Eu tenho uma confissão a fazer.
O termo anti-Mórmon é muito popular entre os membros da Igreja SUD. Muitas fiéis SUD usam este termo liberalmente como adjetivo ou substantivo para alertar, condenar, julgar, denegrir, insultar, ou ignorar pessoas e ideias com as quais não concordam ou não se sentem à vontade. Há um outro termo, este mais técnico e oficial, que se usa com os mesmos intuitos, mas o popular mesmo é o “Anti-Mórmon”.
Mas, dificilmente se tira o tempo ou se dá o trabalho para definir precisamente o que significa o termo Anti-Mórmon, e o que (ou quem) se pode classificar como Anti-Mórmon. Naturalmente, como com conceitos tão subjetivos e tão pessoais como crenças, opiniões, e impressões, há tantas definições sobre o que constitui Anti-Mórmon quanto há pessoas expostas ao Mormonismo.
Sendo assim, eu gostaria de fazer uma confissão, e aproveitar para oferecer uma explicação.
Eu sou um Anti-Mórmon, confesso e assumido.
O que, pra mim, significa isso?
O Livro de Mórmon define a expressão Anti-Mórmon. Como?
Ele narra uma estória sobre uma nação de Ameríndios que se denominam Lamanitas, racialmente amaldiçoados com uma pele escura e descrentes do Cristianismo pré-colombino. Um grupo pequeno destes Lamanitas se converteram ao Cristianismo entre 9o e 77 AEC através dos esforços de missionários Nefitas, outra nação de Ameríndios, porém racialmente pura e religiosamente crente. Em honra a esta conversão religiosa, e para demonstrar sua mudança de alinhamento social, cultural, religioso, e racial, este grupo de Lamanitas assume pra si o nome “Anti-Néfi-Lehitas”.
Em outras palavras, no Livro de Mórmon, um Anti-Néfi-Lehita é uma pessoa que honra a tradição e o legado de Néfi e Lehi.
Consequentemente, um Anti-Mórmon seria uma pessoa que honra a tradição e o legado de Mórmon, ou do Mormonismo.
Na minha opinião pessoal, eu acredito que o legado e a tradição que eu adquiri nascendo e sendo criado dentro do Mormonismo, e havendo passado toda a minha vida adulta estudando o passado e história Mórmon, é um aspecto importante e fundamental da minha vida pessoal. Mais do que qualquer outra influência externa, credito ao Mormonismo o estimulo para constante introspecção e auto-reflexão (Mórmons chamam isso de “arrependimento”), para honestidade pessoal e intelectual, para dedicação familiar, para apreciação profunda pela história, para valorizar o trabalho, e acima de tudo, sempre buscar escolher “faze[r] o bem, escolhendo o que é certo“. Pra mim, isso é o que é o cerne do Mormonismo.
Não obstante, como eu mencionei acima, há opiniões diferentes da minha expressa acima. Há pessoas que acreditam que o termo Anti-Mórmon define-se pelo uso clássico do prefixo grego anti que significa “elemento que indica oposição”. Para estas pessoas, a expressão Anti-Mórmon indica uma pessoa ou uma ideia que se posiciona expressamente em oposição ao, ou contra o, Mormonismo. Ademais, para tais pessoas, esta expressão indica não oposição aos temas e preceitos Mórmons como eu os defini acima (ou como o profeta-fundador do Mormonismo Joseph Smith os definiu certa vez), mas a determinados dogmas e crenças tidas por alguns Mórmons como expressamente ortodoxas. Definem, assim, o mundo Mórmon como dividido entre os Mórmons ortodoxos e os Anti-Mórmons, e mais nada além destes dois rótulos existe no mundo. Aliás, o termo ortodoxia também deriva de raízes gregas, onde orthos (correto, verdadeiro) e doxa (opinião, crença) formam o conceito de “crença correta” ou “opinião verdadeira”, fazendo contraposição com o termo heterodoxia (de heteros, diferente ou outro). A dificuldade intelectual e ética desta expressão foi brilhantemente encapsulada pelo intelectual Bispo Anglicano do século 18:
“Ortodoxia é a minha doxia. Heterodoxia é a doxia dos outros.”
— William Warburton
Estas pessoas que definem Anti-Mórmon como “opositores”, na verdade, tomam para si o direito e o privilégio de definir exatamente o que é ortodoxia e o que não é, ou em outras palavras, o que é a crença correta e o que é a crença incorreta. Buscam, assim, definir o Mormonismo não em contexto de conceitos morais e éticos (e.g., como eu o defini acima), mas sim num contexto de crenças e dogmas. Acredita-se nestas crenças X, Y, e Z e obedece-se às ordens A, B, e C ou não se pode pertencer ao, ou participar do, Mormonismo. Se não se acredita nas crenças X, Y, e Z, ou se não obedece-se cegamente às ordens A, B, e C, coloca-se portanto em direta oposição ao Mormonismo. Recentemente, dois Mórmons foram ameaçados com a punição máxima na Igreja SUD (i.e., excomunhão, ou como é mais popularmente conhecido, a versão moderna da prática do ostracismo) apenas por não concordarem com as posições institucionais da Igreja sobre o tratamento diferenciado e negativo de mulheres Mórmons e de gays Mórmons.
A atitude de obrigar, ou querer obrigar, pessoas a crerem determinados credos ou dogmas, ou obedecerem cegamente determinados ditames ou ordens é, ironicamente, a antítese da ideologia e dos valores Mórmons, além de ser fundamentalmente detrimental para a Igreja e comunidade Mórmons. Submeto, portanto, que esta atitude é a verdadeira atitude anti-Mórmon, no sentido “opositor” tão popular entre essas vozes.
Em primeiro lugar, é uma postura inerentemente não caridosa. Crenças e opiniões são características pessoais e de foro íntimo, e não podem ser forçadas ou coagidas. Ademais, a existência de diferenças de crenças e opiniões é um fato inevitável entre seres humanos, e um fato indiscutível entre profetas e apóstolos Mórmons do passado. Se estes podem divergir — às vezes ferozmente — em crenças e opiniões, por que não poderiam os demais Mórmons? Quando Mórmons decidem tentar forçar outros Mórmons a crer no que não creem, ou ter (ou fingir ter) opiniões que não são suas, forçam-nos essencialmente a ser quem não são, a sentir-se inválidos como pessoas, e a aceitar que seu valor enquanto ser humano depende da crença que crê e da opinião que tem (e de que estes se conformem às crenças ou às opiniões estabelecidas por outrem).
Em segundo lugar, é uma postura cruel e desumana. Quando se vilipendia alguém por diferenças de crenças e opiniões ao taxa-lo de “anti-Mórmon” apenas por estas diferenças, ou quando se aplica punição social barbárie como o ostracismo (i.e., excomunhão), pratica-se uma forma de bullying ou intimidação, buscando minar as estruturas psico-emocionais da pessoa até que decida adequar-se às crenças ou opiniões tidas como ideais. Esta é uma afirmação que merece ser repetida apenas para deixa-la mais clara e inequívoca. Quando alguém dispensa e ignora as ideias de outra pessoa, enquanto a taxa de “apóstata” ou “anti-Mórmon”, ela está praticando bullying e intimidação numa tentativa de forçar a outra pessoa a mudar de opinião, ao invés de convence-la disto através de amor e compaixão ou argumentação racional e lógica. Quando uma instituição (i.e., a Igreja SUD) lança mão do desequilíbrio de poder entre o membro (fraco e isolado) e a instituição para obrigar a resolução de uma diferença a favor da parte forte, corporativa, e detentora do poder social, ela nada mais que covardemente coage pela força do dano emocional e psicológico, infligido ou ameaçado.
Em terceiro lugar, é uma postura taticamente estúpida. Numa sociedade cada vez mais aberta, e cada vez mais com acesso a informações, a maioria das vítimas desta tática de intimidação resolve este conflito emocional retirando-se deste círculo social, refletindo negativamente entre os observadores desinteressados, tanto dentro como fora do círculo em questão. No caso específico da Igreja SUD, as vítimas abandonam o Mormonismo inteiramente (explicando a baixíssima taxa de retenção de membros e a admissão da Autoridade Geral/historiador da Igreja Marlin Jensen da alta taxa de renúncia de membros) e os não-membros permanecem com uma impressão péssima de que Mórmons são uma seita ignorante e intolerantemente fechada.
Em quarto lugar, é uma postura que viola a teologia Mórmon. Na doutrina Mórmon, Jesus ofereceu a Deus um plano de salvação que oferecia liberdade no arbítrio individual moderado com um sacrifício expiatório humano (d’Ele mesmo), enquanto Lúcifer ofereceu um plano de salvação onde nenhuma alma teria tal liberdade individual mas, sendo obrigada a crer e obedecer como Deus exigia, seria inexoravelmente salva e exaltada. Deus teria optado pelo plano de Jesus e rejeitado o de Lúcifer. Quando um Mórmon tenta, através de intimidação social com epítetos negativos (e.g., Anti-Mórmon, apóstata, etc.), ou através da intimidação eclesiástica com a ameaça do ostracismo (e.g., excomunhão), está abraçando o plano e a estratégia de Lúcifer.
Em quinto lugar, é uma postura fundamentalmente desonesta. Além de tentar obrigar a outra pessoa a viver uma mentira (i.e., fingir crer no que não crê), a atitude de coibir pensamento crítico e opiniões próprias depende de uma visão menos que honesta das questões em pauta. Isto é muito comum entre apologistas (que são, no frigir dos ovos, pessoas dedicadas ao mesmo ofício, exceto que ao invés de forçar ortodoxia, procuram enganar as pessoas em aceita-la), que distorcem os fatos, a lógica, e os argumentos para extrair da outra pessoa uma admissão de crença “ortodoxa”. Posto de outra maneira, para fazer cumprir uma posição ortodoxa, torna-se necessário mentir e dissimular para que visões heterodoxas sejam percebidos como tal, ou que qualquer outra visão que não a ortodoxa seja inerentemente “má” ou “errada”, quando os fatos ou a lógica demonstram o contrário.

Junto ao túmulo de John Whitmer, uma das testemunhas do Livro de Mórmon, um grupo de historiadores e acadêmicos à época do congresso anual da Associação de Historiadores John Whitmer (eu sou o segundo da direita, sentado, entre Linda Newell e Bill Russell). A função de historiadores e outros acadêmicos é, justamente, pesquisar e pensar em novas visões e abordagens, para coletivamente reavaliarmos nossa visão-de-mundo e nossas visões do passado, e do futuro.
Em sexto lugar, é uma postura empobrecedora. Quando se vilifica a prática do pensamento crítico, da auto-reflexão, da discussão pública aberta e honesta, enquanto se valoriza a obediência cega, a caça-às-bruxas e a perseguição intelectual, e ao conformismo credal, o meio cultural, social, e intelectual apenas se empobrece, emburrecendo toda uma geração, e tornando o meio cada vez mais medíocre. Todos os grandes avanços intelectuais na história humana ocorreram em ambientes onde as ideais eram discutidas livremente, mesmo em contexto religioso.
Em sétimo lugar, é uma postura ignorante. Para poder coibir outros Mórmons de pensarem por si mesmos ou aprenderem fatos que possam ser vistos como desafiadores, estas pessoas dependem da ignorância (e, às vezes, da ingenuidade) de seu público-alvo. Ignorância, especialmente, da história. É fato histórico inconteste de que a Igreja SUD mudou com o tempo, tanto em suas doutrinas, como em suas práticas. Práticas como poligamia e segregação racial, crenças e doutrinas como Adão-Deus e Expiação de Sangue foram abandonadas, até mesmo a formação ideal da família Mórmon mudou! Vencida esta ignorância histórica, e reconhecendo tais mudanças e evoluções, torna-se inconcebivelmente cretino crer que as crenças e as práticas atuais são as “verdadeiras” e imunes a mudanças ou revisões futuras. Consequentemente, invalida-se quaisquer pretensões ao monopólio do que é a ortodoxia, e caridosamente abre-se espaço para discussões públicas cordiais sobre “doxias” diferentes.
“Os gritos de “apostasia” e “heresia” informam mais sobre a capacidade intelectual de quem grita que sobre os méritos das crenças de quem os ouve. São mentes infantilizadas ou debilitadas as incapazes de enxergar quaisquer ideias diferentes das suas sem instintivamente vociferar “apostasia” e “heresia”.”
E, finalmente, é simplesmente uma postura anti-ética e imoral. Lançar mão de intimidação social e medo para salvaguardar a popularidade e a relevância social de determinadas crenças e costumes, além de dizer volumes (negativos) da validade inerente destes, é simplesmente um ato imoral e pouco ético com as demais pessoas que sofrem (desnecessariamente) com as sequelas emocionais desta intimidação e do medo imposto.
Nós sabemos disso porque a Igreja SUD fez a mesma coisa em 1993. Em Setembro de 1993, a Igreja excomungou 6 acadêmicos/historiadores Mórmons, seguido de mais algumas outras excomunhões posteriores, criando e disseminando um clima de medo, terror, angústia tanto para estas pessoas, como para seus familiares, e para os demais acadêmicos nos ramos de pesquisa Mórmon. Um deles, talvez o maior historiador Mórmon vivo, teve a sua carreira e sua vida pessoal completamente destruída por esta purga. Mentiras, posteriormente desmascaradas, foram contadas para proteger a liderança máxima (i.e., Apóstolos) de envolvimento nesta perseguição sistemática, da mesma maneira que se tenta fingir hoje que as intimações a duas pessoas públicas distintas, em estados distantes, e abraçando causas diferentes apenas coincidentemente foram ameaçadas na mesma semana. A sensação de medo, apreensão, e revolta se alastrou em menos de dois dias por toda comunidade Mórmon nesses tempos de internet e conexão virtual e mais uma geração de Mórmons intelectualmente ativos se vê obrigada a escolher entre fingir crenças para ser aceitos ou manter sua honestidade intelectual ou integridade moral.
Esta é a comunidade que queremos criar para nosso filhos?
Como eu havia definido o cerne do Mormonismo acima, o que realmente importa, o que realmente é o mais importante dentro da religião e da tradição cultural Mórmon, eu acho não poderia expressa-lo melhor do que o poema que se encontra entre os hinos Mórmons, um de meus favoritos da infância (escutar aqui):
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Faze o bem, escolhendo o que é certoQuando apresentar-se a ocasião.O Espírito Santo estará pertoPara inspirar-te a decisão.
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Faze o bem, com o espírito libertoDa discórdia e da tentação.Tudo tem o seu lado errado ou certoÉ bom agir sob inspiração.
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Faze o bem, com a paz na consciênciaFaze o bem, de todo o coração.Faze o bem, e com toda a diligência,Busca alcançar a exaltação.
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Faze o bem! Faze o bem!E a verdade vencerá.Faze o bem! Faze o bem!E Deus as bênçãos te dará.
Muitos Mórmons, incluindo muitos líderes Mórmons, tanto locais como gerais (como Apóstolos), estão escolhendo não seguir esta admoestação mais importante dentro do Mormonismo. Ao escolher vilificar outros Mórmons apenas por pensarem diferente — ou simplesmente por pensarem — estão escolhendo por não fazer o bem, mas fazer o mal e caluniar e intimidar outras pessoas; Não estão escolhendo o que é certo, que seria tratar pessoas que pensam diferentes e que tem opiniões diferentes com dignidade e caridade; Não apresentam um espírito liberto da discórdia, mas sim um espírito de constranger e forçar os outros a crerem e pensaram como eles mesmos; Não acreditam que a verdade vencerá, pois do contrário não sentiriam a necessidade de forçar a (sua versão da) verdade goela abaixo dos seus irmãos e irmãs Mórmons.
O preceito fundamental do Mormonismo é “fazer o bem”. Perseguir, vilificar, vilipendiar, humilhar, e intimidar outras pessoas apenas por discordarem de uma crença ou de uma ideia não é “fazer o bem”. Portanto, não é a coisa “Mórmon” a se fazer. Esta é a verdadeira atitude “anti-Mórmon”.
Excelente, melhor artigo que já li entre tantos outros. Você expressou exatamente o que sinto, infelizmente muitos de nós estamos passando por isso, muitos querem forçar a “única” maneira certa de pensar é como a igreja ensina. Seus líderes e amigos muitas vezes te criticam por pensar diferente.
Está ficando cada vez melhor Jun… É alem de historiador um filosofo… Isso não é um elogio vazio, lendo sua definição de anti-mórmon eu fui transportado mentalmente ao tempo de Friedrich Nietzsche que como sabem usa o termo niilismo de modo pessoal, só que não informa aos seus leitores, aqui você informa e a explicação ficou provida de uma lógica esfuziante.
Muitos de nós após Nietzsche não gostaríamos de ser classificados como niilistas, mas após seu texto não vejo problemas em ser chamado de anti-mórmon. Ou de exterminador de vacas sagradas…
Melhor gerar inquietações nas pessoas que simplesmente concordar com o personagem do primeiro Matrix que afirma a ignorância é uma benção. Parabéns mais uma vez pelo texto.