópico “God, Body of – Corporeal Nature” (Deus, Corpo de – Natureza Corpórea) lista escrituras do Velho Testamento em que Deus é visto pessoalmente, como no relato de Moisés (Êxodo 33:11,23). Se aceitarmos que aquele Deus é Cristo, então não há nenhuma evidência da natureza corpórea de Deus, mas do espírito de Jesus Cristo.
O artigo “Examining Six Key Concepts in Joseph Smith’s Understanding of Genesis 1:1”, de Kevin L. Barney, pode auxiliar na compreensão do assunto aqui abordado.
https://byustudies.byu.edu/showTitle.aspx?title=6671
Obrigado pela referência, Anderson. Vou ler assim que puder. Abraço!
Sem uma analise das escrituras em seu idioma original e de fatores que incluem os costumes e crenças dos povos que escreveram elas, qualquer tipo de conclusão pode ser equivocada…
Estou de pleno acordo com a necessidade de nos referirmos ao que diz o texto em si, ao invés (somente) o que dizem as interpretações e tradições construídas em torno do texto. Para isso, os idiomas originais são imprescindíveis. Lembro da afirmação de Joseph Smith que os mórmons creem na Bíblia e não em suas interpretações da Bíblia. Talvez devêssemos honrar mais essa ideia e continuar aprendendo sobre ela, inclusive a partir de fatos referentes à autoria, trazidos à luz pela análise histórica e textual. Ou esses seriam fatos a temer?
Nesse sentido eu faria duas observações:
– muito do que pensamos sobre texto bíblico é baseado em nossa leitura de traduções e isso é logicamente natural, esperado, pelas nossas próprias limitações culturais (meu pobre semestre de “Elementos de Grego” na graduação e dois semestres de hebraico moderno na extensão da UFRGS não são de muita ajuda para meu entendimento da Bíblia!);
– pela sede da Igreja sud estar nos EUA e sua liderança mundial ser majoritariamente de língua inglesa – em claro contraste com a maioria dos seus membros -, somos em grande parte influenciados por leituras, interpretações doutrinárias oriundas da língua inglesa (mais tarde gostaria de explorar alguns exemplos mais concretos disso).
Abraços!
O conceito básico de que os antigos Hebreus do período patriarcal acreditavam em uma pluralidade de Deuses tem sido aceito no meio acadêmico nos últimos tempos. Como e porque a forma plural passou a ser usada em sentido singular (e se realmente passou a ser) quando se referindo ao ‘Deus de Israel’ pouco se sabe.
Fato é que Joseph Smith reconhecia dentre os Deuses do período patriarcal a existência de um Deus Supremo.
O artigo sugere que durante o período patriarcal os escritos referiam-se a esse Deus Supremo como El, Elohim, El Elyon ou El combinado com outros cognomes como, por exemplo, El Olam e El Shaddai. A melhor interpretação para El Elyon seria “El, o Mais Elevado” ─ um nome próprio seguido de uma descrição ─ traduzido para “Altíssimo” na tradução de João Ferreira de Almeida.
O panteão hebraico parece ter consistido em um extenso número de Deuses sem nome ― que eram “comuns” ― e um pequeno número de Deuses com nomes ― que eram os principais (incluído entre eles El e Yahweh).
Joseph Smith também ensinou que um Deus foi designado para nós. O artigo faz menção à seguinte escritura:
“When the Most High [Elyon] gave to the nations their inheritance, when he separated the sons of men, he fixed the bounds of the peoples according to the number of the sons of God [Elohim]. For the LORD’S [YHWH] portion is his people, Jacob his allotted heritage” (Deuteronomy 32:8-9; Revised Standard Version).
Segundo o artigo, alguns acadêmicos interpretam essa passagem como “El (…) designando seu filho Yahweh para Israel”. Kevin L. Barney menciona, inclusive, que essa é a concepção mais próxima da visão de Joseph Smith.
Seguindo o raciocínio apresentado no artigo, poderíamos concluir que El verdadeiramente pode ser associado com o Deus Supremo, que nós costumamos chamar de Pai Eterno ou Pai Celestial, e Yahweh com seu Filho escolhido para ser o Governante do povo de Israel, ou seja, para nós, Jesus Cristo.
Se posteriormente El e Yahweh foram unidos para formar um único Deus, conhecido como Yahweh Elohim (SENHOR Deus), não vem ao caso, posto que a expressão “O Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, o Deus de nossos pais (Atos 3:13)” pode muito bem estar se referindo a esse período patriarcal politeísta em que o Altíssimo (El Elyon) teria designado o Senhor (Yahweh) para governar Israel.
Pessoalmente estou propenso a acreditar que, em grande parte (se não a maior parte) das tradições da época do Velho Testamento, El e Yahweh tenham mantido suas identidades distintas.
Ademais, as escrituras a seguir reforçam essa ideia e esclarecem o assunto:
1. “Eu sou o SENHOR [YHWH] e fora de mim não há Salvador” (Isaias 43:11).
2. “E vimos, e testificamos que o Pai enviou seu Filho para Salvador do mundo” (I João 4:14).
Muito provavelmente Joseph Smith tenha realmente acreditado durante um tempo indeterminado que Jeová era o Deus Altíssimo. Particularmente, todas as evidências levam-me a crer que no dia 7 de abril de 1844 a concepção de Jeová como Jesus Cristo havia sido definitivamente adotada por ele.
Com relação à questão de que o Deus Altíssimo organizou esse mundo por intermédio de Jesus Cristo, não há dúvidas de que seja uma doutrina correta, conforme relatado pelo Novo Testamento (João 1:1-4, 14; Hebreus 1:1-3); se Paulo, estando em meio às tradições da época, não identificava problemas entre esse princípio e as escrituras do Velho Testamento, então eu muito menos.
😉
Até mais!
Esse é o ponto de vista que acredito mais coerente com o registro escriturístico antigo e “moderno”, a saber, que o Deus adorado pelos povos do Antigo Testamento se tratava de Jeová, o Deus Pai. Já quanto a questão da criação penso que Cristo, e outros deuses (ou “anjos”, “seres espirituais poderosos”, como preferirem) como Adão e Noé, desempenharam um papel fundamental como colaboradores. Afinal, o relato de Gêneses fala de Elohim como criador – termo que, para Joseph Smith, não se referia a um único personagem, mas a um conselho de Deuses. Entretanto, não podemos ignorar que o Salvador, em seu estágio pré-mortal, tenha interagido com os seres humanos, mesmo agindo “no lugar” de Deus – como quando Moisés tornou-se “Deus” para Faraó (Êxodo 7:1). Paulo fala que durante a jornada do povo de Israel no deserto “todos beberam de uma mesma bebida espiritual, porque bebiam da pedra espiritual que os seguia; e a pedra era Cristo” (II Coríntios 10:6). Ou seja, o Cristo pré-mortal ministrou pessoalmente no período compreendido pelo Velho Testamento. Outra coisa comum na narrativa vetero-testamentária é a aparição de anjos, ou outros servos devidamente autorizados, que agem e falam como se fossem o próprio Deus, por exemplo, no caso em, que Jacó lutou com o anjo e diz-se que “lutou com Deus” (Peniel) ou no caso citado anteriormente de Moisés.
Leonel,
a sua argumentação vai numa direção similar ao que acredito. Algumas escrituras sugerem a atuação de “dois deuses” no Antigo Testamento.