‘Paulo, Apóstolo de Cristo’ está mais à Coca-Cola que à Bíblia

O cartaz de Paulo, Apóstolo de Cristo mostra um Paulo com olhar determinado (James Faulkner) olhando diretamente para o espectador. Lucas, interpretado por Jim Caviezel, (Jesus em A Paixão de Cristo), parece resoluto ao seu lado. Dois atores brancos, bonitos, e castigados pelo sol, com narizes fortes e queixos fortes, interpretam heróis da fé cristã.

O que poderia estar errado aqui?

Em termos de precisão histórica, há muita coisa errada. E muito em jogo. Paulo, Apóstolo de Cristo é um entre muitos numa crescente onda de filmes bíblicos que romantizam e distorcem o passado, e ainda arriscam causar danos atuais. Esses filmes são como refrigerantes: doce, fácil de engolir, mas prejudicial se parte de uma dieta constante.

Cartaz de “Paulo, Apóstolo de Cristo” com Paulo (James Faulkner) e Lucas (Jim Caviezel) olhando diretamente para o espectador.

Eu me diverti assistindo Paulo, Apóstolo de Cristo; a subtrama fictícia de Paulo assombrado pelo assassinato de uma jovem é bastante tocante. Apesar disso, acredito que o filme deve mais à Coca-Cola do que à Bíblia. Eis cinco razões:

1. Se as suas origens parecerem embaraçosas, invente uma nova história

A Coca-Cola foi inventada em 1886 pelo veterano da Guerra Civil Americana John Pemberton. Suas primeiras formulações continham álcool e extrato de folha de coca (cocaína) e nozes de cola (cafeína).

Depois que o empresário Asa Griggs Candler ganhou a patente, a Coca-Cola evoluiu para uma “bebida de estilo de vida”. A Coca-Cola não esconde exatamente seu passado, mas sua publicidade destaca imagens sentimentalizadas das décadas de 1950 e 1960, como máquinas de dispensar de 10 centavos, e fontes de refrigerante vintage.

Paulo, Apóstolo de Cristo afirma ser sobre as origens da igreja cristã. Mas seu retrato do passado é tão romantizado quanto o da Coca-Cola. Ele ignora as origens judaicas, fervorosamente apocalípticas do movimento e, em vez disso, apresenta uma história idealizada de heroísmo de um grupo sofrendo, retroagindo assim o cristianismo de séculos mais tarde no primeiro século.

Historiadores e estudiosos da Bíblia encontrarão erros ao longo do filme. Basta apenas ser um leitor cuidadoso do Novo Testamento para saber que algo está errado com a representação de Paulo virtualmente ditando o livro de Atos para Lucas.

Qualquer um que tenha lido Atos saberá que seu tom e conteúdo diferem dos de Paulo; não pode ter vindo da mesma fonte. De fato, Paulo não estava vivo quando o livro de Atos foi escrito décadas depois. A história do encontro de Paulo com Jesus ressuscitado é recontada três vezes em Atos, cada um com detalhes ligeiramente diferentes – improvável se Paulo estivesse verificando a cópia de Lucas, como no filme.

2. Vender um estilo de vida: a percepção é mais importante que o fato

Desde o Eu gostaria de ensinar ao mundo a cantar de 1971 até o Porque eu posso de 2018, o objetivo da Coca-Cola sempre foi não tanto vender um produto mas sim fazer com que os consumidores acreditem que eles são o tipo de pessoa que naturalmente compraria esse produto. Em outras palavras, a Coca-Cola é especialista em vender idéias de auto-imagem.

Anúncio da Coca-Cola de 1953 no México. (Coca Cola)

Na retórica antiga, isso era chamado de um argumento do “ethos”. Paulo, Apóstolo de Cristo usa as mesmas técnicas eficazes. Ele retroage cristãos em um tempo antes que houvesse cristãos, e os torna sábios, heróicos, e únicos antes mesmo de se tornarem uma religião separada.

Apesar do debate acadêmico sobre o tratamento dos cristãos na época romana, o filme retrata uma comunidade “cristã” totalmente formada experimentando uma perseguição total desde o início.

O historiador romano Tacitus menciona Nero assassinando cristãos em seus Anais XV: 44, mas será que seu texto descreve precisamente a situação em Roma nos anos 60 da Era Comum? Houve certamente uma perseguição ocasional, por vezes selvagem, aos seguidores de Jesus; mas os historiadores estão menos convencidos do que o filme destes detalhes.

Não importa: uma audiência criada em Cavaleiros Jedi lutando contra o Império do Mal preenche automaticamente as lacunas enquanto vê Lucas heroicamente entrando na Prisão Mamertine para, como ele diz, “capturar o último da sabedoria de Paulo”. A tocante cena da decapitação de Paulo – uma antiga tradição da igreja não existente no Novo Testamento – é uma clara reminiscência dos momentos finais de Luke [Lucas] Skywalker.

O que nos leva ao próximo caminho, Paulo, Apóstolo de Cristo é semelhante à Coca-Cola.

3. Apropriar os símbolos de outras pessoas

A Coca-Cola transformou o famoso Sinterklaas holândes. Sob a companhia, o bispo que dá presentes cresceu para se tornar o corpulento símbolo de bochechas vermelhas do excesso e secularismo que o Papai Noel é hoje.

Em Paulo, Apóstolo de Cristo os cineastas ligam os cristãos do primeiro século a símbolos familiares do Holocausto do século 20. Os crentes, reminiscentes dos judeus de Varsóvia, escondem-se num complexo barrados do mundo exterior. Gladiadores verificam os documentos em cada esquina. Espiões entregam “os cristãos”, que chamam os outros “os romanos”, embora eles próprios sejam cidadãos.

No entanto, um verdadeiro estado policial requer métodos modernos de vigilância. A Roma Antiga sob Nero era um lugar tão perigoso para os seguidores de Jesus quanto para muitos grupos que atraíam atenção indesejada. Mas era uma cidade antiga, extensa e desorganizada. Os vizinhos eram provavelmente as maiores ameaças.

O filme começa com a terrível queima de seguidores de Jesus como tochas humanas, relatada por Tácito. Implicitamente equiparando essa perseguição terrível, mas de curta duração, com o genocídio sistemático do século 20 de seis milhões de judeus é eticamente questionável.


Lucas (Jim Caviezel) entra em segredo em Roma para encontrar Paulo. (CTMG)

4. Reforçar os estereótipos de gênero

A Coca-Cola recebeu denúncias sobre publicidade sexista. Pior foram os anúncios irlandeses para Sprite, com “Ela viu mais tetos do que Michelangelo”.

No entanto, um sexismo mais insidioso é o reforço dos estereótipos de género predominantes, implicando que as mulheres são fracas e os homens heróicos e decisivos.

Dois dos únicos personagens obviamente judeus no filme são Prisca e Áquila. Em Romanos 16:3-4, Paulo menciona Prisca primeiro, um sinal de seu maior status. Ele observa que Priscila (a forma mais longa do nome dela) “arriscou o pescoço” por ele.

muitas evidências de que as mulheres eram líderes tanto na comitiva de Jesus quanto nas primeiras assembléias. O filme, para seu crédito, apresenta Priscila desta maneira. No entanto, os cineastas imediatamente a enfraquecem com “falhas femininas” estereotipadas na história.

Os estereótipos de gênero são igualmente claros no personagem principal do filme. Dificilmente se pode imaginar um Paulo mais calmo, mais autoritário, mais “masculino” – e menos provável historicamente.

Aquila (John Lynch) e Lucas (Jim Caviezel) assistem Priscila (Joanne Whalley) confortando a mãe de uma criança morta. (CTMG)

Nós não sabemos exatamente como Paulo se parecia ou falava. Ele mesmo repetiu críticas em 2 Coríntios 10:10 que “suas cartas são pesadas, mas sua presença física é fraca”. Os apócrifos Atos de Paulo e Tecla descrevem Paulo como um “homem de pequena estatura, com monocelhas, cabeça careca, pernas arqueadas, tipo físico atarracado, olhos fundos, e com um grande nariz torto.

O apóstolo mais bonito de James Faulkner é calmo, medido no discurso e reconhecido como líder, até por Nero. Em outras palavras, além de sua bravura, ele é quase nada parecido com o Paulo excitável, irritado, arrogante, socialmente isolado, às vezes mesquinho, e até ocasionalmente cruel, que encontramos em suas cartas. O Paulo de Faulkner é, ao contrário, o homem estóico ideal.

Em sua própria retórica (propaganda não é novidade!), Paulo trabalhou muito para cultivar uma imagem específica de si mesmo. Faulkner molda-se para esta versão. Eu acredito que esta é uma parte do filme que encantaria Paulo. Talvez ideais estóicos de masculinidade sejam agora considerados mais “cristãos” do que as reuniões carismáticas, muitas vezes lideradas por mulheres, dos tempos de Paulo.

5. Vender uma idade de ouro mítica

O problema com Paulo, Apóstolo de Cristo é que, como imagens sentimentalizadas de Cocas de cinco centavos nas mãos de figuras estereotipadas, a “comunidade cristã em Roma” do filme é uma miscelânea de retroações. Com os anúncios vintage da Coca-Cola, não vendemos precisão histórica, mas sim conforto e tradição construída. Este filme é igualmente tão idealizado.

Um anúncio de 1937 da Coca Cola enfatizava os valores da família. Coca Cola


Nas verdadeiras reuniões de Jesus nos meados dos anos 60, os sinais do judaísmo estariam em toda parte. Suas escrituras eram judaicas; muito da sua oração e adoração também. O movimento de Jesus ainda estava a muitas décadas de se distinguir como algo diferente de outra seita do judaísmo. O cristianismo ainda não existia.

No filme, quase não há menção do judaísmo como uma religião viva. Essa é uma forma sutil, mas perigosa, de anti-semitismo, apontada em outros filmes bíblicos contemporâneos, como Maria Madalena.

Paulo, Apóstolo de Cristo ignora o fato de que o verdadeiro Paulo continuou sendo judeu, mesmo depois de sua visão de Cristo. Ele se chamava como servo do deus de Israel e considerava sua mensagem para os não-judeus como parte do cronograma apocalíptico de Israel.

Assim como a Coca-Cola subestimando suas origens, Paulo, Apóstolo de Cristo negligencia o fervor apocalíptico que deu origem ao cristianismo, e que é evidente em todas as cartas de Paulo. Paulo esperava o retorno triunfante de Jesus, se não antes de sua morte, ao menos pouco depois. As primeiras comunidades de Jesus tremiam fervorosamente com essa expectativa. Surpreendentemente, o filme mal menciona isso.

Como descrevemos nosso passado diz muito sobre o nosso presente

Paulo, Apóstolo de Cristo provavelmente não apelará para aqueles que ainda não são cristãos. Talvez seja por isso que Paulo fala com o fictício arquivista romano Maurício sobre “salvação” e “graça” como se estivesse falando aos crentes contemporâneos.

Saí do cinema desejando que todos pudéssemos ser mais parecidos com o Paulo do diretor: mais medidos em nossas palavras e ações, mais reflexivos, gentis, graciosos, reconciliados com nós mesmos, e perdoando os outros.

Paulo, Apóstolo de Cristo é dedicado a “todos os perseguidos por sua fé”. Só se pode endossar isso. É por isso que, apesar das ótimas atuações de Jim Caviezel e James Faulkner, é estranho que os cineastas não tenham deixado seus personagens mais parecidos com os que estão sendo realmente perseguidos hoje em dia. Paulo e Lucas deveriam se parecer menos com atores brancos de uma velha escola de Hollywood ocidental, e mais como cristãos sírios, egípcios coptas ou refugiados Rohingya.


Matthew Robert Anderson é Professor de Teologia na Faculdade Loyola College for Diversity & Sustainability da Concordia University.

Artigo originalmente publicado aqui. Reproduzido com permissão.

The Conversation

9 comentários sobre “‘Paulo, Apóstolo de Cristo’ está mais à Coca-Cola que à Bíblia

  1. Tácitamente falando,o estoicismo seria dificil de ser absorvido,embora diante de tanto linguajar rebuscadamente jurídico de Paulo de Tarso,é mister que vejamos um Paulo mais “pé no chão”,demonstrando “como” temos que ser e proceder e não como “devemos”ser.Administrar o conhecimento com parcimônia não faz parte da linguagem estóica sendo assim,o filme como diversão,deve ser visto como a obra no seu tempo,ou seja,hoje.Pois ao que me parece,a pretensão é chamar a atenção para a conduta e os valores que estão mudando muito,deixando a grande maioria sem rumo…sem religiosidade…sem Deus.

  2. Sempre vejo como algo interessante a públicidade de uma marca como a Coca-Cola que ao longo do tempo tem se modificado, mas continua até hj como uma bebida que não faz bem a saúde.

    Nos anos 70 a Coca-Cola era muito mais escura que os de hj e com mais gáz. Porém, mesmo com todo esse conhecimento, as pessoas viam a Coca-Cola como algo prazeroso para consumir devido a publicidade ser apelativa dando ar que a bebida era simbolo de liberdade e de juventude.

    Se no mundo a Coca-Cola era tido como algo prazeroso, no mundo Mormon não era diferente. Muitos jovens consumiam a Coca Cola e até mesmo muitos consumiam excesso levando lideres eclesiasticos a preocuparem com essa bebida.

    A igreja até que tentou frear esse consumo nos ano 80, mas foi forçada a revogar devido ao processo que levou da Coca-Cola no mesmo periodo. A Coca-Cola não chegou a ficar na lista de produtos da tão chamada Palavra de Sabedoria, mas se tornou uma regra a partir de então a proibição de consumo da mesma em atividades da Igreja Mormon.

    Na missão havia missionários que chegaram até mesmo incentivar pesquisadores a não consumir a Coca Cola(minha missão), mas foram advertidos a não ensinarem mais isso.

    • Minhas companheiras americanas sempre diziam que a igreja falou que não podia tomar coca por que no passado tinha maconha lá dentro, eu nunca acreditei nisso, e creio que eles depois ficaram “neutros” em relação a ela por causa de algum processo que recebeu, e depois, obviamente vieram as “revelações” de que podia tomar. Meu presidente de missão sempre alfinetava e dizia que mesmo os membros bebendo ele sabia que não era para tomar.

      • hahah…Também ja ouvi vários absurdos Magnólia rs… Tive companheiros na missão que chegaram até mesmo ensinar pesquisadores que não deveriam tomar Coca-Cola. Eu mesmo não tenho nada contra consumir a Coca-Cola, mas ao mesmo tempo entendo a Igreja pois pega mal isso uma vez que na palavra de sabedoria a Igreja proibe o consumo do café devido a cafeina. O problema que se o pesquisador aprende que café não deve ser consumido por causa da cafeina, ao ver um membro tomando Coca ou Pepsi a cabeça dele ficará confusa.

        Agora pessoalmente dizendo, nem ligo, eu tomo Coca Cola na frente dos membros e missionários. Os crentes se irritam comigo rs…mas Mormon normal fica tranquilo e aceita.

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