Um Curioso Episódio nos Bastidores do Sistema Educacional da Igreja Revela Um Problema Maior
Em seu Sistema Educacional, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias possui funcionários pagos. Apesar disso, dependende grandemente do trabalho voluntário de membros para ministrar aulas. Em 2004, trabalhei como instrutor voluntário no Instituto de Religião, ministrando dois cursos no sábado à tarde – O Livro de Mórmon e Preparação Missionária.
Minha intenção de ajudar outros membros da Igreja através do ensino encontrou um obstáculo que eu já antecipara: devido à cultura do Instituto local, o público mais numeroso estava concentrada no turno da manhã, quando aconteciam as aulas-show do então coordenador do Sistema Educacional da Igreja¹. Pouquíssimos estavam dispostos a frequentar as aulas na tarde, sem a agitação social do turno anterior.
O segundo obstáculo com que me deparei, no entanto, foi por demais inesperado: a dificuldade de entrar no Instituto! Explico: o secretário do Instituto, encarregado de abrir a sede, atrasava-se sempre. De início, eram 10 ou 15 minutos após o horário previsto. Com o passar das semanas, seus atrasos cresceram para 20, 30, 45 minutos, chegando até mesmo a uma hora ou mais de atraso. E, em algumas ocasiões, eu me obriguei a ficar o horário inteiro das duas aulas sem que ele surgisse no horizonte.
Eu me perguntava se aquilo era uma sabotagem intencional ou puro desleixo. Seria o cargo de secretário do Instituto um cabide de emprego? Havendo sido chamado como bispo, o jovem secretário se sentiria justificado em mentir em nome de Deus? O coordenador – e presidente de uma estaca – respaldava aquele comportamento? Que impacto teriam nas estatísticas do coordenador aqueles dois cursos na grade de horários?
Apesar do desconforto, decidi ver até onde a situação chegaria. Pois eis que chegou ao fim do semestre pior do que começara.
Durante as férias do Instituto, recebi um telefonema do mesmo secretário pedindo para confirmar minha disponibilidade no semestre seguinte. Recusei educamente, sem dar explicações. O telefone foi passado para o carismático coordenador que, após insistir na importância do meu trabalho, acabou sentenciando: “acho que está faltando um pouco de ânimo aí”. Ele não estava de todo errado.
Mesmo com minha recusa, a grade de horários do semestre seguinte listava meu nome como instrutor de dois cursos na tarde de sábado. Escrevi então ao coordenador pedindo que fosse corrigida e contei como tinha sido minha experiência no semestre anterior. Ele pediu desculpas (em seu nome e do secretário) e justificou o ocorrido da seguinte maneira:
Algumas vezes o trabalho que executamos é de modo externo, por exemplo visitas e muitas outras coisas, serões, preparação de atividades e nos sábados isso era muito comum acontecer, ou seja descolarmos para áreas distântes. [sic]
De acordo com essa resposta, o secretário estava justificado em não abrir a sede do Instituto, como prometido no horário do Instituto, porque estaria fazendo “muitas outras coisas” a serviço do Instituto.
Mas afinal o sujeito não era pago para fazer isso? De acordo com o coordenador, talvez sim, talvez não:
Certamente somos profissionais e queremos manter nosso trabalho neste nível. Em muitas ocasiões também somos voluntários em nosso próprio serviço doando horas e serviço a mais visto que não existe horas extras em nossa carga horária.
Ou seja, enquanto eu assumira o compromisso de trabalhar como voluntário todas as tardes de sábado, o profissional não podia ser cobrado pela sua ausência ou atraso porque talvez estivesse trabalhando como voluntário.
Escondida por trás desse raciocínio vergonhoso, está a famosa escala imaginária de status social e espiritual que existe na cultura mórmon: quanto mais alto o cargo eclesiástico (ou vínculo empregatício) na Igreja, mais livre estará a pessoa de responder por seus atos, de prestar contas aos do andar inferior.
Não quero generalizar que todo secretário do Instituto é irresponsável ou que todo coordenador do SEI acoberte os erros do apadrinhado. Obviamente, minha experiência deve ter sido a exceção da exceção. Porém, imagino que este relato mostre um problema maior: mórmons não seguem a admoestação do Lord Acton.
Talvez você nunca tenha ouvido falar desse tal Lord Acton (1804-1902). Mas provavelmente já ouviu a máxima de que “o poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente”. A afirmação é trecho de uma carta escrita pelo nobre britânico ao arcebispo da Igreja Anglicana, Mandell Creighton. Em 1887, Creighton estava escrevendo a história da Inquisição. Sua narrativa absolvia o papa e o rei de quaisquer erros cometidos pela instituição. Lord Acton escreveu ao arcebispo:
(…) não posso aceitar seu cânone de que devemos julgar o papa e o rei ao contrário de outros homens, com uma presunção favorável de que não fizeram nada de errado. Se houver qualquer presunção é a contrária, contra detentores do poder, aumentando à medida que o poder aumenta. (…) Não há pior heresia do que aquela de que o ofício santifica o portador do mesmo. Esse é o ponto no qual (…) o fim aprende a justificar os meios.
Para Lord Acton, quanto maior o poder de uma pessoa, mais elevados precisam ser os padrões éticos de seu comportamento. Até aqui mórmons em geral parecem concordar. Mas ele vai além: tão mais elevados precisam ser os critérios pelos quais julgamos aqueles que possuem autoridade. É aqui que mórmons parecem ter uma visão completamente oposta.
Muitos membros da Igreja SUD sequer acreditam que líderes (vivos ou mortos, mas particularmente os vivos) possam ter suas ações avaliadas por outros mortais. Alguns pregam abertamente a obediência cega, a idolatria a títulos e poderes muito amplos aos seus líderes. Obviamente, isso é feito com a melhor das intenções de defender a Igreja – da mesma forma que o arcebispo britânico fez em relação à sua igreja! Na versão mais perigosa dessa atitude, os erros podem até ser úteis para um objetivo maior.
Melissa Inouye alerta sobre a falta de oxigênio que essas práticas podem ocasionar:
em vários momentos da existência de uma religião, pessoas são requeridas a “seguir a fila”. Mas ao longo do tempo, longas filas não ajudam movimentos carismáticos vibrantes, e carisma é o sangue do mormonismo.
Mórmons tornarão muito mais vivo e verdadeiro o mormonismo ao colocar em prática as ideias incluídas na carta do Lord Acton.
1. Herberto Moroni Klein, no Instituto Porto Alegre Norte.
Amigo, esses secretários devem ter um ‘treinamento’ para agir assim com desleixo, porque aqui na região ele não tinha que abrir as capelas (até porque mora numa cidade diferente), mas o rapaz se supera em incompetência. Chego a acreditar que ele não é funcionário na igreja, pois deixa muito a desejar para alguém que seria pago para isso. Para piorar, meu coordenador foi chamado presidente de estaca, e atualmente eles (coordenadores) tem muito menos liberdade financeira do que antes e tem sido bem difícil ele fazer o bom trabalho que tentava fazer.
O coordenador daí deveria pedir um vale para os de Porto Alegre, onde o Instituto tem duas sedes. ;]
Temos (incluo eu nisso) que aprender muito com essa frase muito pertinente. O que santifica ou engrandece o homem no Reino de Deus foi ensinado pelo Salvador aos apóstolos na última ceia:
“E ele lhes disse: Os reis dos gentios dominam sobre eles, e os que têm autoridade sobre eles são chamados benfeitores.
Mas não sereis vós assim; antes o maior entre vós seja como o menor; e quem governa como quem serve.
Pois qual é maior: quem está à mesa, ou quem serve? Porventura não é quem está à mesa? Eu, porém, entre vós sou como aquele que serve”.(Lucas 22:25-27)
Ou seja, o que é importante é servir e não o cargo em si. Infelizmente muitos membros se esqueceram desse importante ensinamento de Jesus.
Bela referência, Júlio. Obrigado.