Labão e os muitos “Labões”

O obscuro Labão está muito mais presente nas escrituras do que podemos imaginar. Também sua importância no relato nefita pode ser maior do que nos é transmitido pela leitura correlacionada das escrituras. Labão encarna características descritas em maior detalhe por outros profetas do passado, sobre as quais somos alertados.

Néfi fala apenas brevemente de Labão (1 Néfi 3, 4), não nos dando maiores detalhes sobre sua vida ou posição entre o povo judeu. Entretanto, fica clara a posição de destaque de Labão na hierarquia religiosa e social da época: Labão é reconhecido como um homem poderoso, possui servos, tem tesouros guardados, se relaciona com os líderes maiores do povo (1 Néfi 4:1, 20, 22).

Com seu comportamento, Labão se encaixa perfeitamente nas descrições dadas pelos antigo profetas daqueles que, ao invés de magnificarem seu chamado perante o Senhor, acabam pervertendo seu chamado e abusando de sua autoridade: ele manipula fatos para proteger o que reivindica ser seu e chega a buscar o assassinato como meio de alcançar seu objetivo, pois ele é movido pela cobiça de bens materiais (1 Néfi 3:13). Labão é em pessoa o que o Livro de Mórmon descreve como “artimanha sacerdotal” (2 Néfi 26:29), que inclui a busca e manutenção do lucro.

Isaías nos fala de líderes que “enganam e destroem”, buscando os bens dos que têm menos (Isaías 3:12-15). Tal ganância é comparada a de “cães gulosos”, que nunca matam o seu desejo por mais, enquanto sua função de aprender do Senhor e ensinar o povo é bloqueada graças à sua cegueira, seu sono e sua mudez, símbolos tão gráficos de seu estado espiritual decaído (56:10-11).

Não podemos mudar Labão e seus seguidores, mas como prevenir tal tipo de cegueira, sono ou mudez em nossa própria vida pessoal? Por um exemplo negativo, podemos ler o que não fazer e, por conseguinte, o que fazer também. O Livro de Mórmon tem essa clareza de mostrar o erro para contrastá-lo ao ideal, um ideal que é possível de ser vivido.

Labão não é diferente da maioria da população de Jerusalém que rejeita a advertência dos profetas (1 Néfi 1:19-20; 7:14), perseguindo-os. É absurda para eles a idéia de que a capital do povo judeu, onde estava o templo do Senhor pudesse ser destruído, sem compreender o quanto o templo estava sendo profanado pelo comportamento do povo do Senhor, especialmente fora do templo (Isaías 1:11-16; 24:5). Mas Labão é também pior do que o povo em geral: pois é ele um dos seus líderes.

Incapaz de reconhecer a natureza autodestrutiva dos seus próprios atos, o povo não percebe o que está trazendo sobre si. Labão é mais um a acreditar que a destruição não virá, esperando “um futuro melhor” ou, no mínimo, uma continuação da realidade como conhece (Isaías 56:12). Em última instância, Labão – e o tipo de homem que personifica – sente uma segurança absoluta de que está imune à punição e à mudança (Isaías 28:14-15). Ele possui a “segurança carnal” de que “tudo vai bem”, devido exatamente à tão buscada prosperidade material que vê em chegar a suas mãos (2 Néfi 28:21). A riqueza da estrutura religiosa é vista como uma evidência de sua autenticidade e “sucesso”. Labão conhece os segredos das “pessoas altamente eficazes”.

Contrastando com a falsa segurança de Labão e da população da cidade santa, agora corrompida, Leí e sua família fogem por ordem do Senhor. E é por obediência a esse mandamento e todas as suas implicações que o Senhor se manifesta a Leí e Néfi (1 Néfi 1:8-9; 2 Néfi 11:2). Estivessem eles preocupados com a aparência de religiosidade e o respeito à hierarquia religiosa, nada disso lhes teria acontecido. Ao contrário de Labão, Leí e sua família não abraçaram “noções extremas de obediência” à liderança eclesiástica.

Outro personagem que se destaca nas escrituras pela sua ganância e que podemos relacionar ao comportamento de Labão é Balaão (Números 22-25). Novamente, pouco se sabe sobre sua vida, mas de forma semelhante aos profetas de Israel, Balaão ouve a voz do Senhor, o que nos faz imaginar a estatura espiritual desse homem. Porém, ele é gradualmente atraído pelo dinheiro e poder oferecidos pelos moabitas e revê sua posição inicial de não fazer mal a Israel; devidamente comprado pelo que mais preza, Balaão decide agora que vai amaldiçoar o povo do Senhor.

Uma coletânea judaica que faz parte do Talmud, a Ética dos Ancestrais (ou Ética dos Pais) nos fala que há dois tipos de homens entre aqueles que professam ser religiosos: os que são discípulos de Abraão e os que são discípulos de Balaão. Enquanto Abraão busca as bênçãos da vida eterna, Balaão busca o estilo de vida dos “ricos e poderosos”. Nessa disputa entre dois modelos, é Abraão, com sua busca constante de maior conhecimento e retidão (Abraão 1:2) – valores espirituais – quem é mostrado pelo Senhor como um padrão a ser seguido (Isaías 51:2).

Na narrativa de Néfi, sua vitória sobre Labão se dá num momento de embriaguez deste (1 Néfi 4:7). Embora tenhamos um retrato da embriaguez literal, física, não há como não relacioná-la com a embriaguez espiritual descrita pelos profetas antigos (Isaías 56:12). Assim como o álcool ou outra substância pode alterar nossa percepção, também nossos valores, crenças e hábitos nos servem como uma lente pela qual enxergamos, muitas vezes distorcendo nossa visão da realidade, como o olhar embaçado de um bêbado.

Em uma revelação ao profeta Joseph Smith, o Senhor declara que “é a natureza e índole de quase todos os homens”, após receberem autoridade – humana ou divina – ou ao menos suporem ter tal autoridade, “começar a exercer domínio injusto” sobre o próximo (D&C 121:39). Isso sintetiza o comportamento de Labão: a busca de domínio injusto. A sede de poder tem que ser satisfeita e seu efeito é o da embriaguez espiritual.

O detalhe mais assustador da revelação a Joseph, porém, é o alerta de que estamos falando da tendência de “quase todos os homens”. Não de uma minoria, ou simplesmente muitos, mas a maioria. Seria isso diferente hoje entre os modernos portadores do sacerdócio e seus líderes? Seja como for, devemos ter o cuidado de nos incluir entre a minoria.

Ao incluir Labão em um relato destinado a seus leitores nos últimos dias, Néfi faz eco à advertência encontrada no Antigo Testamento, e repetida a Joseph Smith em tempos modernos, de não confundirmos autoridade com manipulação e não direcionarmos nossa atenção e desejo para as coisas materiais e o controle de outros seres humanos.

5 comentários sobre “Labão e os muitos “Labões”

  1. Antônio,

    Concordo plenamente com o tema geral, e a conclusão, do seu post.

    Contudo, discordo de um detalhe. Ao meu ver, Néfi abraçava um grau de obediência que eu, pessoalmente, acho moralmente questionável.

    Qual é a ética de se matar uma pessoa indefesa e desacordada, em sangue frio?

    O experimento de Stanley Milgram, de 1963, demonstrou conclusivamente que há um processo psicológico de transferência de culpa à figuras de autoridade em casos de violação ética e moral clara. O estudo foi repetido em dúzias de países e culturas diferentes, com os mesmos resultados. Compreende-se, então, tratar-se de natureza humana coletiva, possivelmente de origem evolutiva.

    Ainda assim, fica a pergunta: onde fica a força moral de um agente que se submete à uma autoridade — independentemente de quem seja — para cometer um ato bárbaro como matar um indefeso? Como pode se reclamar superioridade ética ou espiritual quando, em nome de obediência, não há limites de comportamento?

    O seu post se foca no auto-controle necessário para a prática ética de quem tem autoridade. Eu acho importante refletirmos no auto-controle (e coragem) moral necessária para quem esta abaixo da autoridade e deve julgar conscientemente a ética do que lhe é ordenado!

    • Essa é uma excelente questão, Marcello. A legitimidade de se matar alguém nas condições de Labão é uma questão problemática dentro do próprio Livro de Mórmon e esse fato é reconhecido pela sua narrativa, através de alguns elementos. Não tenho como “responder” de fato sua colocação e “resolver” o problema moral envolvido, mas gostaria de colocar aqui algumas observações.

      Como acontece na maior parte das escrituras oriundas da tradição judaico-cristã, a narrativa do Livro de Mórmon apresenta uma forte dualidade: bem e mal, liberdade e opressão, humildade e orgulho. Poderia se falar mesmo em termos de um maniqueísmo, para o qual há e deve haver sempre “uma oposição em todas as coisas”. Aparentemente não há nelas um meio-termo em cada par – ou se está num pólo ou no outro. Essa visão de mundo que está impregnada no texto não pode ser subestimada e é natural – e salutar! – que entre em choque com a nossa visão de mundo como leitores do séc. XXI. É nesse contexto que a violência aparece na narrativa bíblica e do Livro de Mórmon – basicamente, ou ela é empregada pelo iníquos contra os justos ou o contrário. (Mais tarde, com Morôni, as coisas ficam mais “pós-modernas”: iníquos estão de ambos os lados e a guerra não tem sanção divina mais).

      Nessa visão de mundo, cada personagem da narrativa também está num pólo ou outro. (Podendo variar a cada momento e migrar ao outro pólo, como acontece com os nefitas e lamanitas que alternam papeis no plano divino que a narrativa expõe.) A narrativa não explora as dúvidas de Néfi a respeito do seu pai, nem mostra o lado digno e bondoso de Labão. O conflito entre Labão e os filhos de Leí os coloca em pólos opostos e que não podem ser reunidos, harmonizados. Labão precisa ser vencido; caso contrário, de acordo com a narrativa, haverá consequências destrutivas para gerações futuras (“uma nação degenere e pereça”). Aqui talvez exista outra visão-de-mundo importante que é a ideia familiar, tribal, de um povo escolhido, cujo destino é influenciado pelos indivíduos que fazem parte dele.

      Também me chama a atenção que o assassinato de Labão por Néfi não encontra grandes paralelos em outros episódios das escrituras. Sim, há morte ou assassinato de figuras de autoridade religiosa ou civil, como o homem morto por Moisés. Mas a morte de Labão é o único episódio que me ocorre em que um líder espiritual do povo israelita é punido com a morte por ordem divina. Ele sofre os julgamentos de Deus pela mão de um homem sobre o qual ele tinha autoridade e sobre quem ele presidia.

      A narrativa parece reconhecer o problema moral do assassinato de Labão em algumas partes, uma vez que o episódio é “preparado” pela narração que mostra tanto a necessidade quanto a origem e propósito divinos do ato – “fui conduzido pelo Espírito, não sabendo de antemão o que deveria fazer”, “disse em meu coração: Nunca fiz correr sangue humano. E contive-me; e desejei não ter de matá-lo”, “o Senhor mata os iníquos, para que sejam cumpridos seus justos desígnios. Melhor é que pereça um homem do que uma nação degenere e pereça na incredulidade”. Pela guarda pessoal de que dispunha Labão e a tentativa contra a vida de Néfi e os demais, a narrativa também sugere que, estando desperto, Labão não poderia ser vencido.

      Seria Néfi condenado como homicida pela lei? Com certeza. Por isso, a narrativa afirma a origem divina do ato.

      Certamente há um contraste entre a ação de Néfi e a recusa de Morôni em atacar os lamanitas embriagados: “para não incorrer em injustiça, não queria cair sobre os lamanitas e destruí-los enquanto estivessem embriagados“. Morôni acredita numa ética militar que condena o “ataque preventivo” e considera o inimigo um ser humano provido de direitos, mesmo na guerra.

      Néfi, porém, não é um comandante militar, mas um indivíduo injustiçado por alguém com mais recursos, incluindo um grupo de homens. Isso explica o contraste entre os dois episódios? Acho que não.

      Como sabemos, nem tudo nas escrituras trata de perdão e amor ao próximo. Talvez Brigham Young, em sua visão da expiação pelo sangue, pudesse ver um ato de misericórdia ao se derramar o sangue de Labão. Daí entra em cena aquilo que fazemos com as escrituras. A famosa “aplicação prática” é buscada.

      “O que aprendemos com essa escritura?” ou “O que você sente ao ler isso?” ou ainda “Como podemos aplicar isso em nossas vidas?” – todas essas são abordagens que em geral desconsideram o contexto interno e os possíveis choques entre a visão-de-mundo do leitor e a da narrativa.

      Pessoalmente não acho que o episódio em debate seja adequado para incentivar a obediência e fé de pré-adolescentes. O que a Igreja faz com o Livro de Mórmon não depende do Livro de Mórmon em si. O potencial problema é que a “aplicação prática” tem que ser de consenso ou devidamente padronizada. Nesse episódio a conclusão não pode ser “quem fica bêbado deve ser morto” ou “aquele presidente de estaca bem que merecia perecer”, mas pode até chegar a ser “quem quebra a Palavra de Sabedoria é destruído espiritualmente” ou “deve-se fazer tudo o que um líder disser mesmo se acharmos errado”.

      Na leitura correlacionado do Livro de Mórmon, temos que ser como Néfi. Mas a “igreja judaica” não é como a nossa igreja. E, especialmente, o líder Labão não é nenhum líder, ele é um mero bêbado e ladrão. Numa comunidade de leitores ávidos pela “aplicação prática” – “somos a Igreja do fazer e não do saber” – essa transposição do presente no passado tem que ser controlada. Mas aqui eu já estou fugindo do tema e voltando à minha pregação a respeito de como é lido o Livro de Mórmon.

      • A morte de Jesus foi justificada pelo Sumo Sacerdote com o mesmo argumento para justificar a morte de Labão: “convém que um homem morra pelo povo, e que não pereça toda a nação.” João 11:50

  2. Elder Holland, em um discurso para o sacerdócio local, falou, por duas vezes, para não sermos como os fariseus. Porém, passado mais de um ano, tudo continua na mesma.

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