Celebramos a Páscoa Cristã.
Páscoa vem da palavra grega pascho, que significa “sentir” ou “viver a experiência”. Nos Evangelhos canônicos, especialmente nos relatos da Páscoa Cristã, ela foi invariadamente usada com o significado de “sofrer” ou “sentir dor” ou “viver uma experiência dolorosa ou pesarosa”. Para os autores dos Evangelhos, pascho (páscoa) significava o sofrimento e a dor que Jesus de Nazaré vivenciou no seu martírio em Jerusalém. Daí o nosso uso do têrmo Páscoa para nos referir ao martírio (sofrimento e morte) de Jesus.
Celebremo-na considerando os quatro relatos mais antigos, e coincidentemente canonizados, da Páscoa.
Ao contrário do que a maioria dos Cristãos imagina, os quatro relatos canonizados (i.e., os Evangelhos atribuídos a Marcos, Mateus, Lucas e João) não narram o mesmo evento, não se complementam, e não são mutualmente inclusivos. Todas as quatro narrativas são individuais e independentes, narrando relatos como o seu autor acreditava ou imaginava ou ouvira ter ocorrido (nenhum desses autores fora testemunha ocular — na realidade, todos os evangelhos são anônimos, e atribuições autorais surgiram décadas após suas composições).
Portanto, honramos os autores que nos legaram esses quatro relatos distintos respeitando suas independências editoriais, estudando-os como eles haviam desejado: Individual e independentemente.
Dito isso, como ocorreu a Páscoa de acordo com o autor do Evangelho de João?
Para o autor do Evangelho de João, a semana da Páscoa é ainda mais relevante que para os demais evangelistas. Os eventos são narrados em maior detalhe, especialmente as conversas, diálogos, e discursos, que assumem uma centralidade que obscura os eventos em si. A narrativa pascal ocupa quase metade de todo o Evangelho. [1]
Narrativa
Seis dias antes da Páscoa, Jesus chega a Betânia, onde janta com o ressuscitado Lázaro enquanto “Marta servia”. Enquanto almoçava, “Maria” unge-O com “um perfume caro”, enxugando Seus pés “com os seus cabelos”. Judas Iscariotes imediatemente se opõe ao desperdício, já que esse dinheiro poderia ser doado aos pobres. Contudo, Judas não se queixa por um senso de caridade e sim porque ele roubava da “bolsa de dinheiro”. Enquanto Jesus defende a excepcionalidade de Seu caso naquele momento, “uma grande multidão de judeus” rodeiam a casa para ver Jesus e Lázaro, a , ao descobrir que Jesus estava ali, veio, não apenas por causa de Jesus, mas também para ver Lázaro, “a quem ele ressuscitara dos mortos”. Por isso, os “chefes dos sacerdotes” começaram a planejar Sua morte, pois “muitos estavam se afastando dos judeus e crendo em Jesus”. [2]
No dia seguinte, uma “grande multidão” sai de encontro a Jesus chegando a Jerusalém carregando “ramos de palmeiras” e saudando-O como o “Rei de Israel”. Jesus havia “consegui[do] um jumentinho” para cumprir o que “está escrito”. [3] Enquanto Jesus previa Sua morte e Seu sentido para uns “gregos”, surge “uma voz dos céus” como um trovão:
“Eu já o glorifiquei e o glorificarei novamente”.
Jesus explica mais sobre Sua morte e ressurreição iminente, expandindo ainda:
“Por mais um pouco de tempo a luz estará entre vocês. Andem enquanto vocês têm a luz, para que as trevas não os surpreendam, pois aquele que anda nas trevas não sabe para onde está indo. Creiam na luz enquanto vocês a têm, para que se tornem filhos da luz”.
O narrador interrompe a narrativa para explicar que o “profeta Isaías” havia visto Jesus e profetizado sobre a recepção que Ele receberia. [4]
“Por esta razão eles não podiam crer, porque, como disse Isaías… Isaías disse isso porque viu a glória de Jesus e falou sobre ele.”
Ainda assim, “muitos líderes dos judeus creram”, porém não “confessavam a sua fé com medo de serem expulsos da sinagoga”. [5] Por isso, subitamente, Jesus disse:
“Quem crê em mim, não crê apenas em mim, mas naquele que me enviou. Quem me vê, vê aquele que me enviou. Eu vim ao mundo como luz, para que todo aquele que crê em mim não permaneça nas trevas. Se alguém ouve as minhas palavras, e não lhes obedece, eu não o julgo. Pois não vim para julgar o mundo, mas para salvá-lo. Há um juiz para quem me rejeita e não aceita as minhas palavras; a própria palavra que proferi o condenará no último dia. Pois não falei por mim mesmo, mas o Pai que me enviou me ordenou o que dizer e o que falar. Sei que o seu mandamento é a vida eterna. Portanto, o que eu digo é exatamente o que o Pai me mandou dizer.”
Após alguns dias, um “pouco antes da festa da Páscoa”, Jesus estava jantando com seus Seus amigos a quem “ama[va]”, quando se vestiu com uma toalha e pôs-se a lavar os seus pés, explicando-lhes:
“… se eu, sendo Senhor e Mestre de vocês, lavei-lhes os pés, vocês também devem lavar os pés uns dos outros. Eu lhes dei o exemplo, para que vocês façam como lhes fiz. Digo-lhes verdadeiramente que nenhum escravo é maior do que o seu senhor, como também nenhum mensageiro é maior do que aquele que o enviou. Agora que vocês sabem estas coisas, felizes serão se as praticarem.”
Terminado esse evento do jantar, Jesus anuncia que será traído, e ainda deixa explícito que seria por Judas, mas ninguém exceto os dois entendem, e Judas deixa o jantar. Aparentemente aliviado depois que Judas saiu, Jesus disse:
“Agora o Filho do homem é glorificado, e Deus é glorificado nele. Se Deus é glorificado nele, Deus também glorificará o Filho nele mesmo, e o glorificará em breve. Meus filhinhos, vou estar com vocês apenas mais um pouco. Vocês procurarão por mim e, como eu disse aos judeus, agora lhes digo: Para onde eu vou, vocês não podem ir. Um novo mandamento lhes dou: Amem-se uns aos outros. Como eu os amei, vocês devem amar-se uns aos outros. Com isso todos saberão que vocês são meus discípulos, se vocês se amarem uns aos outros.”
Pedro pergunta aonde Jesus iria e se não poderia segui-Lo, posto que daria sua vida por Ele, ao que Jesus retruca que “antes que o galo cante, você me negará três vezes!”
Sentindo um clima negativo e triste no ar após conversa sobre traição de Judas, negação de Pedro, e a partida d’Ele, Jesus conforta Seus discípulos com um longo discurso sobre o futuro, a vida pós-mortal, a natureza de Deus, a promessa do Espírito Santo, a importância deles como discípulos, e sua relação com os que não seguem a Jesus:
“Não se perturbe o coração de vocês. Creiam em Deus; creiam também em mim. Na casa de meu Pai há muitos aposentos; se não fosse assim, eu lhes teria dito. Vou preparar-lhes lugar…”
“Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim. Se vocês realmente me conhecessem, conheceriamtambém o meu Pai. Já agora vocês o conhecem e o têm visto… Quem me vê, vê o Pai. Você não crê que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras que eu lhes digo não são apenas minhas. Ao contrário, o Pai, que vive em mim, está realizando a sua obra. Creiam em mim quando digo que estou no Pai e que o Pai está em mim…”
“E eu pedirei ao Pai, e ele lhes dará outro Conselheiro para estar com vocês para sempre, o Espírito da verdade. O mundo não pode recebê-lo, porque não o vê nem o conhece. Mas vocês o conhecem, pois ele vive com vocês e estará em vocês.”
“Se o mundo os odeia, tenham em mente que antes me odiou. Se vocês pertencessem ao mundo, ele os amaria como se fossem dele. Todavia, vocês não são do mundo, mas eu os escolhi, tirando-os do mundo; por isso o mundo os odeia.”
Além disso, Jesus discute o futuro atrito nas relações entre os Judeus que seguem a Jesus e os demais, explicando-se porque nunca havia avisado antes sobre essas rusgas:
“Vocês serão expulsos das sinagogas; de fato, virá o tempo quando quem os matar pensará que está prestando culto a Deus. Farão essas coisas porque não conheceram nem o Pai, nem a mim. Estou lhes dizendo isto para que, quando chegar a hora, lembrem-se de que eu os avisei. Não lhes disse isso no princípio, porque eu estava com vocês.”
Ainda assim, a conversa retorna vez após vez à tristeza e ao pesar da separação entre os discípulos e Jesus.
“Digo-lhes que certamente vocês chorarão e se lamentarão, mas o mundo se alegrará. Vocês se entristecerão, mas a tristeza de vocês se transformará em alegria. A mulher que está dando à luz sente dores, porque chegou a sua hora; mas, quando o bebê nasce, ela esquece a angústia, por causa da alegria de ter vindo ao mundo. Assim acontece com vocês: agora é hora de tristeza para vocês, mas eu os verei outra vez, e vocês se alegrarão, e ninguém lhes tirará essa alegria… Eu lhes asseguro que meu Pai lhes dará tudo o que pedirem em meu nome.”
Jesus, então, reza com seus discípulos:
“Pai, chegou a hora. Glorifica o teu Filho, para que o teu Filho te glorifique. Pois lhe deste autoridade sobre toda a humanidade, para que conceda a vida eterna a todos os que lhe deste. Esta é a vida eterna: que te conheçam, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste… Eu revelei teu nome àqueles que do mundo me deste. Eles eram teus; tu os deste a mim, e eles têm obedecido à tua palavra… Eu rogo por eles. Não estou rogando pelo mundo, mas por aqueles que me deste, pois são teus… Agora vou para ti, mas digo estas coisas enquanto ainda estou no mundo, para que eles tenham a plenitude da minha alegria… Minha oração não é apenas por eles. Rogo também por aqueles que crerão em mim, por meio da mensagem deles, para que todos sejam um, Pai, como tu estás em mim e eu em ti. Que eles também estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste.”
Terminado de rezar, Jesus saiu com os seus discípulos até um “olival” do outro lado do “vale do Cedrom”, onde Jesus costumava se reunir com Seus discípulos. Então, Judas foi para o olival, levando um “destacamento de soldados e alguns guardas enviados pelos chefes dos sacerdotes e fariseus”. Antes que chegassem neles, porém, Jesus sai ao seu encontro:
– A quem vocês estão procurando?
– A Jesus de Nazaré.
– Sou eu.
E “eles recuaram e caíram por terra”. Novamente, Jesus lhes perguntou:
– A quem procuram?
– A Jesus de Nazaré.
– Já lhes disse que sou eu. Se vocês estão me procurando, deixem ir embora estes homens.
“Isso aconteceu para que se cumprissem as palavras que ele dissera: ‘Não perdi nenhum dos que me deste'”. [6]
Pedro imediatamente saca uma espada e decepa a orelha de “Malco”, escravo do sumo sacerdote. Jesus, porém, repreendeu a Pedro:
“Guarde a espada! Acaso não haverei de beber o cálice que o Pai me deu?”
Os “soldados com o seu comandante e os guardas dos judeus” prenderam Jesus e e o levaram primeiramente a Anás, sogro de Caifás, o sumo sacerdote “naquele ano”. [7]
Pedro e “outro discípulo” seguiram Jesus, e enquanto este “entrou com Jesus no pátio da casa do sumo sacerdote” por ser “conhecido”, Pedro teve que “ficar esperando do lado de fora”. Reconhecido por “uma moça”, Pedro nega conhecer Jesus.
Enquanto isso, o “sumo sacerdote interrogou Jesus acerca dos seus discípulos e dos seus ensinamentos”, ao que Ele retruca: “Nada disse em segredo. Por que me interrogas? Pergunta aos que me ouviram. Certamente eles sabem o que eu disse.” Um guarda esbofeteia Jesus pela resposta e Jesus apenas responde serenamente: “Se eu disse algo de mal, denuncie o mal. Mas se falei a verdade, por que me bateu?”
Anás decide, então, enviar Jesus, a Caifás, o sumo sacerdote. Enquanto isso, Pedro nega conhecer Jesus mais duas vezes, e “no mesmo instante um galo cantou”.
Em seguida, “os judeus” levaram Jesus da casa de Caifás “para o Pretório”. Raiava o sol da manhã da sexta-feira “na semana da Pásco” e, para “evitar contaminação cerimonial”, não entraram no Pretório “os judeus” pois queriam “participar da Páscoa”. [8] Pilatos exige que eles julguem a Jesus de acordo com as leis judaicas, mas “eles” se desculpam ao insistir que eles não tinham autoridade para a pena capital. [9]
Nisso, Pilatos interroga Jesus:
– Você é o rei dos judeus?
– Essa pergunta é tua, ou outros te falaram a meu respeito?
– Acaso sou judeu? Foram o seu povo e os chefes dos sacerdotes que entregaram você a mim. Que é que você fez?
– O meu Reino não é deste mundo. Se fosse, os meus servos lutariam para impedir que os judeus me prendessem. Mas agora o meu Reino não é daqui.
– Então, você é rei!
– Tu dizes que sou rei. De fato, por esta razão nasci e para isto vim ao mundo: para testemunhar da verdade. Todos os que são da verdade me ouvem.
– Que é a verdade? [10]
Pilatos anuncia a inocência de Jesus, porém cita “o costume de … libertar um prisioneiro por ocasião da Páscoa”. Ele pergunta se deveria libertar o “Rei dos Judeus”, mas “eles” pedem Barrabás, que “era um bandido”. [11] Pilatos responde mandando “açoitar Jesus”, e “os soldados” O zombam com “uma coroa de espinhos” e “uma capa de púrpura” enquanto O torturam. Novamente, Pilatos aborda “os judeus” para proclamar Sua inocência, apresentando-O à multidão para tomem pena d’Ele:
– Eis o homem!
– Crucifica-o! Crucifica-o!
– Levem-no vocês e crucifiquem-no. Quanto a mim, não encontro base para acusá-lo.
Quando “os judeus” insistiram que Ele deveria morrer por se declarar “Filho de Deus”, Pilatos “ficou ainda mais amedrontado” e retornou para interrogá-Lo novamente.
– De onde você vem?
<Silêncio>
– Você se nega a falar comigo? Não sabe que eu tenho autoridade para libertá-lo e para crucificá-lo?
– Não terias nenhuma autoridade sobre mim, se esta não te fosse dada de cima. Por isso, aquele que me entregou a ti é culpado de um pecado maior.
Pilatos “procurou libertar Jesus”, mas “os judeus” retrucaram com uma ameaça: “Se deixares esse homem livre, não és amigo de César. Quem se diz rei opõe-se a César”. Finalmente, ao meio-dia, Pilatos tentando novamente convencer a multidão, ouve ecos da ameaça prévia (“Não temos rei, senão César”) e ordena que seja crucificado.
Levando a “Sua própria cruz”, Jesus é levado por soldados até “o lugar chamado Caveira”, onde é crucificado entre “dois outros, um de cada lado de Jesus” e sob a “inscrição: Jesus Nazareno, Rei dos Judeus” em aramaico, latim e grego. [13] Muitos “dos judeus” leram a placa e os “chefes dos sacerdotes dos judeus” protestaram a Pilatos, que os ignora. Enquanto isso, os soldados dividiram “as roupas dele… em quatro partes” e sortearam a “túnica” restante “para que se cumprisse a Escritura”. [14]
Maria mãe de Jesus, Maria irmã dela e esposa de Clopas, e Maria Madalena permaneciam próximas à cruz, quando Jesus chamou “o discípulo a quem ele amava”, pedindo-lhe para que cuidasse de sua mãe.
Algum tempo depois, “sabendo então que tudo estava concluído”, Jesus queixou-se de sede e lhe ofereceram uma “esponja na ponta de um caniço de hissopo” encharcada em vinagre, e bebendo, disse: “Está consumado!” Abaixou a cabeça e morreu.
Como era véspera de “um sábado especialmente sagrado” ostencivamente por ser também a primeira noite de Páscoa, “os judeus” pediram a Pilatos que agilizassem a execução e retirassem os corpos. Os soldados, então, quebraram as pernas dos homens crucificados com Jesus, mas não a do já morto Jesus. Contudo, para certificar-se, um dos soldados “perfurou o lado de Jesus com uma lança” de onde “saiu sangue e água”.
“Aquele que o viu, disso deu testemunho, e o seu testemunho é verdadeiro. Ele sabe que está dizendo a verdade, e dela testemunha para que vocês também creiam. Estas coisas aconteceram para que se cumprisse a Escritura: “Nenhum dos seus ossos será quebrado”, e, como diz a Escritura noutro lugar: “Olharão para aquele que traspassaram”.” [15]
José de Arimatéia, discípulo de Jesus “secretamente” por medo “dos judeus”, aborda Pilatos para lhe pedir o corpo de Jesus. [16] Recebendo permissão de Pilatos, ele e Nicodemos com “trinta e quatro quilos de uma mistura de mirra e aloés”, O envolveram em “faixas de linho, com as especiarias, de acordo com os costumes judaicos de sepultamento”. Eles aproveitaram um sepulcro no jardim próximo à “Caveira”, pois “ficava perto” e o Sábado pascal se aproximava.
No Domingo cedo, antes de amanhecer, Maria Madalena chegou ao sepulcro e viu que a pedra ocluindo o sepulcro havia sido removida. Correu, então, ao encontro de Pedro e “do outro discípulo, aquele a quem Jesus amava” para lhes contar que haviam movido o corpo. Eles correram imediatamente para lá para checar o relato dela. Havendo checado, voltaram para casa, mas ela permaneceu “à entrada do sepulcro, chorando”. Enquanto chorava, curvou-se para olhar dentro do sepulcro e viu “dois anjos vestidos de branco, sentados onde estivera o corpo de Jesus, um à cabeceira e o outro aos pés”.
– Mulher, por que você está chorando?
– Levaram embora o meu Senhor e não sei onde o puseram.
Nisso ela se voltou e viu Jesus ali, em pé, mas não o reconheceu, achando que fora o jardineiro.
– Mulher, por que está chorando? Quem você está procurando?
– Se o senhor o levou embora, diga-me onde o colocou, e eu o levarei.
– Maria!
Subitamente Maria O reconhece e exclama “Rabôni!” (“Mestre” em aramaico).
Jesus disse:
“Não me toque, pois ainda não voltei para o Pai. Vá, porém, a meus irmãos e diga-lhes: Estou voltando para meu Pai e Pai de vocês, para meu Deus e Deus de vocês”.
E Maria Madalena correu para anunciar aos discípulos que havia visto “o Senhor” e relatar todo o ocorrido.
Ainda no mesmo dia, no final da tarde, estando os discípulos reunidos a portas trancadas “por medo dos judeus”, Jesus materializou-se “no meio deles” saudando-os: “Paz seja com vocês!” Imediatamente, e sem rodeios, mostrou-lhes “as mãos e o lado” e os discípulos alegraram-se. Jesus, então, “soprou sobre eles” dizendo: “Recebam o Espírito Santo. Se perdoarem os pecados de alguém, estarão perdoados; se não os perdoarem, não estarão perdoados”.
Contudo, Tomé “chamado Dídimo, um dos Doze” não estava com os discípulos quando Jesus apareceu. e não creu no relato dos demais:
“Se eu não vir as marcas dos pregos nas suas mãos, não colocar o meu dedo onde estavam os pregos e não puser a minha mão no seu lado, não crerei.”
Uma semana mais tarde, os discípulos estavam novamente reunidos, e desta vez Tomé com eles. Novamente, Jesus materializou-se no quarto “apesar de estarem trancadas as portas” e repetiu: “Paz seja com vocês!” E aproveitou para dirigir-se a Tomé:
“Coloque o seu dedo aqui; veja as minhas mãos. Estenda a mão e coloque-a no meu lado. Pare de duvidar e creia.”
Aproveitando a ocasião, Jesus adiciona:
“Porque me viu, você creu? Felizes os que não viram e creram.” [17]
Jesus realizou mais milagres para eles “que não estão registrados” no Evangelho de João, mas o que foi escrito serve “para que vocês creiam que Jesus é o Cristo”. [18]
Alguns dias depois, Jesus aparece novamente aos Seus discípulos à margem do mar de Tiberíades, enquanto pescavam sem sucesso. Jesus, na praia e não reconhecido à distância, grita orientações a eles, que imediatamente pescaram “cento e cinqüenta e três grandes peixes” e “embora houvesse tantos peixes, a rede não se rompeu”. Então Jesus lhes convidou para comerem juntos, mas aparentemente Ele ainda não era plenamente reconhecível, apenas sentiam que era Ele:
Nenhum dos discípulos tinha coragem de lhe perguntar: “Quem és tu?” Sabiam que era o Senhor.
Depois de comerem, Jesus perguntou a Simão Pedro três vezes seguidas: “Simão, filho de João, você me ama mais do que estes?” Embora magoado pela insistência das perguntas repetidas, Pedro manteve claro sua resposta em afirmativa, e nas três vezes, Jesus lhe comissionou: “Pastoreie as minhas ovelhas”.
Em seguida, Jesus profetiza o eventual assassinato e martírio de Pedro. Curioso, Pedro pergunta do “discípulo a quem Jesus amava”, ao que Jesus lhe respondeu: “Se eu quiser que ele permaneça vivo até que eu volte, o que lhe importa?”
“Foi por isso que se espalhou entre os irmãos o rumor de que aquele discípulo não iria morrer. Mas Jesus não disse que ele não iria morrer; apenas disse: “Se eu quiser que ele permaneça vivo até que eu volte, o que lhe importa?” Este é o discípulo que dá testemunho dessas coisas e que as registrou. Sabemos que o seu testemunho é verdadeiro.” [19][20]
Notas
[1] É fato inconteste a relação literária entre os Evangelhos de Marcos, Lucas, e Mateus. Quem copiou quem e como esses autores conheciam e copiaram e alteraram uns os textos dos outros é uma área de pesquisa acadêmica conhecida como “O Problema Sinótico”. O consenso acadêmico abraço o conceito de “prioridade marcana” ou “prioridade de Marcos”, o que significa que acredita-se haver amplas evidências sugerindo que Marcos foi o primeiro texto a ser composto e que tanto Mateus como Lucas copiaram dele. Ademais, existe uma corrente convincente e crescente argumentando e demonstrando que Lucas conhecia e copiou Mateus, considerando que aproximadamente um quarto do Evangelho de Mateus aparece quase palavra por palavra para formar um quarto do Evangelho de Lucas. Com relação à produção literária do Evangelho de João, há duas correntes principais acadêmicas. Uma delas, outrora popular porém em franca obsolência nos últimos 50 anos, postula que João é uma produção independente, vinculada ao Cristianismo Gnóstico, que também produziria o Evangelho de Tomé e os Dizeres de Jesus. A outra, que vem ganhando progressivamente mais reconhecimento e angariando melhores evidências textuais, postula que João era inteiramente familiarizado com os demais Evangelhos, especialmente Marcos, e ainda com as Epístolas de Clementino e Valentino, ou ao menos suas comunidades.
[2] É interessante notar que o autor de João se refere aos inimigos de Jesus como “os Judeus”, ou descreve uma clara distinção entre “os Judeus” e “os que creem em Jesus”, enquanto os demais evangelistas fazem a clara distinção de acusar os “líderes religiosos”. Durante a maior parte do século I, como vemos nas Epístolas de Paulo, os Cristãos eram “os Judeus”, mesmo os que eram Gentios conversos (chamados de προσήλυτος ou proselytos), frequentando livremente as Sinagogas e vivendo nas comunidades judaicas. A relação era tão promíscua que, quando discussões entre os seguidores de Jesus e os demais Judeus em Roma evoluíram para “confusões” em 41 EC, o Imperador Cláudio expulsou “os Judeus” da cidade, demonstrando que, ao menos para as autoridades Romanas, não havia distinção entre os dois grupos. Historiadores calculam a produção do Evangelho de João para o começo do século II, após o rompimento oficial e a expulsão dos Cristãos das sinagogas no final dos anos 90 EC, o que se reflete na descrição das relações entre Jesus e “os Judeus” na narrativa de João.
[3] O autor de Marcos não estava ciente que essa passagem havia sido escrita por deutero-Isaías e se referia a nação de Israel, e não ao Messias, descrito ali na terceira pessoa do ponto de vista dos Gentios. O autor de João “compra” o erro como “profecia”, provavelmente de Marcos.
[4] Novamente, nenhuma dessas passagens discorria sobre o Messias, ou Cristo, mas falava de Israel, na época de Isaías (ou deutero-Isaías, na primeira citação).
[5] Novamente, Cristãos não seriam “expulsos das sinagogas” por mais 60 anos.
[6] Em nenhum outro documento há essas palavras registradas. O significado delas vem sido debatido há quase 2 mil anos, considerando que Ele havia “perdido” Judas, no sentido espiritual, e a tradição dita que muitos dos discípulos foram assassinados, no sentido físico.
[7] Anás é um dos Judeus mais conhecidos e influentes do século I. Além de ter servido como Sumo Sacerdote ele mesmo, usou de sua influência para garantir 5 filhos seus como Sumos Sacerdotes e ainda seu genro Caifás. Ademais, manteve fortes laços com a elite governante Romana, desde quando fora empossado como Sumo Sacerdote em 6 EC à época do censo de Quirino, quando Roma assume controle direto da Judéia. Falecido em 40 EC, sua influência perdurou mais duas décadas, até quando seu filho Anás o Jovem, que também serviu como Sumo Sacerdote, foi assassinado pelos insurgentes que incitavam a revolta que levou à Primeira Guerra Judaico-Romana.
[8] Diferentemente dos costumes ocidentais Greco-Romanos, o calendário judaico considerava o dia iniciado ao pôr-do-sol, e não ao nascer-do-sol. Aparentemente, o autor de João não sabia disso. Além disso, João estabelece a morte de Jesus numa sexta-feira véspera da Páscoa (14 de Nisan), enquanto Marcos, Mateus, e Lucas a situam numa sexta-feira de Páscoa (15 de Nisan).
[9] Lei Romana não proibia a pena capital nas províncias, e Flávio Josefo menciona execuções legais durante o século I. Aparentemente, o autor de João não sabia disso. Curiosamente, esse trecho foi encontrado num pequeno fragmento de papíro de 9X6 cm, que foi datado paleograficamente (i.e., por estudo da caligrafia) para entre 150 e 200 EC, o que o torna o mais antigo trecho documentário do Novo Testamento e de toda literatura Cristã. Estudos radiométricos não foram realizos devido ao minúsculo tamanho do fragmento.
[10] Pilatos, enquanto Governador e Prefeito, era por lei e mandato obrigado a controlar quaisquer sinais de insurreição. Todos os muitos candidatos a “Rei” ou “Messias” (i.e., Cristo) na Palestina durante o século I eram sumariamente executados sem quaisquer amenidades ou interrogações ou investigações. Pilatos, notório por ser violento, inclemente, e intolerante, é retratado pelo autor de João interrogando e discutindo filosofia com um prisoneiro acusado de insurreição e se auto-entitular Rei.
[11] Estranhamente, nunca houve tal tradição e não há nenhum sinal ou evidência de que tal tradição existisse. O registro histórico é claro sobre Pôncio Pilatos como um governador violento e inclemente, que jamais permitiria um insurgente como Barrabás permanecer preso, que dirá comutado. Rebeldes eram executados sem quaisquer hesitações, sendo a manutenção da paz e da ordem o seu mandato principal. Ademais, Pilatos odiava os Judeus e não cedia a suas demandas, preferindo confrontações violentas com o uso excessivo das legiões. Não há registros dele haver “cedido” a “demandas” de “multidões”, ou de tentar “agradar” ninguém. Inclusive, Pilatos foi removido pelo Imperador justamente por causa de sua intransigência e violência contra os Judeus.
[12] Declarar-se “Filho de Deus” não era uma ofensa à lei judaica, mas aparentemente o autor de João não sabia disso. Contudo, declarar-se Rei dos Judeus, sim, era uma ofensa capital à lei romana!
[13] O título oficial do Messias, ou Cristo, é exatamente “Rei dos Judeus”.
[14] Salmo 22 era um favorito na literatura Cristã dos primeiros dois séculos, embora seja utilizado inteiramente fora de contexto. Vários trechos foram utilizados e citados por autores Cristãos, tanto nos textos que foram canonizados como nos que não foram, sempre descontextualizados além de qualquer reconhecimento. O salmo não discute o Messias, mas sim o sofrimento de Israel em exílio e cativeiro.
[15] Essa passagem é absolutamente a chave para toda narrativa de Paixão em João. Aqui o autor de João deixa claro que não é testemunha ocular dos acontecimentos (“aquele que viu, disso deu testemunho”), que não confia nos testemunhos de Marcos, Mateus, ou Lucas (pois altera eventos e detalhes específicos importantes), e explica exatamente porque ele altera a data da morte de Jesus de 15 de Nisan para 14 de Nisan. João não está citando uma “profecia” a cerca do Messias, mas regras judaicas a cerca do sacrifício pascal que é servido no Seder. Enquanto para Marcos, Mateus, e Lucas a “Santa Ceia” é um Seder para o Pessach judaico, para João é um jantar qualquer, pois o Seder verdadeiro é aquele depois da morte de Jesus, pois Ele é o último cordeiro do último sacrifício. João mostra que ele crê válido alterar “fatos” para narrar uma estória teologicamente alinhada com suas crenças.
[16] Nunca, nunca, nunca condenados mortos em crucificações eram permitidos sepultamentos. Os corpos deveriam apodrecer nas cruzes ao ar livre. Inculcar terror e medo nos habitantes locais era justamente o propósito de crucificações, especialmente de rebeldes, insurgentes, ou potenciais usurpadores do poder e autoridade de Roma.
[17] Obviamente, o autor de João, dirigindo-se a uma audiência quase um século removida dos eventos narrados, e sem quaisquer pretensões de acesso a testemunhas oculares, aborda uma provável crítica constante em sua comunidade. Quantos não teriam questionado a ausência de evidência? “Se eu não vir as marcas dos pregos nas suas mãos, não colocar o meu dedo onde estavam os pregos e não puser a minha mão no seu lado, não crerei.” Esse evangelista inclui uma resposta, que nenhum dos outros evangelistas mencionaram, a esses céticos: “Porque me viu, você creu? Felizes os que não viram e creram”.
[18] Novamente, o autor de João em sua honestidade e franqueza, deixa claro que não está escrevendo um biografia para relatar fatos e eventos, mas uma propaganda missionária, para que o leitor “creia”.
[19] A inclusão da conversa sobre o “destino” do “discípulo que Jesus amava” é uma óbvia manobra para corrigir essa crença popular comum na comunidade do autor de João. Como os Cristãos da primeira metade do século I eram apocalípticos e esperavam o “fim dos tempos” ou a “vinda do Filho do Homem” em suas próprias vidas, provavelmente acreditavam que Ele viria ainda na vida deste discípulo. Como João estava sendo escrito quase um século após os eventos narrados, essa crença já começava a parecer ridícula (correções assim encontram-se, em menor proporção, nos Evangelhos de Mateus e Lucas e, em maior ênfase, nas epístolas posteriores, como a de Pedro e as Pastorais pseudo-paulinas). Sendo assim, a inclusão de uma cláusula condicional “se eu quiser… o que lhe importa” corrige definitivamente o “rumor”.
[20] A anonimidade do “discípulo que Jesus amava” é motivo de discussão e debate há pelo menos 900 anos. Antigamente, especulava-se que João não se citava diretamente por modéstia, ou ainda que servia de segurança para si (ou para Lázaro ou Maria Madalena, outros candidatos populares). Essas opiniões são fortemente rejeitas pela comunidade acadêmica atual, considerando as evidências que apontam para um autor em longe distanciado dos eventos narrados em tempo e espaço, sem acesso a testemunhas oculares, e dependente de relatos anteriores (i.e., Evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas, e talvez de Tomé), além da tardia data de composição (ca. 100-120 EC), que tornaria quaisquer questões de segurança vazias. A visão considerada como mais racional e lógica, tendo em vista todos os fatores e evidências em questão, sugere que esse anonimato serve uma função literária como “representante do leitor”, um personagem através de quem leitores se inserem na narrativa, seja por falar ou agir como os leitores falariam ou agiriam, seja por proporcionar explicações, seja por oferecer um espaço em branco onde os leitores podem individualmente se projetar. Exemplos clássicos dessa técnica são o Dr. John Watson em ‘Sherlock Holmes’, ou as “companheiras” no ‘Doctor Who’, ou os Hobbits em ‘Senhor dos Anéis’.
Referências Bibliográficas
Coogan, Michael (ed.), ‘The New Oxford Annotated Bible with Apocrypha: New Revised Standard Version‘, 4a ed.
Ehrman, Bart, ‘The New Testament: A Historical Introduction to the Early Christian Writings‘, 5a ed.
Goodacre, Mark, ‘The Case Against Q: Studies in Markan Priority and the Synoptic Problem‘, 1a ed.
Levine, Amy-Jill (ed.), ‘The Jewish Annotated New Testament‘, 1a ed.
Metzger, Bruce, ‘The Oxford Companion to the Bible‘, 1993
Desde criança me disseram que a palavra Páscoa significa “passagem” e que antes de Cristo esta celebração se referia à libertação do povo Hebreu do cativeiro no Egito. O autor do texto diz que Páscoa significa “sentir”. Terei eu sido enganado a vida inteira?
Se o Evangelho segundo Marcos, Mateus, Lucas e João não foram escritos por Marcos, Mateus , Lucas e João, Por que a autoria do texto foi a eles atribuída? e Quem atribuiu a autoria a eles?
Gostaria de entender como é que conseguem determinar com boa precisão a data em que os textos foram escritos e não conseguem determinar os autores do texto.
“Vozes Mormons” escreveu que os 4 relatos canonizados não narram o mesmo evento.
Para mim foi uma surpresa, pois sempre pensei que os eventos narrados fossem os mesmos: nascimento, ministério, condenação, morte e ressurreição de Cristo.
Ademais, ainda foi escrito que um texto foi copiado do outro:”O consenso acadêmico abraço o conceito de “prioridade marcana” ou “prioridade de Marcos”, o que significa que acredita-se haver amplas evidências sugerindo que Marcos foi o primeiro texto a ser composto e que tanto Mateus como Lucas copiaram dele. Ademais, existe uma corrente convincente e crescente argumentando e demonstrando que Lucas conhecia e copiou Mateus, considerando que aproximadamente um quarto do Evangelho de Mateus aparece quase palavra por palavra para formar um quarto do Evangelho de Lucas”;
“Para o autor de Lucas, a narrativa do Evangelho de Marcos, especialmente a narrativa da Paixão (do latim passionem, significando “sofrimento”), é tão importante que o autor de Lucas copia o texto de Marcos palavra por palavra. Inclusive, aproximadamente 42% do texto do Evangelho de Lucas é literalmente copiado, palavra por palavra, de 79% do texto do Evangelho de Marcos. ”
Eu, na minha santa ignorância, tenho dificuldade para entender como duas narrações, uma copiada da outra, não narrem o mesmo evento.
Ficaram, para mim, algumas dúvidas: Somente os relatos mais antigos é que foram canonizados? O critério para canonização foi a antiguidade dos textos? Quem determinou o que seria canonizado? São muitos os relatos não canonizados? Os relatos não canonizados são divergentes dos canonizados?
1) Resposta curta? Sim.
Resposta longa? Isso é um erro comum de confundir o têrmo hebreu “Pesach” para a Páscoa judaica com o têrmo “páscoa” em si. O têrmo “páscoa” vem do grego pascho e é definido no artigo acima. O têrmo “Pesach” vem das raízes hebraicas Pei-Samekh-Cheit e significa atravessar ou passar por cima. Pesach e Pascho não são sinônimos, apesar do uso deste para a tradução da Bíblia Hebraica Septuaginta.
2) Resposta curta? A Igreja Católica, para conferir autoridade aos textos canônicos.
Resposta longa? Na metade do segundo século EC, um Cristão rico e influente montou a primeira coleção de textos Cristãos que ele considerava canônicos. Marcião de Sinopé, defensor da versão docética do Cristianismo, organizou seu cânone de textos sacros que incluía o Evangelho de Lucas e das 10 das epístolas de Paulo. Vários Bispos e filósofos Cristãos imediatamente se revoltaram contra o que eles chamavam de “heresia Marcionita” e começaram a elaborar suas próprias listas (variadas) de textos que deveriam ser canônicos. A lista que compõe a exata versão atual do Novo Testamento só apareceu 120-150 anos depois. Durante os (muitos e acirrados) debates para se determinar quais textos deveriam ser incluídos no cânone oficial, alguns critérios rapidamente surgiram para qualificar a relevância e importância dos textos: Quanto mais antigo, mais próximo a Jesus, e mais importante. Autoria por uma testemunha ocular. Autoria por um dos Apóstolos. Autoria por um amigo pessoal dos Apóstolos. Et cetera. Além disso, desde a circulação inicial dos textos, relatos orais sobre os textos eram transmitidos junto com os textos em si, e suposições e especulações evoluiram com o tempo em tradições e, eventualmente, referências.
3) Resposta curta? É impossível determinar os autores pois não existem evidências. As datas são aproximadas e deduzidas.
Resposta longa? A datação dos textos depende de um cruzamento de informações internas e evidências externas. Por exemplo: Nós sabemos que Marcos foi o primeiro Evangelho a ser escrito porque Mateus e Lucas copiam diretamente dele, e João dá sinais de conhecê-lo. Portanto, se Marcos foi composto ao redor de 70 EC, nenhum dos outros pode ter sido escrito em 60 ou 50 EC. Ademais, é preciso permitir tempo entre a composição de um Evangelho para circular e ser copiado e retransmitido até que apareça nas mãos de outro autor para cópia e elaboração. Ou seja, Marcos deve ter circulado por alguns anos antes que Mateus pudesse lê-lo, copiá-lo, e alterá-lo para escrever o seu próprio Evangelho. Bom, nós sabemos que Marcos foi composto depois da invasão de Jerusalém na Primeira Guerra Judaico-Romana, pois ele a descreve no seu “pequeno apocalipse”. Contudo, a invasão e a guerra ainda não havia sido concluída, pois ele não descreve os seus resultados e consequências finais, deixando em aberto com a esperança da vinda do Filho do Homem para a redenção de Israel, o que sugere que ela ainda estava ocorrendo. As forças Romanas demoraram mais 3 anos até capturar todas as forças rebeldes em Massada, por exemplo, após a destruição de Jerusalém em 70 EC. A maioria dos acadêmicos aceita a composição de Marcos nesse período. Mateus já demonstra conhecer o resultado final da guerra, e Lucas deixa ainda mais claro que a guerra e seus resultados desastrosos estão bem no passado, inclusive lidando com o fato da vinda do Filho do Homem em glória não ter ocorrido para resgatar Israel, como esperado pelos Cristãos. João é tão distante da guerra que não a aborda com interesse ou em detalhes, porém gasta muito tempo discutindo a separação dos “judeus” e dos Cristãos e sua “expulsão das sinagogas”, o que ocorreu duas décadas após o final da guerra, e em parte em consequência dela.
4) Basta-se ler os Evangelhos individualmente para notar-se as diferenças e os contrastes. Esses 4 resumos que publicamos servem para ilustrar justamente isso. Ademais, se Mateus acreditasse em Marcos, e Lucas acreditasse em Marcos ou Mateus, eles não os teriam alterado tanto. Inclusive, Lucas explicitamente escreve que estava compondo o seu Evangelho para corrigir os erros em Marcos e Mateus.
5) É muito simples. Eles alteraram os trechos que lhes pareciam importante alterar e mantiveram a estrutura básica estabelecida pelos originais em mãos. Composição literária não é uma tarefa simples, e o que eles não precisavam alterar, ou com o que concordavam, não seria necessário mudar.
Uma alteração muito simples, mas profunda, é a data da morte de Jesus. Marcos, Mateus, e Lucas colocam a morte no 15 de Nisan, primeiro dia do Pesach. João o coloca no 14 de Nisan, véspera do Pesach. E há implicações teológicas importantes para essas duas opções, e essas distinções teológicas representam discussões entre Cristãos à época das composições dos textos.
6) Não. O Evangelho de João é relativamente tardio, provavelmente mais “moderno” que 1 Clemente, o Evangelho dos Sinais, o Evangelho de Tomé, o Evangelho de Pedro, a Epístola de Barnabás e o Ensinamentos dos Doze Apóstolos. As epístolas pastorais (Timóteo 1 e 2, Tito) e as de João são muito mais “modernos” que todos estes, e provavelmente que o Apocalipse de Adão, a Epístola de Inácio, e a Epístola de Policarpo.
7) Ver #2
8) Muitos. Esses são os que eu me lembro de cabeça. Temos também o Evangelho de Judas, o Evangelho de Tiago, o Evangelho de Maria, o Evangelho da Infância de Jesus, o Evangelho dos Ebionitas, o Evangelho do Nazoreus, o Pastor de Hermes, o Evangelho de Eva, Atos de Pedro, Atos de João, o Evangelho da Infância de Tiago, a Epístola de Justino, o Martírio de Policarpo, etc.
9) Muito. O mais legal de todos é o Evangelho de Pedro, que narra dois anjos saindo do sepulcro vazio seguidos por uma cruz gigantesca e flutuante. O Evangelho de Judas, como se pode imaginar, relata como Judas era o Apóstolo mais fiel e a “Rocha” da Igreja Cristã.
Agradeço pelas respostas, entendi agora, o que você quis dizer ao alegar que os 4 textos não narram os mesmos eventos. Você considera que por conta das discrepâncias, os eventos narrados não sejam os mesmos.
No entanto, para mim, essa questão é de menor importância. Existem outras coisas que você escreveu que chamaram mais a atenção. Aliás , algumas coisas são incômodas e estou ainda digerindo as informações postadas.
Considerando, então, que foi a Igreja Católica que determinou quais dos relatos da vida de Cristo que fariam parte da Bíblia e quais não fariam. Considerando que foi esta mesma Igreja que determinou que a autoria destes 4 textos selecionados seriam atribuídas aos apóstolos/discipulos Marcos, Mateus, Lucas e João. Isto é um fato no mínimo, no mínimo, irônico.
Todas as Igrejas Cristãs utilizam a Bíblia como o Livro Sagrado e parte do conteúdo da Bíblia foi determinado pela Igreja Católica. Ou seja , foi a Igreja Católica que, em parte, determinou para as outras Igrejas o que seria a Palavra de Deus.
Por exemplo, se a Igreja Católica tivesse resolvido canonizar e incluir na Bíblia o Evangelho de Pedro, todos os outros cristão teriam de acreditar que uma cruz gigantesca saiu flutuando do sepulcro, afinal seria a palavra de Deus.
A ironia, se refere ao fato de que diversas denominações cristãs promovem ataques/críticas à Igreja Católica.
Não estou defendendo ou atacando a Igreja Católica ou qualquer outra Igreja, mas parece então que todas acataram o que a Católica decidiu, visto que eu nunca soube de ninguém que tenha questionado estas decisões (sobre quais livros seriam incluídos na Bíblia e a quem seriam atribuídas as suas autorias), nem mesmo a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.
Vejamos o que diz a 8ª Regra de Fé: Cremos ser a Bíblia a palavra de Deus, desde que esteja traduzida corretamente; também cremos ser o Livro de Mórmon a palavra de Deus.
A Igreja SUD aceita plenamente a Bíblia inteira como sendo a palavra de Deus, com uma única restrição que se refere à qualidade da tradução.
Parece então que, na visão do mormonismo, a Igreja Católica acertou na eleição dos textos que compõe o Novo Testamento.
Joseph Smith ainda nos contemplou com uma versão inspirada da Bíblia, mas , pelo que eu sei, esta obra de Smith não desatou nenhum nó doutrinário.
Bem, Vozes Mormons, na sua postagem , ao final, foram incluídas 20 notas, lí todas e fiquei em dúvida em relação às notas 8 e 9 .
No nota 20 você alega que o evangelho de João foi escrito aproximadamente entre 100-120DC: “… além da tardia data de composição (ca. 100-120 EC)” – acredito que a sigla ca seja circa.
No entanto na nota 9 você diz que um determinado trecho do livro de João foi escrito 150-200DC : “… esse trecho foi encontrado num pequeno fragmento de papíro de 9X6 cm, que foi datado paleograficamente (i.e., por estudo da caligrafia) para entre 150 e 200 EC, o que o torna o mais antigo trecho documentário do Novo Testamento e de toda literatura Cristã.”
Acredito que aí seria necessária uma informação complementar (ao menos para mim): O Evangelho de João foi escrito entre 100-120, mas parte dele foi escrito após o ano150?é isso?
Quando você escreveu na nota 9 que ” o que o torna o mais antigo trecho documentário do Novo Testamento e de toda literatura Cristã” eu, a princípio achei que voce tivesse se enganado, pois a data é entre 150-200DC.
No entanto, Nesta nota [9] você inclui um link que remete a uma página da wikipedia(em inglês),chamada de Rylands Library Papyrus P52, onde podemos ler que ” Although Rylands 52 is generally accepted as the earliest extant record of a canonical New Testament text,[3] the dating of the papyrus is by no means the subject of consensus among scholars…”
Assim, de fato, neste link está escrito que é aceito como o mais antigo, mas isso não é um consenso.
Eu acho que eu me perdi em meio a estas informações, pois como este trecho poderia ser o mais antigo, se data de 150-200DC… O evangelho de Marcos não seria mais antigo, pois data de 70 DC?
Apenas para constar, nesta página da wiki (Rylands Library Papyrus P52), existe um conjunto de 90 notas, na nota 3 (da wikipedia), se eu entendi corretamente, existe um outro candidato para ser o documento mais antigo do Novo testamento: “See 7Q5 for alternative candidate” –
https://en.wikipedia.org/wiki/7Q5
https://bible.org/article/7q5-earliest-nt-papyrus
Na nota {8} do seu artigo no Vozes Mormons está escrito que ” Além disso, João estabelece a morte de Jesus numa sexta-feira véspera da Páscoa (14 de Nisan), enquanto Marcos, Mateus, e Lucas a situam numa sexta-feira de Páscoa (15 de Nisan).”
Eu fiquei com uma dúvida sobre esse trecho, mas antes de expor minha dúvida, quero confessar minha ignorância sobre o assunto.
Eu nunca tinha antes ouvido falar sobre essa palavra “Nisan”.
Ao procurar a palavra Nisan no google, como resultado, foi trazida a palavra Nissan (wikipedia em portugues).
Somente na wikipedia em inglês, que consta a palavra Nisan.
Pelo que entendi , Nisan é um dos meses do calendario Hebreu, equivalente aos meses de março e abril do nosso calendário.
Agora, o que eu não entendi é como é que 14 de Nisan e 15 de Nisan podem, os dois, terem caído em uma sexta-feira.
Pois eu penso assim: Se 14 de Nisan era sexta-feira, então de 15 de Nisan seria um sábado. Se 15 de Nisan era uma sexta, então 14 de Nisan seria uma quinta-feira.
Outra coisa que achei curiosa, você escreveu que João desconhecia alguns aspectos básicos da cultura judaica: aparentemente ele não sabia que 1.no calendário judaico o dia iniciava-se ao por do sol e 2. não era proibida a pena capital nas províncias.
Parece-me então que ele não era judeu. Gera curiosidade em saber por que foi canonizado o texto de um autor que cometeu esses erros .
Se a Igreja Católica tinha esse “poder absoluto” de determinar o que seria a palavra de Deus, não poderiam ter corrigido esses erros de João, antes de canonizar o relato dele?
A canonização do livro de João teria alguma relação com o combate ao docetismo? Segundo a wikipedia, um trecho do livro de João: “o Verbo se fez carne” , foi utilizado para refutar esta doutrina que afirma que o corpo de Jesus era uma ilusão.(docetismo tb foi uma palavra nova que aprendi no google)
Achei muito interessante o artigo, achei uma pena que não teve muitos comentários, mas , ao menos para mim, serviu para pesquisar um pouco sobre o assunto.
Organizaremos seu comentário nos seus pontos principais para melhor abordá-los:
1) “Você considera que por conta das discrepâncias, os eventos narrados não sejam os mesmos.
No entanto, para mim, essa questão é de menor importância.”
Não subestime essas discrepâncias. Através do estudo dessas discrepâncias é que melhor entendemos os objetivos e as crenças dos respectivos autores.
Por exemplo, é importante notar que João mudou a Santa Ceia de um jantar Seder (Marcos, Mateus, Lucas) para um jantar ordinário porque percebemos que para ele, Jesus deveria ser o Ele mesmo o último sacrifício pascal, implicando portanto a substituição completa da religião Judaica pela religião Cristã. Essa teologia substitutiva não ocorre para Marcos, Mateus, ou Lucas, para quem a Santa Ceia era uma celebração de Seder, e Jesus trazia a redenção e a restauração da religião Judaica. Essa percepção explica porque “os judeus” são os inimigos de Jesus em João, enquanto que Marcos, Mateus, e Lucas tomam o cuidado de especificar apenas os “líderes religiosos” como inimigos, ou porque João discorre frequentemente sobre atritos em, e expulsões de, sinagogas enquanto Marcos, Mateus, e Lucas mostram Jesus sendo abraçado ou respeitado por grande parte das comunidades judaicas.
Por que Mateus e Lucas mudaram ou omitiram trechos de Marcos? Por que Lucas mudou ou omitiu trechos de Mateus? Por que Lucas criticou explicitamente as versões de Marcos e Mateus? Essas perguntas oferecem linhas de pesquisas e questionamentos que nos orientam na compreensão dos respectivos textos mais do que qualquer outra linha de pesquisa.
2) “No entanto na nota 9 você diz que um determinado trecho do livro de João foi escrito 150-200DC”
A composição do texto é datada em ca. 100-120 EC (sim, ca. é abreviação latim para “circa” que significa “aproximadamente”) e a composição do manuscrito é datado para ca. 150-200 EC. Isso significa que o livro foi composto ou escrito no começo do segundo século mas aquele manuscrito específico P52 foi copiado na segunda metade do segundo século.
Quando se discute datação de livros na antiguidade, especialmente os textos Cristãos, é importante ter em mente que estamos lidando com estimativas. Há autores que datam o Evangelho de João em ca. 60-80 EC, porém eles são uma minoria distinta e seus argumentos não tem méritos racionais ou evidenciários. Há autores que também datam o P52 em ca. 125 EC e outros em 250 EC, mas esses também são minorias.
O manuscrito em si poderia ser datado com testes radiométricos (e.g., Carbono-14), mas esses testes são destrutivos e o exemplar é pequeno demais para ser testado sem ser completamente destruído. Ainda assim, Carbono-14 não nos poderia oferecer uma margem de erro melhor que 25 ou 50 anos, o que não alteraria muito a análise paleocaligráfica.
3) “Assim, de fato, neste link está escrito que é aceito como o mais antigo, mas isso não é um consenso.”
Exatamente. Ver acima.
4) “Eu acho que eu me perdi em meio a estas informações, pois como este trecho poderia ser o mais antigo, se data de 150-200DC… O evangelho de Marcos não seria mais antigo, pois data de 70 DC?”
É importante ter em mente que são duas questões completamente diferentes.
Uma é a composição do texto. Quando um autor senta para escrever seu livro.
Outra é a composição de um manuscrito. Quando um escrivão senta para copiar um livro inteiro à mão.
Nós não temos nenhum manuscrito original. Não temos nenhum manuscrito datando do primeiro século, e apenas um pequeno minúsculo trecho datando do segundo século. O que temos são alguns manuscritos que são cópias das cópias das cópias das cópias datando do terceiro e quarto século. A maioria esmagadora dos manucritos existentes datam de após o quarto e o quinto séculos, inclusive os que são comumente usados para montar as várias versões e traduções do Novo Testamento.
5) “Apenas para constar… existe um outro candidato para ser o documento mais antigo do Novo testamento: “See 7Q5 for alternative candidate””
7Q5 é um fragmento encontrado no meio dos Manuscritos do Mar Morto. Durante a década de 1970 ele foi considerado como um possível trecho do Evangelho de Marcos, mas dúzias de estudos e décadas depois, ele foi inteiramente descartado como texto Cristão. É importante se lembrar que esse fragmento contém apenas algumas letras randômicas, sequer formando uma única palavra.
6) “Eu nunca tinha antes ouvido falar sobre essa palavra “Nisan”.”
Nós não temos uma explicação no artigo sobre o Pessach? Nisan é, como você mesmo descobriu, um mês no calendário hebraico. Poderíamos ter explicado isso, certamente.
7) “Agora, o que eu não entendi é como é que 14 de Nisan e 15 de Nisan podem, os dois, terem caído em uma sexta-feira. Pois eu penso assim: Se 14 de Nisan era sexta-feira, então de 15 de Nisan seria um sábado. Se 15 de Nisan era uma sexta, então 14 de Nisan seria uma quinta-feira.”
Você tem razão, e é justamente esta a questão. Para Marcos, Mateus, e Lucas 15 de Nisan caiu na sexta-feira (lembrando-se que o “dia de calendário” judaico começa ao por-do-sol, ou seja, 15 de Nisan começou na quinta-feira à noite), enquanto que para João ele caiu no Sábado.
8) “Se a Igreja Católica tinha esse “poder absoluto” de determinar o que seria a palavra de Deus, não poderiam ter corrigido esses erros de João, antes de canonizar o relato dele?”
Vários “erros” foram corrigidos pela “Igreja”. Veja, por exemplo, o final do Evangelho de Marcos que foi alterado e quase nenhuma versão atual termina onde a narrativa original terminava. Contudo, é importante se lembrar de duas coisas: a) A “Igreja” deixou de ser judaica no final do primeiro século, e quando o cânone se formou nos terceiro e quarto séculos, Cristãos já não tinham mais contato com as tradições judaicas. Especialmente séculos após a segunda destruição do Estado Judeu e a expulsão e dispersão deles da Palestina; b) Muitos “erros” simplesmente passaram desapercebidos por séculos, até o início do Iluminismo.
9) “A canonização do livro de João teria alguma relação com o combate ao docetismo?”
Certamente.
A maior pergunta em pesquisa acadêmica hoje em dia é se a composição em si do Evangelho de João não foi um “combate ao docetismo”. O docetismo clássico, rejeitado pelo Conselho de Nicéia, popularizou-se apenas no final do segundo século e começo do terceiro século. Contudo, Marcião pregava uma versão similar, e essa versão docética (hoje chamada de Marcionismo) era muito popular na primeira metade do segundo século, justamente quando o Evangelho de João foi escrito.
Apenas para quem estiver acompanhando, docetismo era uma doutrina que pregava que Cristo era uma manifestação da divindade inteiramente aparte da existência mortal e mundana dos homens. Jesus, portanto, era apenas uma ilusão de homem mortal para permitir a interação do Cristo com humanos. (Docetismo vem do verbo grego dokeo ou dokein significando “parecer” ou “aparentar”) É importante notar que nós não temos nenhum dos escritos docéticos ou Marciônicos, e apenas reconstruímos o que sabemos de suas crenças a partir dos escritos de seus antagonistas e críticos (cujos escritos sobreviveram por se alinharem à ortodoxia Católica).
10) “Achei muito interessante o artigo, achei uma pena que não teve muitos comentários, mas , ao menos para mim, serviu para pesquisar um pouco sobre o assunto.”
Obrigado. Nós também achamos “uma pena”, mas ficamos felizes que para você ele foi útil!