A crença na origem israelita dos povos ameríndios e a prática do casamento plural são certamente duas características marcantes da experiência mórmon. Embora nenhuma das duas tenha uma origem exclusivamente mórmon, Joseph Smith deu a elas aplicações e sentidos únicos. Poucos entre nós estão familiarizados, no entanto, com a conexão histórica entre as duas doutrinas; tampouco a influência do Livro de Mórmon na instituição do casamento plural parece ter sido avaliada com a devida consideração.
A primeira revelação conhecida a aludir à prática da poligamia (ainda que sem mencioná-la explicitamente) ordenava que um grupo de missionários da jovem Igreja de Cristo buscasse esposas indígenas para que sua descendência pudesse retornar a um estado de pureza e retidão, conforme profetizado no Livro de Mórmon. O casamento divinamente ordenado entre mórmons e índios seria o meio de tornar isso realidade. No cabeçalho da seção 132 de Doutrina e Convênios, lê-se a afirmação de que “é evidente, pelos registros históricos, que as doutrinas e princípios envolvidos nesta revelação [de 1843, sobre o casamento celestial plural] eram do conhecimento do Profeta [Joseph Smith] desde 1831”. Embora durante o processo de tradução do Livro de Mórmon, Joseph Smith já tivesse se deparado com a questão da pluralidade de esposas [1] – o que antecederia a 1829 seu primeiro contato com tais “doutrinas e princípios”–, é significativa a menção de 1831, ano em que se vislumbram os primórdios do casamento plural mórmon. É nesse ano que Joseph e Emma vão para o estado de Ohio, onde Joseph conheceria a maior parte de suas futuras esposas plurais. É também de 1831 a revelação analisada a seguir.
Leia também: mitos populares mórmons sobre poligamiaNa região oeste do condado de Jackson, no Missouri, junto a um grupo de missionários que incluía Oliver Cowdery e William W. Phelps, Joseph Smith recebeu uma revelação em que Jesus Cristo os ordena a desposar mulheres dentre os indígenas. Uma vez que muitos dos missionários já eram casados, seguir o mandamento dado faria deles polígamos:
Em verdade, em verdade, diz o Senhor, vosso Redentor, o próprio Jesus Cristo, a luz e a vida do mundo que não podeis discernir com vossos olhos naturais, o desígnio e propósito de teu Senhor e teu Deus em trazê-los ao ermo, para uma prova de vossa fé – e para serdes testemunhas especiais para prestar testemunho desta terra, sobre a qual a Sião de Deus deverá ser construída nos últimos dias, quando for redimida.(…) Em verdade vos digo que a sabedoria do homem, em seu estado decaído, não conhece os propósitos e privilégios do meu santo sacerdócio, mas vós sabereis quando receberdes uma plenitude em razão da unção; pois é minha vontade que, em tempo, deveis tomar para vós esposas dentre os lamanitas e nefitas, para que sua posteridade possa tornar-se branca, deleitosa e justa, pois mesmo agora suas mulheres são mais virtuosas do que as gentias. [2]
Embora não saiba quantos naquele momento de fato tentaram seguir a admoestação divina ou que sucesso obtiveram, essa constitui a primeira revelação moderna de que se tem registro em que a pluralidade de esposas é aludida. É interessante que antecedendo o mandamento de unir pelo matrimônio mórmons e indígenas haja a referência inicial à futura cidade de Sião, já que de acordo com desenvolvimentos doutrinários posteriores, a Nova Jerusalém seria construída conjuntamente pelos santos dos últimos dias e os lamanitas. [3] Afinal, os indígenas são vistos como indivíduos “mais virtuosos” do que os norte-americanos brancos, sendo a posteridade de antepassados hebreus que haviam colonizado o continente. As mulheres indígenas serem consideradas “mais ‘virtuosas’ do que mulheres gentias contemporâneas é surpreendente”, afirma o historiador B. Carmon Hardy, “dada a percepção comum, datando do período colonial” de uma suposta imoralidade sexual entre as indígenas. [4] Isso de fato nos faz questionar a posição de alguns autores, como Fawn Broadie, por ex., que consideram que as visões raciais mórmons não diferiam daquelas predominantes nos EUA entre sua população branca do séc. XIX, em que indígenas estavam acima dos negros numa imaginada escala de moral e inteligência.
Ainda que não possamos ignorar a influência cultural de seu lugar e época, a visão mórmon sobre os indígenas dificilmente poderia ser encaixada com perfeição no paradigma cultural norte-americano da época. Como lembra Richard Bushman, de acordo com o Livro de Mórmon, “os índios, alvos de preconceito, são também os verdadeiros proprietários das terras, aos quais os gentios devem se juntar ou perecer”. [5]
O mandamento de desposar as mulheres “lamanitas e nefitas” é exposto como um dos “privilégios do meu santo sacerdócio”, ainda não compreendidos pela Igreja. A ideia do casamento plural como um privilégio ou lei terá eco por toda a história da prática. [6] O entendimento futuro sobre tal lei viria de uma “plenitude da unção”, sugerindo novamente que a compreensão dos santos sobre o sacerdócio era ainda incompleto. Uma década depois, começaria a se desenvolver de forma explícita o conceito de que o casamento plural é um dos elementos que constituem a plenitude do evangelho. [7] O propósito da união com as mulheres indígenas, de acordo com o texto da revelação é que “sua posteridade possa tornar-se branca, deleitosa e justa”. Aqui surge claramente um eco do Livro de Mórmon, em que a profecia sobre a futura restauração da casa de Israel a seu antigo status e relacionamento com Deus inclui a descendência dos antigos habitantes das Américas:
E então os remanescentes de nossa semente terão conhecimento de nós (…). E o evangelho de Jesus Cristo será proclamado a eles; portanto o conhecimento sobre seus pais lhes será restituído, como também o conhecimento sobre Jesus Cristo, que seus pais possuíam. E aí se regozijarão; (…) e antes que se passem muitas gerações, tornar-se-ão um povo branco e agradável. [8]
Essa transformação da aparência física dos lamanitas ocorre em dado momento da narrativa do Livro de Mórmon, quando a sua conversão os leva a se unirem aos nefitas. Como resultado dessa união, “seus filhos e filhas tornaram-se sumamente belos”, uma afirmação que sugere a união entre lamanitas convertidos e nefitas como algo também físico, através do matrimônio entre as duas linhagens:
E acontecei que os lamanitas que se haviam unido aos nefitas foram contados com os nefitas; E a maldição foi retirada deles e sua pele tornou-se branca como a dos nefitas; E seus filhos e filhas tornaram-se sumamente belos e foram contados com os nefitas. (…) [9]
Ao ordenar que missionários brancos desposassem mulheres descendentes dos antigos “lamanitas e nefitas”, a revelação de 1831 não apenas retoma a profecia de que sua posteridade seria novamente “branca e deleitosa”, mas ordena o meio para que viesse a acontecer, com paralelos que podem ser traçados com a narrativa do Livro de Mórmon. A revelação não foi publicada em Doutrina e Convênios ou nos periódicos da Igreja, de modo que nunca se tornou de conhecimento comum dos membros ou autoridades gerais.
O texto da revelação que chegou até nós é parte de uma carta escrita por William W. Phelps, narrando os fatos acontecidos 30 anos antes, e endereçada a Brigham Young. Tendo tomado conhecimento da doutrina exposta na revelação através da carta de Phelps ou em outro momento anterior, o fato é que algumas doutrinas ensinadas por Brigham Young no oeste sugerem que ele também acreditava no princípio de trazer uma posteridade “branca e deleitosa” para os indígenas, embora o pragmático Brigham Young não tivesse estabelecido uma relação com os indígenas desprovida de muitas ambiguidades.
Muito da atitude mórmon no território de Deseret não estava imune ao sentimento de superioridade compartilhado pelos “gentios” em relação aos povos indígenas. Mesmo assim, a miscigenação com as tribos locais foi buscada. A seguinte observação de T. B. H. Stenhouse, em seu livro de 1873, mesmo que repleta de ironia, parece ser verossímil sobre a aplicação do mesmo princípio exposto na revelação de 1831, décadas depois, por parte do apóstolo Heber C. Kimball no proselitismo entre os indígenas do oeste:
Ele [Brigham Young] enviou certa vez uma missão para Fort Linahi, Salmon River. (…) Quando Brigham e Heber depois visitaram os missionários para ver que sucesso estavam tendo, Heber, em seu estilo peculiar, lhes disse que não via como as predições modernas poderiam ser cumpridas sobre os índios se tornarem “um povo branco e deleitoso” sem estender a poligamia aos nativos. A chegada do exército dos Estados Unidos, em 1857, contribuiu para acabar com aquela missão, mas não antes da sugestão de Heber ter sido claramente compreendida e a profecia meio cumprida! Heber era muito prático e acreditava que as pessoas nunca deveriam pedir “ao Senhor” para fazer por elas aquilo que poderiam fazer por si mesmas e, uma vez que toda Israel estivera orando para que os índios se tornassem prontamente um “povo branco e deleitoso”, ele pensava ser dever dos missionários auxiliar “o Senhor” a cumprir suas promessas. (…) Mais de um missionário parece tê-lo entendido perfeitamente! [10]
Pela revelação de 1831, percebe-se que um importante elemento do Livro de Mórmon estava relacionado ao início da história do casamento plural. O fato pode ser surpreendente para os que, numa leitura rápida, se acostumaram a ver na narrativa de Jacó uma condenação da poligamia. A necessidade que sentiam os pioneiros de cumprir a profecia do registro nefita e agir pela salvação da posteridade de Leí, para que voltasse a ser “branca, deleitosa e justa”, lançava os alicerces do que ainda viria a ser um dos fundamentos da religião dos santos dos últimos dias, o casamento plural. A doutrina sobre o selamento ou a eternidade do matrimônio ainda estava muito longe de ser revelada ou desenvolvida; o texto da revelação, porém, aponta para um tempo futuro em que seria revelada uma “plenitude” e os “privilégios do sacerdócio” seriam ensinados e vividos, abrindo espaço para futuros desenvolvimentos e releituras. O entendimento histórico da revelação aqui analisada mostra como a doutrina do casamento plural já era vislumbrada no início da Igreja de modo muito mais concreto do que se imaginava.
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[1] Em Jacó 2:22-35, a prática desautorizada do casamento plural é condenada. É feita a afirmação de que “se eu [o Senhor] quiser suscitar posteridade para mim, (…) ordenarei isso ao meu povo” (versículo 30).
[2] Revelação dada por intermédio de Joseph Smith, no Condado de Jackson, Missouri, em 17 de julho de 1831. Relatada por William W. Phelps em carta a Brigham Young, em 12 de agosto de 1861. Collier, Fred. Unpublished revelations, 10:4, p.58. Leia aqui o texto completo da revelação em português.
[3] Em muitas afirmações, os lamanitas são os principais responsáveis pela construção de Sião, enquanto os efraimitas brancos têm um papel coadjuvante. Ver, por exemplo, Orson Pratt, Journal of Discourses 9:178, em julho de 1855: “Acredito com todo meu coração (…) que este povo será nosso escudo em dias futuros. (…) Vocês não sabem que (..) aqueles que abraçam o Evangelho dentre os gentios terão o privilégio de ajudar os lamanitas a construir a cidade chamada de Nova Jerusalém?”. Falecido em 2010, o ex-setenta George P. Lee, de origem navajo, questionava a hierarquia sud no que se referia ao abandono desta e de outras doutrinas relativas aos indígenas.
[4] Hardy, B. Carmon. Doing the works of Abraham. Arthur C. Clark, 2007, p. 35.
[5] Bushman, Richard Lyman. Joseph Smith: rough stone rolling. Alfred A. Knopf, 2005, p. 99.
[6] D&C 132:58,64 fala da pluralidade de esposas como “a lei de meu sacerdócio”. O uso da palavra “privilégios” também é comum entre os relatos dos primeiros poligamistas mórmons para se referirem à prática.
[7] D&C 132:6: “E quanto ao novo e eterno convênio, foi instituído para a plenitude de minha glória; e aquele que recebe sua plenitude deve cumprir a lei e cumpri-la-á; caso contrário, será condenado, diz o Senhor Deus”.
[8] 2 Néfi 30:4-6. Já antes de 1978, a edição sud do Livro de Mórmon havia mudado “branco e agradável” para “puro e agradável”, como consta na edição atual. Outra mudança se de em dezembro de 2010, quando algumas referências raciais foram removidas de alguns cabeçalhos de capítulos do Livro de Mórmon. Os cabeçalhos não são originalmente parte do Livro de Mórmon. Várias referências à pele clara ou escura de nefitas e lamanitas permanecem na narrativa em si.
[9] 3 Néfi 2:14-16.
[10] The Rocky Mountain saints, p. 657-659.
Antônio, excelent post.
Esse tema racista de pessoas “brancas e deleitosas” não é exclusividade Mórmon, infelizmente. Dê uma olhada nesse produto Indiano para… aham, higiene pessoal.
O Livro de Mórmon então é um livro racista?, Ou quem escreveu era racista? (Não necessariamente Mórmon, pois ele compilou)., e a Igreja era racista?. Seriam por esses motivos que os negros não recebiam o sacerdócio até 1978?
Marcos,
não há relação entre a narrativa do Livro de Mórmon (com sua interpretação nas relações entre mórmons e ameríndios) e a percepção dos negros africanos (e consequente banimento do sacerdócio). Nos dois casos são percepções raciais (racialistas? racistas?), mas sem relação direta.
O Livro de Mórmon nesse sentido seria tão “racista” quanto a Bíblia na sua visão das diferentes linhagens e a semente de Jacó tendo precedência sobre outras linhagens.