Joseph Smith, Interrompido

As traduções feitas pela Igreja no Brasil são confiáveis? São sempre traduções ou às vezes adaptações do conteúdo? A seguir apresento o estudo de uma tradução que alterou ensinamentos de Joseph Smith sobre Adão.

JS interrompidoPara Joseph Smith, a tradução era tanto um dos meios pelo qual as antigas escrituras haviam sido corrompidas, quanto um dos meios divinos disponíveis para restaurá-las a seu sentido original, assim como para trazer à luz escrituras desconhecidas. A tradução, portanto, era percebida como um meio divino de restaurar a verdade.

Em suas reuniões dominicais, A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias oferece aulas em que são abordados temas de sua doutrina através do uso de escrituras e de outros livros publicados pela Igreja. De 1998 a 2009, a Igreja utilizou uma série chamada Ensinamentos dos Presidentes da Igreja, utilizados para as aulas de membros adultos. O último volume, utilizado entre 2008 e 2009, apresentou trechos de discursos de Joseph Smith.

Traduzindo Joseph Smith para o português

Uma tendência da série Ensinamentos dos Presidentes da Igreja foi a forte edição de certos trechos e biografias que omitiam fatos como, por exemplo, a prática do casamento plural. [1] Frente a essa tendência, imaginamos que os erros de tradução no capítulo 8 da publicação que analisamos, intitulado O Sacerdócio Eterno, parecem muito mais com escolhas intencionais feitas durante a tradução, com o objetivo de adaptar o texto original ao suposto perfil do leitor. A tradução feita para os leitores de língua portuguesa, porém, apresenta decisões pelas quais a hierarquia da Igreja em Salt Lake não pode ser diretamente responsabilizada, uma vez que a edição em língua inglesa não apresentou uma edição que censurasse os trechos a seguir analisados.

“Patriarca Adão”

Primeiramente, Adão deixa de ser “nosso Pai” para se tornar “nosso Patriarca”:

Daniel, em seu sétimo capítulo, menciona o Ancião de Dias; ele quis dizer com isso o homem mais velho, nosso Patriarca Adão, Miguel; ele reunirá seus filhos e realizará um conselho com eles para prepará-los para a vinda do Filho do Homem. (p. 109)

Aqui está o trecho original, como incluído no mesmo manual em inglês:

Daniel in his seventh chapter speaks of the Ancient of Days; he means the oldest man, our Father Adam, Michael; he will call his children together and hold a council with them to prepare them for the coming of the Son of Man.

A expressão “Pai Adão” parece ser característica da doutrina mórmon (D&C 137:5; 138:38 – com maiúscula para pai -; Moisés 6:51, 53; 7:1 -com minúscula). Na tradução para o português, a opção por “Patriarca”, termo mais longo e menos comum, ignorando uma correspondência óbvia entre os dois idiomas, sinaliza a preocupação que norteará a tradução do capítulo inteiro, que busca reescrever as afirmações sobre Adão para colocá-lo em um plano inferior ao do texto original.

Ao escrever para a divisão de currículos da Igreja (cur-development@ldschurch.org), minha mensagem foi repassada ao escritório da área brasileira, de quem recebi a seguinte resposta sobre a escolha de “Patriarca”:

Na tradiçăo brasileira, o termo pai seguido do nome próprio é incomum, somente sendo freqüente nas religiőes afros em títulos como Pai João, etc. A fim de evitar conotações indesejáveis, é opção estilística da nossa Divisão não empregar o título pai dessa maneira, atendendo assim a uma demanda de compreensão da maior parte da nossa população que, como é sabido, não compartilha conhecimentos lingüísticos profundos como o seu. [2]

Aqui, a influência afro-brasileira na cultura nacional é considerada a razão do tradutor “proteger” o leitor das palavras de Joseph Smith, razão pela qual a tradução é uma adaptação do conteúdo visando o suposto baixo nível de compreensão dos membros. Ao não partilhar de “profundos conhecimentos linguísticos”, tais membros não seriam dignos de “profundos conhecimentos” espirituais.

 

Entre o que o tradutor lê e o que ele acredita, entre o que está escrito e o que ele julga adequado que seja lido há um conflito que coloca ao tradutor a tarefa árdua de amenizar as afirmações de Joseph Smith. No mesmo parágrafo, lemos

Ele (Adão) é o pai da família humana e preside os espíritos de todos os homens.

No original em inglês:

He (Adam) is the father of the human family, and presides over the spirits of all men.

O termo “pai” agora é mantido, com inicial minúscula, tal como no original, o que sugere que a escolha anterior de “Patriarca” tenha sido motivada pela letra maiúscula colocada em “Father Adam”.

O tradutor parece perceber algum indício capaz de induzir à subversão da doutrina em sua forma atual, ortodoxa, razão pela qual tenta proteger o leitor do texto original, de onde se conclui que o tradutor possa ver no próprio Joseph Smith o potencial de subversão. Será que o autor teria em mente alguma possível leitura que sugerisse a crença de Adão como Deus, o Pai?

“Cristo acima de Adão”

Joseph Smith fala então sobre o conselho mencionado por Daniel em que Adão recebe Cristo e todos os homens que tiveram as chaves do sacerdócio delegadas a eles. Adão, ao presidir sobre todo as dispensações, recebe uma, por assim dizer, “prestação de contas” de seus sucessores:

e todos os que possuíram chaves terão que se apresentar a ele naquele conselho.(…) (idem)

Cristo está entre os que precisam apresentar seu trabalho a Adão. Infelizmente, porém, na tradução do manual, este ato de Cristo reportando a Adão é ocultado. A posição de poder do tradutor parece confundir-se com uma posição eclesiástica em que aquele que preside avalia a dignidade pessoal daquele sobre quem preside. O leitor é visto como não tendo condições de ler da “forma correta”, pela “doutrina correta, como os tradutores e editores do manual se consideram capazes de fazer:

O Filho do Homem está acima dele e recebeu glória e domínio. Adão entregará sua mordomia a Cristo, que lhe foi entregue por possuir as chaves do universo, mas manterá sua posição como o cabeça da família humana. (idem)

“O Filho do Homem está acima dele” simplesmente não aparece no original, onde lemos: “The Son of Man stands before him”.A frase traz uma descrição gráfica de Cristo e Adão estando frente-a-frente, sem a relação acima-abaixo criada na tradução.

No original, vemos Cristo, na cena descrita, fazendo o mesmo que outros profetas e patriarcas perante Adão, como em “stand before him”:

all that have had the keys must stand before him (…)

The Son of Man stands before him (…) 

Se, “stand before him” significa “está acima dele”, como traduzido, então a primeira parte deveria ser igualmente traduzida da forma seguinte: “e todos os que possuíram chaves devem estar acima dele”. Isso obviamente iria contradizer a ideia do parágrafo inteiro de que Adão preside sobre todos os homens.

No livro Ensinamentos do Profeta Joseph Smith, traduzido para o português em 1975, lemos no mesmo trecho,

e todos os que tiveram as chaves devem comparecer perante ele nesse conselho. (…) O Filho do Homem estará à sua frente, ali, glória e domínio ser-lhe-ão conferidos. (p. 153)

Ao traduzir “stand before him” de duas maneiras diferentes, a tradução evita o significado mais literal, ao mesmo tempo que também insinua Cristo “acima” de Adão no que se refere à autoridade do sacerdócio.

A tradução de 1975, no entanto, permite que o leitor seja informado, no mesmo trecho, de que no grande conselho mencionado por Daniel Cristo recebe autoridade e poder:

O Filho do Homem estará à sua frente, ali, glória e domínio ser-lhe-ão conferidos.

A perspectiva futura de que “glória e domínio” serão conferidos a Cristo por Adão está no texto original – “The Son of Man stands before him, and there is given him glory and dominion.” Com “there”, temos a certeza de que a glória e domínio mencionados por Joseph são dados ao Salvador precisamente “lá”, naquele conselho. O texto em inglês não abre espaço para a interpretação de que se trata de um evento já ocorrido. Já na nova tradução, o mesmo trecho é vertido da seguinte forma: “O Filho do Homem está acima dele e recebeu glória e domínio” (p. 109).

Apagando vestígios?

Um dos fundamentos da doutrina ensinada por Joseph Smith sobre a “restauração de todas as coisas” é a afirmação de que “muitas partes que são claras e sumamente preciosas” foram no passado retiradas das escrituras para adaptar ensinamentos sagrados ao gosto popular (1 Néfi 13:26). O quanto irônico é que a Igreja SUD hoje se mostre seletiva quanto aos ensinamentos de Joseph Smith e chegue ao extremo de utilizar a tradução como uma forma de censura a seus ensinamentos.

Nestes trechos analisados acima, vemos como os aparentes erros de tradução são escolhas conscientes. Ao amenizar a doutrina original da restauração quanto à posição de Adão no plano divino, corrigindo o autor – Joseph Smith -, o tradutor assume os papéis de censor e ministrador do conhecimento.

Ao tentar justificar as alterações de sentido, o funcionário da Igreja SUD aludiu à cultura afro-brasileira e à precariedade educacional do país. As situações de exclusão a que são submetidos boa parte da população e na qual se encontram boa parte dos membros da Igreja SUD neste país servem como argumento para que seja promovida mais um tipo de exclusão, intelectual e espiritual.

Joseph Smith afirmava que “no conhecimento há poder”; ao impedir o acesso de pessoas ao conhecimento, tira-se delas a possibilidade de poder, o que torna mais fácil de que sejam controladas por aqueles que têm mais conhecimento e, portanto, mais poder.

Uma versão mais detalhada deste trabalho foi apresentada na 1a Conferência Brasileira de Estudos Mórmons.


NOTAS

1. O primeiro volume da série, utilizado em 1998, sobre Brigham Young o retratou como um monogamista. A Igreja parece ter repensado sua atitude, quando em 2002 o volume apresentando John Taylor incluía a ressalva de que “Este resumo omite muitos acontecimentos importantes de sua vida, incluindo seus casamentos e o nascimento e a morte de seus filhos (…)”, num sutil reconhecimento de seus casamentos plurais. Já no volume sobre Joseph Smith, não há nenhuma menção desse aspecto.
 
 2. Edson Lopes, diretor de tradução da Área brasileira, em e-mail ao autor, 30 de abril de 2008.

16 comentários sobre “Joseph Smith, Interrompido

  1. Excelente! É o que posso dizer de tudo que foi escrito acima. Não tenho palavras… foi uma obra digna de um mestre. Até fiquei com vontade de estudar mais portugues, literatura e inglês. Para que a igreja tenha uma melhor imagem da minha pessoa. E para que ela não me exclua do verdadeiro conhecimento para me proteger de ser mais inteligente e receber maior poder. Pois, com o português e inglês que sei até o momento, posso me confundir, e achar que Adão é o papa-leguas e que patriarca é uma coisa que se passa no pão sei lá….

    • “patriarca é uma coisa que se passa no pão sei lá….” Hahaha. Impagável, Heber. Mas quem sabe ainda se chega numa versão assim? 🙂 Espero que não, claro.

      Concordo que à medida que nos desenvolvemos intelectualmente somos mais capazes de nos defender intelectualmente e conseguimos perceber quando alguém quer nos proteger do conhecimento. Mesmo para chegar no espiritual, usamos o intelectual, lidamos com discursos, etc. Afinal, as escrituras não são textos?

      Abraços!

      • Antônio, você não acha que conhecimento e sabedoria são diferentes? Se usamos o intelectual para chegarmos ao espiritual, alguém que tenha um baixo grau de escolaridade não poderá ter seu lado espiritual desenvolvido. Concordo que muitos não têm, na maioria das vezes, a interpretação mais adequada das escrituras. Isso faz de alguém menos espiritualizado pela falta do conhecimento?
        Eu acho que muita gente tem bastante conhecimento específico, mas são péssimos em outras áreas. Pessoas que demonstram pouca sensibilidade e sem tato para relações interpessoais. O oposto também, digo, com baixíssima instrução escolar, mas muito sábias e, consequentemente, espiritualizadas. Sempre com uma palavra certa, na hora certa, bondosas, solidárias, tranquilas.

  2. Vejam o que achei no site da Igreja!

    “(…) em nome de Seu Filho Unigênito, a quem também nosso pai Adão e sua posteridade oraram desde o princípio” p. 23 Ensinamentos dos Presidentes da Igreja: Joseph F. Smith. (2008)

    ““Nossa gloriosa mãe Eva” e nosso “Pai Adão” foram líderes para seus filhos, ensinando-lhes
    “a alegria de nossa redenção e a vida eterna que Deus concede a todos os obedientes”” p. 162 Filhas em Meu Reino (2011)

    Engraçado darem essa resposta e “sub-julgarem” os conhecimentos linguísticos dos membros. Será que eles agora têm dados estatísticos da escolaridade dos recém conversos (ou dos membros antigos) e, ao se permitirem “colocar/aceitar”, a rodo, pessoas com tais baixas de conhecimento, se justificam dessa forma? Bom, tradução já é ‘traição’ na concepção de grandes autores da área (o que me daria vontade de fazer grande texto a respeito disso – tentarei abordar isso no Mestrado – provavelmente – sabiam?) e quando fazem isso levam adiante uma série de questionamentos sobre a legitimidade de traduções quaisquer. Sou basicamente (quase me formei) bacharel em Tradutor e Intérprete e faço bacharelado em Linguística e fico chocado/indignado com determinadas posições e respostas quando questionados sobre uma falta de padrão nas traduções para o pt_br ou mesmo na baixa relação de textos disponibilizados para nosso idioma/povo!

    Conforme é possivel ver nos trechos citados por mim, a resposta dada a você, Teixeira, foi no mínimo sem fundamento. O 1o trecho é de antes do referido manual do seu post, o que afirmaria a resposta dada, já o 2o é do ano passado, ou seja, cai por terra a posição dada na resposta.

    E o que dizer então do hino da Primária, Segue o Profeta?

    “Adão foi um profeta,
    Deus o ordenou, no Jardim do Éden viveu e
    plantou. As pessoas hoje descendentes são
    desse patriarca, nosso pai Adão.”

    É urgente a necessidade de ‘profissionais’ mais bem preparados para que haja um padrão no que se for traduzido e, por favor, que repensem a possibilidade de tirar dos texto suas essências!
    Daqui a pouco teremos livros com “bicicReta” no lugar de “bicicLeta”, se caminharmos para tal no Brasil. Ou então, usando VC no lugar de você! É o fim da mordida!

    “No conhecimento há poder”, irmãos! Avante!

    • É verdade, Aron, que as traduções da igreja muitas vezes deixam a desejar em termos de qualidade. Por exemplo, no mesmo capítulo que analisei, fala-se do “deserto entre Harmony (…) e Colesville” (p. 107), um erro de referência considerável. Os problemas que analisei no post acima, porém, vai além dessa categoria de “erro de tradução”, pois são escolhas conscientes para mudar o sentido do texto original.

      Agradeço as referências acima sobre a expressão “Pai Adão, incluindo o hino da Primária (que como converso não conheço bem).

      Você levanta uma questão muito importante que é a ausência de dados estatísticos sobre escolaridade. Pela evidência anedotal, pela nossa experiência no cotidiano da igreja, podemos dizer que há carências educacionais entre os membros, claro. Mas como mensurar isso, sem dados concretos? E como tal carência justifica que uma publicação seja adaptada para todos os leitores falantes de português, que serão privados do conteúdo lido em outros países?

      Você gostaria de escrever mais sobre tradução, Aron? O site Vozes Mórmons está aberto à sua contribuição!

      Abraço!

      • Antônio, ainda estou aprendendo a usar o Vozes e só vi agora, por acaso, que você respondeu meu comentário e também que me faz um convite para falar sobre tradução. Tenho pensado nisso, mas confesso que não quero falar besteira – quem quer? (hehehehehe). Abraço!

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