Trinitarianismo é a doutrina cristã que estabalece que Deus existe como três personagens enquanto sendo um único ser. O três personagens, a saber, Deus o Pai, Deus o Filho (encarnado como Jesus Cristo), e Deus o Espírito Santo, partilham da mesma essência, identidade, e natureza.
O termo trinitarianismo vem da expressão Trindade (oriunda do latim “trinitas” para “tríade” e “trinus” para “triplo”) e é frequentemente expresso com o termo grego hipóstases, emprestado da filosofia grega significando a natureza do substrato da realidade por baixo ou por trás de tudo.
A teologia mórmon expressamente rejeita o trinitarianismo, estabelecendo os três deuses como personagens individuais e distintos. O próprio Joseph Smith escreveu, e a Igreja canonizou, uma revelação explicitamente rejeitando essa doutrina:
“O Pai tem um corpo de carne e ossos tão tangível como o do homem; o Filho também; mas o Espírito Santo não tem um corpo de carne e ossos, mas é um personagem de Espírito. Se assim não fora, o Espírito Santo não poderia habitar em nós.”
Contudo, nem sempre Smith pensou assim. No começo de sua carreira profética, Joseph Smith pregava a doutrina do trinitarianismo:
Em nenhum lugar isso é mais evidente do que na tradução que Joseph Smith produziu da Bíblia. Quando Smith traduziu o versículo encontrado em Lucas 10:22, ele encontrou isso na sua Versão do Rei Tiago:
“Todas as coisas são entregues a mim por Meu Pai: E nenhum homem sabe quem o Filho é, exceto o Pai; Ou quem o Pai é, exceto o Filho, e aquele a quem o Filho O revelará.”
E ele prontamente alterou para isso:
“Todas as coisas são entregues a mim por Meu Pai: E nenhum homem sabe que o Filho é o Pai; Ou que o Pai é o Filho, exceto aquele a quem o Filho o revelará isso.”
Repetimos aqui ambos os originais em inglês para comparação literal (com ênfases adicionadas às alterações de Smith):
Versão do Rei Tiago | Versão de Joseph Smith |
All things are delivered to me of my Father: and no man knoweth who the Son is, but the Father; and who the Father is, but the Son, and he to whom the Son will reveal him. | All things are delivered to me of my Father; and no man knoweth that the son is the Father, and that the Father is the son, but him to whom the son will reveal it. |
É importante notar que o trinitarianismo não é encontrado em nenhum lugar em nenhum dos textos bíblicos¹, e em 1832 Joseph Smith alterou o texto bíblico acima justamente para introduzir essa doutrina nos lábios de Jesus. Embora a inexistência de uma doutrina ou crença em termos bíblicos não seja empecilho para sua introdução retrojetada a posteriori na Bíblia², Smith levou o processo de retrojeção a um outro nível mais literal e canônico.
O trinitarianismo de Smith não surpreenderia ninguém em 1832, considerando que ela já estava presente em sua teologia quando ele ditou o Livro de Mórmon em 1829 (ênfases nossas):
“E disse-me ele: Eis que a virgem que vês é a mãe de Deus, segundo a carne.”
“E disse-me o anjo: Eis o Cordeiro de Deus, sim, o Pai Eterno! Sabes tu o significado da árvore que teu pai viu?”
“E falou-me o anjo, dizendo: Estes últimos registros que viste entre os gentios confirmarão a verdade dos primeiros, que são dos doze apóstolos do Cordeiro, e divulgarão as coisas claras e preciosas que deles foram suprimidas; e mostrarão a todas as tribos, línguas e povos que o Cordeiro de Deus é o Pai Eterno e o Salvador do mundo; e que todos os homens devem vir a ele, pois do contrário não poderão ser salvos.”
“E também para convencer os judeus e os gentios de que Jesus é o Cristo, o Deus Eterno, que se manifesta a todas as nações”
Depoimento de Três Testemunhas
“E honra seja ao Pai, e ao Filho, e ao Espírito Santo, que é um Deus.”
“E agora, meus amados irmãos, eis que este é o caminho; e não há qualquer outro caminho ou nome debaixo do céu pelo qual o homem possa ser salvo no reino de Deus. E agora, eis que esta é a doutrina de Cristo e a única e verdadeira doutrina do Pai e do Filho e do Espírito Santo, que é um Deus, sem fim. Amém.”
“Então Zeezrom novamente lhe disse: É o Filho de Deus o próprio Pai Eterno?
E respondeu-lhe Amuleque: Sim, ele é o próprio Pai Eterno do céu e da Terra e de todas as coisas que neles existem; ele é o começo e o fim, o primeiro e o último”
“Eis que eu sou aquele que foi preparado desde a fundação do mundo para redimir meu povo. Eis que eu sou Jesus Cristo. Eu sou o Pai e o Filho. Em mim toda a humanidade terá vida e tê-la-á eternamente, sim, aqueles que crerem em meu nome; e eles tornar-se-ão meus filhos e minhas filhas.”
“E então Abinádi lhes disse: Quisera que compreendêsseis que o próprio Deus descerá entre os filhos dos homens e redimirá seu povo. E porque ele habita na carne, será chamado o Filho de Deus; e havendo sujeitado a carne à vontade do Pai, sendo o Pai e o Filho — O Pai, porque foi concebido pelo poder de Deus; e o Filho, por causa da carne; tornando-se assim o Pai e o Filho — E eles são um Deus, sim, o próprio Pai Eterno do céu e da Terra. E assim a carne, tornando-se sujeita ao Espírito, ou o Filho ao Pai, sendo um Deus, sofre tentações e não cede a elas, mas sujeita-se a ser escarnecido e açoitado e expulso e rejeitado por seu povo.”
Joseph Smith ainda publicou na primeira edição de Doutrina e Convênios em 1835:
“Há duas pessoas que constituem o grande, inigualável, governante e supremo poder sobre todas as coisas – por quem todas as coisas foram criadas e feitas … Eles são o Pai e o Filho: O Pai sendo um personagem de espírito, glória e poder: possuindo toda perfeição e plenitude: O Filho, que estava no seio do Pai, personagem de tabernáculo, feito ou formado como o homem, ou sendo na forma e semelhança do homem, ou melhor, o homem foi formado segundo a sua semelhança, e à sua imagem; – é também a imagem e semelhança expressa do personagem do Pai: possuindo toda a plenitude do Pai, ou a mesma plenitude com o Pai; Sendo gerado por ele, e foi ordenado desde antes da fundação do mundo para ser uma propiciação pelos pecados de todos os que vem a crer em seu nome, e é chamado o Filho por causa da carne. (…) E ele, sendo o unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade, e tendo vencido, recebeu a plenitude da glória do Pai – possuindo a mesma mente com o Pai, cuja mente é o Espírito Santo, que testifica do Pai e do Filho, e estes três são um, ou em outras palavras, estes três constituem o grande, incomparável, governante e supremo poder sobre todas as coisas: Por quem todas as coisas foram criadas e feitas, que foram criadas e feitas: E estes três constituem a Divindade e são um: o Pai e o Filho possuem a mesma mente, a mesma sabedoria, a mesma glória, o mesmo poder e a mesma plenitude: preenchendo tudo em todos – o Filho sendo preenchido com a plenitude da Mente, a glória e poder, ou seja, o Espírito, glória e poder do Pai, possuindo todo o conhecimento e glória, e o mesmo reino: Sentado à direita do poder, na imagem e semelhança do Pai – um Mediador para o homem – preenchido com a plenitude da Mente do Pai ou, em outras palavras, o Espírito do Pai… “
(…)
“P. O que é o Pai?
R. Ele é um personagem de glória e poder.(…)
P. O que é o Filho?
R. Primeiro, ele é um personagem de tabernáculo.(…)
P. Por que ele é chamado de Filho?
R. Por causa da carne.(…)
P. O Pai e o Filho possuem a mesma mente?
R. Sim.(…)
P. O que é essa mente?
R. O Espírito Santo.”
Conclusão
Joseph Smith claramente não era trinitário durante os últimos anos de sua breve vida e ainda mais breve carreira profética. Não obstante, é inegável o fato de que ele era trinitário durante o seu período de formação religiosa, incluindo a tradução do Livro de Mórmon, a tradução da Bíblia, a fundação da Igreja, e as primeiras versões de sua Primeira Visão.
NOTAS
[1] Lê-se na enciclopédia de filosofia da Universidade de Stanford sobre a existência do trinitarianismo nos textos bíblicos:
“Nenhuma doutrina trinitária é explicitamente ensinada no Antigo Testamento. Trinitarianos sofisticados concedem isso, sustentando que a doutrina foi revelada por Deus somente mais tarde, nos tempos do Novo Testamento (c.50-c.100) e/ou na era Patrística (c 100-800). Eles geralmente também acrescentam, porém, que com retrospectiva, podemos ver que um número de textos retratam ou omitem o co-trabalho do Pai, Filho e Espírito Santo.
Por exemplo, em Gênesis 18, Yahweh aparece a Abraão como três homens, e o texto tem sido muitas vezes lido como se os homens falassem como um, com uma só voz. O que é isto, eles insistem, se não uma aparência, ou mesmo uma encarnação temporária tripla das três pessoas dentro da natureza de Deus? (Outras interpretações identificam Yahweh com um dos homens, aquele que fica para trás enquanto os outros viajam para Sodoma em Gênesis 19.)
Em muitas outras passagens, muitos leitores cristãos afirmam que o Filho de Deus pré-encarnado é mencionado, ou mesmo aparece em forma corporal para fazer a vontade de seu Pai, e é (assim acreditam) às vezes chamado de “anjo do Senhor”. Alguns até identificaram o Cristo pré-encarnado como Miguel, o anjo protetor sobre Israel mencionado nos livros de Daniel, Judas e Apocalipse.
E em várias passagens, Yahweh se refere a si mesmo, ou é referido usando termos plurais. Os não-trinitarianos costumam ler isto como um plural de majestade, uma forma de linguagem que ocorre em muitas línguas, ou uma conversa entre Deus e os anjos, enquanto os trinitarianos costumam ler isso como uma conversa entre as pessoas da Trindade.
Em suma, os cristãos lêem o Antigo Testamento através da lente do Novo [Testamento]. Por exemplo, aquele fala de Deus como trabalhando através de sua “palavra”, “sabedoria” ou “espírito”. Algumas passagens do Novo Testamento chamam Jesus Cristo de palavra e sabedoria de Deus, e no Evangelho de João, Jesus fala sobre o envio de outro consolador ou ajudante, o “Espírito Santo”. Assim, alguns cristãos afirmam que a porta estava aberta para colocar dois agentes inteligentes divinos, além do “Pai”, por meio de quem, ou através de quem o Pai age, um dos quais se encarnou no homem Jesus. Em oposição, outros leitores cristãos leem essas passagens como envolvendo a antropomorfização dos atributos divinos, insistindo que as especulações gregas, infelizmente, encorajaram as hipostasias acima mencionadas.
O Novo Testamento não contém nenhuma doutrina trinitária explícita. No entanto, muitos teólogos cristãos, apologistas e filósofos afirmam que a doutrina pode ser inferida a partir do que o Novo Testamento ensina sobre Deus. Mas como pode ser inferido? A inferência é dedutiva, ou é uma inferência à melhor explicação? E é baseado no que é implicitamente ensinado lá, ou no que é meramente assumido lá? Muitos teólogos e apologistas cristãos parecem julgá-lo uma inferência dedutiva.
Em contraste, outros cristãos admitem que sua doutrina preferida da Trindade não apenas (1) não pode ser deduzida somente da Bíblia, mas também (2) que há evidência inadequada ou inexistente ali, e até (3) que o que é ensinado na Bíblia é incompatível com a doutrina. Esses cristãos acreditam que a doutrina se baseia unicamente na autoridade dos pronunciamentos doutrinários posteriores da Igreja Cristã Verdadeira (tipicamente uma das seguintes: a Igreja Católica, a tradição Ortodoxa Oriental, ou a corrente principal da tradição cristã, como identificada amplamente). Alguns apologistas católicos argumentaram que esta doutrina mostra a necessidade da autoridade docente da Igreja, sendo esta doutrina constitutiva do cristianismo, mas subjacente à Bíblia, à parte da orientação da Igreja na sua interpretação. Esta postura não é popular entre os cristãos que não são católicos nem ortodoxos orientais. (2) seria o principal ponto de aderência, embora alguns grupos negassem os três.
Muitos apologistas cristãos argumentam que a doutrina da Trindade é “bíblica” (ou seja, ela é implicitamente ensinada lá, ou é a melhor explicação do que é ensinado lá) usando três tipos de argumentos. Eles começam afirmando que o Pai de Jesus Cristo é o único Deus verdadeiro ensinado no Antigo Testamento. Eles então argumentam que, dado o que a Bíblia ensina sobre Cristo e o Espírito Santo, eles também devem ser “totalmente divinos”. Assim, devemos, por assim dizer, “movê-los adentro” da natureza do Deus único. Portanto, há três pessoas totalmente divinas “em Deus”. Embora isso possa ser paradoxal, argumenta-se que isso é o que Deus revelou à humanidade através da Bíblia.”
[2] Retrojeção é a técnica de introduzir em um texto significados, ideias, ou crenças que o texto original em si não suporta ou promulga. Isso pode ser feito de duas maneiras:
- Literalmente, com a introdução de texto adicional, como Smith fez na sua tradução de Lucas citada acima, ou como Smith fez na sua segunda edição do Livro de Mórmon citado abaixo. Essa técnica se chama “interpolação”.
- Interpretativamente, criando-se uma nova interpretação do texto original que deturpa seus significados, ideias, ou crenças originalmente descritas pela evidência textual mas se adequa aos significados, ideias, ou crenças do interpretador, como trinitarianos fazem com os textos bíblicos citados acima. Essa técnica se chama “eisegese”.
[3] Quando Joseph Smith foi publicar a segunda edição do Livro de Mórmon em 1837, ele alterou essas três passagens em 1 Néfi para apagar seus sentidos trinitários (ênfases nos trechos adicionados para a segunda edição):
“E disse-me ele: Eis que a virgem que vês é a mãe do Filho de Deus, segundo a carne.”
“E disse-me o anjo: Eis o Cordeiro de Deus, sim, o Filho do Pai Eterno! Sabes tu o significado da árvore que teu pai viu?”
“E falou-me o anjo, dizendo: Estes últimos registros que viste entre os gentios confirmarão a verdade dos primeiros, que são dos doze apóstolos do Cordeiro, e divulgarão as coisas claras e preciosas que deles foram suprimidas; e mostrarão a todas as tribos, línguas e povos que o Cordeiro de Deus é o Filho do Pai Eterno e o Salvador do mundo; e que todos os homens devem vir a ele, pois do contrário não poderão ser salvos.”
“Quando Joseph Smith foi publicar a segunda edição do Livro de Mórmon em 1837, ele alterou essas três passagens em 1 Néfi para apagar seus sentidos trinitários”
Com isso pode-se concluir que JS traduziu o LM errado? Mas ele mesmo não disse que o LM era o livro mais correto da face da terra?
Ademais, o fato de o Espírito Santo ser um espírito contradiz a doutrina de que para ser um deus é preciso ter um corpo físico…