A Espada do Anjo do Senhor

O anjo com a espada flamejante. Edwin Howland Blashfield, 1893.

O anjo com a espada flamejante. Edwin Howland Blashfield, 1893.

Em uma das primeiras vezes que saí com meus irmãos mais novos após retornar da missão, fomos a um evento de anime e mangá, o SANA. Lá, além de matar a saudade de meus heróis da infância, como Jiraya e Jaspion, fui apresentado a vários desenhos animados de produção nipônica.

Lembro-me de ter gostado bastante de uma dessas animações chamada Death Note. Tratava-se da estória de Yagami Raito, um jovem estudante que possuía um caderno mágico, com o qual se podia matar uma pessoa tão somente escrevendo o nome desta nele, desde que se visualizasse mentalmente o rosto da vítima. O poder sobrenatural do caderno decorria de ele pertencer a um shinigami – espírito da morte.

Alheio à cultura do extremo oriente, confesso que desconhecia os shinigamis. Porém, com algum conhecimento da Bíblia, tradição cristã e mórmon, a ideia da existência de entidades relacionadas à morte não me era tão estranha assim.

Uma das cenas mais famosas do Velho Testamento é a morte dos primogênitos egípcios no contexto do êxodo israelita. Segundo o texto bíblico, uma sombria entidade chamada Destruidor foi a responsável pela matança. De acordo com o mesmo relato, Deus impede a entidade de entrar nas casas onde se havia aspergido sangue nas portas[1].

Em outras passagens Veterotestamentárias, a ira do Todo Poderoso se volta contra os próprios israelitas, e o carrasco é apresentado como Anjo do Senhor, portador de uma poderosa arma cortante, capaz de ferir mortalmente milhares de pessoas. Após desagradar Iahweh, Davi “olhou para cima e viu o ANJO DO SENHOR entre o céu e a terra, com uma ESPADA na mão, erguida sobre Jerusalém”.[2]

Nas primeiras páginas de Gênesis, lemos que após Adão e Eva serem expulsos do paraíso, o caminho que conduzia à árvore da vida passou a ser protegido por uma entidade angelical e a chama de uma espada fulgurante.[3]

Se pularmos das primeiras para as últimas páginas de nossa Bíblia, encontramos o relato sobre os quatro Cavaleiros do Apocalipse, onde se apresenta um notório diálogo com o oráculo de Zacarias[4]. O segundo desses cavaleiros é descrito como alguém montado em um cavalo vermelho, a quem “foi concedido o poder de tirar a paz da terra, para que os homens se matassem entre si”[5]. Sobre ele também é dito que lhe foi entregue “uma grande espada”.[6]

Passado os tempos bíblicos, relatos de visões de entidades portadoras de uma espada como símbolo da ira de Deus são recorrentes nas tradições religiosas e no imaginário piedoso popular. Na tradição católica, uma das mais famosas dessas narrativas é protagonizada pelo Papa Gregório Magno; entre os mórmons, os relatos envolvem ninguém menos que Joseph e Emma Smith.

Os contextos são completamente diferentes, mas esses episódios têm em comum a tentativa de mostrar que Deus, quando descontente com a atitude de seus filhos, recorre a métodos pouco diplomáticos para impor sua vontade.

Em 590, São Gregório sucede a Pelágio II, que morrera devido a uma terrível peste que assolou o território que outrora foi o Império Romano do Ocidente. Roma havia sido tomada pelos hérulos na segunda metade do século anterior, mas à época de Gregório Magno estava sob o domínio dos lombardos [7].  Muitos destes eram pagãos ou arianos, fazendo com que o Bispo de Roma tivesse a dura missão de tentar convertê-los, ao mesmo tempo em que buscava medidas espirituais para conter a peste.

Como estava convicto de que a epidemia era uma punição divina, incentivou seus seguidores a fazer procissões com a imagem de Nossa Senhora pela Cidade Eterna. Um determinado dia, o papa teve uma visão de seres espirituais que cantavam sobre o Mausoléu de Adriano. Além dos personagens angelicais cantores, Gregório viu um anjo colocar uma espada de volta na bainha, o que foi interpretado pelo santo como o afastamento do flagelo imputado por Deus.[8]

Estátua que representa a visão de Gregório Magno no Mausoléu de Adriano (hoje, Castelo de Santo Ângelo)

Estátua que representa a visão de Gregório Magno no Mausoléu de Adriano (hoje, Castelo de Santo Ângelo)

No caso de Joseph Smith, um anjo portador de uma espada mortal aparecia para ele em decorrência da relutância do profeta mórmon em cumprir o mandamento divino de desposar outras mulheres além de Emma.[9]

Os relatos sobre o aparecimento de tal anjo são encontrados em várias obras sobre a poligamia mórmon e foram citados no recente ensaio publicado no site oficial da Igreja, sobre o qual o Vozes Mórmons apresentará um artigo em breve. Enquanto isso, tomei a liberdade de fazer uma livre tradução de um dos parágrafos.

“Quando Deus ordena uma tarefa difícil, Ele às vezes envia mensageiros adicionais para encorajar Seu povo a obedecer. Em consonância com esse padrão, Joseph disse a pessoas próximas que um anjo lhe apareceu três vezes entre 1834 e 1842 e ordenou-lhe que prosseguisse com o casamento plural quando ele hesitava em levar isso adiante. Durante a terceira e última aparição, o anjo veio com uma espada desembainhada, ameaçando Joseph com a destruição, a menos que ele fosse em frente e obedecesse ao mandamento plenamente”.[10]

O ensaio aponta Fanny Alger, uma adolescente que trabalhava na casa da família Smith, como a possível primeira esposa plural do profeta, de quem se divorciaria anos depois. Enquanto os detalhes da poligamia de Joseph e de sua visão do anjo tornaram-se apócrifas, a ameaça de destruição de Emma foi canonizada – talvez como uma alerta para rebeldes mulheres que não queriam compartilhar seu cônjuge nas primeiras décadas de Utah.

E também, em verdade, em verdade vos digo: Se um homem que possui as chaves desse poder tiver uma esposa e ensinar-lhe a lei do meu sacerdócio, no que concerne a essas coisas, ela deverá acreditar nele e apoiá-lo e ajudá-lo; caso contrário será destruída, diz o Senhor vosso Deus; pois eu a destruirei; pois magnificarei meu nome em todos os que recebem e guardam minha lei” .[11]

Se as estórias do espadachim angelical que obrigava Joseph Smith a ter mais de uma esposa empalideceram na literatura oficial da Igreja, ritos que evocavam uma entidade retalhadora persistiram até 1990.

Os mais antigos se lembram de que, durante a cerimônia de investidura, eram feitos gestos cujo objetivo era simbolizar penalidades que supostamente ocorreriam aos não cumpridores dos juramentos feitos. Como o executor da punição seria a própria divindade, a comparação com uma espada de um anjo, acredito, encaixa-se perfeitamente, uma vez que o participante da cerimônia simulava cortes em seu corpo.

A despeito do caráter dantesco, as cenas das penalidades encontram precedentes até mesmo no Livro de Mórmon. Nele encontramos aquilo que os pesquisadores têm chamado de simile curse – encenações nas quais, através de uma ação e um pedido, são invocadas terríveis punições aos desobedientes. [12]

A mais conhecida simile curse da literatura SUD se encontra no livro de Alma. Conforme nossos leitores familiarizados com o Livro de Mórmon recordam, vendo a conspiração de Amaliquias para se tornar rei, o capitão Morôni rasga sua própria túnica e faz dela o que ficou conhecido como estandarte da liberdade. Esse líder militar e religioso conclama o povo a defender seus direitos e religião.

A resposta à conclamação de Morôni é uma das mais emblemáticas demonstrações do vigor religioso, servindo como modelo de conduta do fiel para com Deus e de expectativa do que receberia em troca caso descumprisse o prometido.

“E aconteceu que quando Morôni disse estas palavras, eis que o povo se aproximou com os lombos cingidos por suas armaduras, RASGANDO AS VESTES COMO SÍMBOLO, ou melhor, como convênio de que não abandonariam o Senhor seu Deus; ou, em outras palavras, se eles transgredissem os mandamentos de Deus, ou melhor, se caíssem em transgressão e se envergonhassem de tomar sobre si o nome de Cristo, o Senhor os DESTROÇARIA da mesma forma que haviam rasgado as suas vestes”. [13]

É assim nosso legado religioso. Amor e ódio parecem se confundir; a definição de crueldade e bondade é apenas questão de ponto de vista; a sinonímia entre antônimos é possível. O paradoxo é cruz a ser carregada.

——

[1] Êxodos 12:23

[2] I Crônicas 21:16-26, ênfase minha.

[3] Gênesis 2:24

[4] Zacarias 1:8-10; 6:1-3

[5],[6] Apocalipse 6:4

[8] http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/PPGregM1.html

[7] PIERRARD, Pierre. História da Igreja. (Trad.) Álvaro Cunha. São Paulo: Paulus, 1982.p. 54-55

[9] BUSHMAN, Richard. Joseph Smith: rough stone rolling. A cultural biography of Mormonism’s founder. Alfred A. Knopf. New Yorl, 2005. p.348

[10] O ensaio sobre a poligamia pode ser acessado aqui.

[11] D&C 132:64

[12] MORRISE, Mark J. Simile Curses in the Ancient Near East, Old Testament, and Book of Mormon in Stephen D. Ricks ed. Journal of Book of Mormon Studies, Vol. 2/1. Provo: Foundation for Ancient Research and Mormon Studies, Spring 1993, pp. 124-138

[13] Alma 46:21, ênfase minha.

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