O Livro de Mórmon – Dia 5

O Livro de Mórmon é a obra literária mais sagrada para milhares de mórmons, centenas de igrejas e seitas da tradição Santos dos Últimos Dias, e o principal volume de escrituras para membros de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.

Imagem inspirada na descrição das Placas de Ouro por Joseph Smith

Dedicamos aqui um artigo para cada capítulo do Livro de Mórmon , cobrindo todo o seu texto (utilizando, como base, a última edição da Igreja SUD), acompanhados de comentários adicionais do ponto de vista historiográfico, racional, e científico para incentivar uma leitura diária do texto sacro e facilitar um estudo mais intelectual dele. Postagens passadas podem ser encontradas aqui.

O trecho de hoje é: 1 Néfi 3

Primeiro Livro de Néfi

Capítulo 3

E aconteceu que eu, Néfi, depois de haver falado com o Senhor, voltei à tenda de meu pai.

Só Lehi tinha uma tenda? Os demais dormiam ao relento? A menção à tenda (no singular) apenas após a chegada ao Mar Vermelho significa que eles andaram os mais de 400 km sem parar pra dormir até chegarem ali?

E aconteceu que ele me falou, dizendo: Eis que sonhei um sonho, no qual o Senhor me ordenou que tu e teus irmãos voltásseis a Jerusalém.

A expressão “sonhei um sonho” ocorre 8 vezes na Bíblia que Smith usava.

Pois eis que Labão possui o registro dos judeus e também uma genealogia de meus antepassados; e eles estão gravados em placas de latão.

Deus esqueceu-se de avisar a Lehi de obter as placas antes de sair de Jerusalém e espera para avisá-lo apenas depois de viajar mais 400 km a pé através do deserto.

Ordenou-me o Senhor, portanto, que tu e teus irmãos fôsseis à casa de Labão buscar os registros e os trouxésseis aqui para o deserto.

Labão é um nome bíblico. Irmão de Rebeca, cunhado de Isaque, tio de Jacó (Israel) através de sua irmã, e sogro de Jacó através de suas duas filhas, Léia e Raquel.

E agora, eis que teus irmãos murmuram, dizendo que lhes pedi uma coisa difícil; eis, porém, que não sou eu quem o pede, mas é uma ordem do Senhor.

Quem não reclamaria? 800 km a pé através do deserto não é voltar alguns quarteirões para buscar umas chaves esquecidas. Ainda mais para buscar algo que se não Lehi, então Deus, certamente deveriam saber que seria necessário levar antes de sair de Jerusalém. Ademais, a saída de Lehi de Jerusalém sequer fora tão urgente assim. Afinal, houve tempo suficiente para fazer as preparações necessárias para uma viagem longa (suprimentos, tendas, animais de carga, etc.), os babilônios já haviam invadido e saqueado a cidade há mais de um ano e instaurado seu rei-fantoche, e a segunda invasão com sua total destruição só ocorreria após mais de uma década de absoluta paz e segurança.

Vai, portanto, meu filho, e serás favorecido pelo Senhor, porque não murmuraste.

Repetindo a lição de moral, caso ainda não tenha ficado claro: Obedecer incondicionalmente e sem nunca questionar.

E aconteceu que eu, Néfi, disse a meu pai: Eu irei e cumprirei as ordens do Senhor, porque sei que o Senhor nunca dá ordens aos filhos dos homens sem antes preparar um caminho pelo qual suas ordens possam ser cumpridas.

Esse é um dos trechos do Livro de Mórmon, se não o trecho, mais populares entre Mórmons atualmente. Ela é, contudo, ironicamente negada pela própria história Mórmon. Por exemplo, Deus ordenou aos Seus profetas que insistissem na prática de poligamia até a Segunda Vinda, e não apenas não houve caminho preparado, como Seus seguidores foram humilhados e presos até que se submetessem e decidissem ignorar essa ordem abertamente.

E aconteceu que quando meu pai ouviu estas palavras, rejubilou-se, porque compreendeu que o Senhor me havia abençoado.

Lehi fica feliz que seu filho Néfi aprendeu a lição sobre obediência inquestionável e incondicional.

E eu, Néfi, e meus irmãos empreendemos a viagem pelo deserto com nossas tendas, para subirmos à terra de Jerusalém.

Agora aparecem tendas, no plural. Se há tendas no plural, e óbviamente haveriam tendas para cruzar centenas de quilômetros de deserto, para quê gastar tempo, esforço, e espaço para entalhar placas discutindo que Lehi tinha uma tenda? Novamente, pequenas dicas narrativas que sugerem uma elaboração oral improvisada.

E aconteceu que, tendo subido à terra de Jerusalém, eu e meus irmãos pusemo-nos a deliberar.

Apenas após atravessar mais de 400 km de deserto, parando por várias noites durante a viagem, os irmãos decidem discutir o assunto apenas após chegar em Jerusalém. Dias (ou, mais realisticamente, semanas) de viagem em um grupo compacto, não foram suficientes para levantar o tema logístico de como iriam cumprir essa única tarefa pela qual estavam fazendo a viagem?

E lançamos sortes, para ver qual de nós iria à casa de Labão. E aconteceu que a sorte caiu sobre Lamã; e Lamã foi à casa de Labão e falou com ele, enquanto estava sentado em sua casa.

A prática de “lançar sortes” ocorre 20 vezes na Bíblia que Smith usava, inclusive como método para escolher um novo Apóstolo.

E pediu a Labão os registros que estavam gravados nas placas de latão, que continham a genealogia de meu pai.

Genealogias familiares, em famílias nobres e ricas, permaneciam de posse dos familiares justamente como atestados de pedigree.  Por que Labão seria o guardião exclusivo da genealogia da família de Lehi? Por que Lehi, como nobre e abastado, não teria contratado escrivões para lhe assegurar cópias de documentos de tamanha relevância social? Ademais, por que Labão sentir-se-ia compelido a entregar documentos tão importantes a qualquer pessoa, especialmente alguém que está foragido no meio do deserto?

E eis que Labão se irou e expulsou-o de sua presença; e recusou-se a dar-lhe os registros. Portanto, disse-lhe: Eis que tu és um ladrão e vou matar-te.

Labão exibe uma súbita reação violenta e obviamente desproporcional, como toda caricatura literária de vilão.

Lamã, porém, fugiu de sua presença e contou-nos o que Labão havia feito. E começamos a afligir-nos grandemente e meus irmãos estavam prestes a voltar para junto de meu pai no deserto.

Lamã e Lemuel, que não queriam sair de Jerusalém e abandonar seu lar e suas vidas desde o início, e seguiram seu pai por mais 400 km de deserto apenas relutantemente, e atravasseram mais 400 km de deserto de volta com ainda maior relutância, agora decidem que, fracassada essa missão, atravessarão mais 400 km de deserto para juntar-se ao seu pai onde não queriam estar, sem nunca considerar a possibilidade de simplesmente ignorar toda essa missão quixótica e sem fim previsível e apenas ficar em Jerusalém, onde eles tinham posses e um lar?

Mas eis que eu lhes disse: Assim como vive o Senhor e vivemos nós, não desceremos para o deserto onde está nosso pai até havermos cumprido o que o Senhor nos ordenou.

Moral de estória? Obediência cega e inquestionada. Mencionamos isso antes?

Sejamos, portanto, fiéis aos mandamentos do Senhor; desçamos, pois, à terra da herança de nosso pai, porque ele deixou ouro e prata e toda espécie de riquezas. E tudo isso ele fez por causa dos mandamentos do Senhor.

E nunca, em nenhum momento, Lamã e Lemuel, que não tem o mesmo ânimo para obediência que Néfi e Sam, ou que não recebem sonhos ou visões como Néfi e Lehi, discutem a possibilidade de se apropriar dessas riquezas e ficar em Jerusalém? E simplesmente deixar Lehi e Néfi para suas missões quixóticas sem eles?

Porque ele sabia que Jerusalém deveria ser destruída por causa da iniquidade do povo.

Destruição que não viria por mais de uma década, e que teria sido facilmente evitável se Néfi tivesse convencido Zedequias a não quebrar sua aliança com a Babilônia que lhe estava trazendo paz e prosperidade (ou decapitado-o antes disso; Ver abaixo).

Pois eis que rejeitaram as palavras dos profetas. Portanto, se meu pai permanecesse na terra depois de haver recebido ordem de fugir, eis que pereceria também. Assim, foi necessário que fugisse da terra.

Jeremias, o maior e mais reconhecido profeta Judeu na época, e forte proponente dos avisos proféticos contra o prevalente politeísmo e arauto de destruições eminentes, sobreviveu tudo isso sem um arranhão. Jeremias, cujos escritos compõe parte da Bíblia Hebraica, inclusive foi recompensado e protegido pelo Rei babilônica Nabudoconosor II durante e após essa “destruição de Jerusalém”.

E eis que é sábio para Deus que obtenhamos esses registros, para que preservemos para nossos filhos o idioma de nossos pais.

De acordo com o Livro de Mórmon, os descendentes de Néfi perderam “o idioma de nossos pais”, preferindo (o inexistente) Egípcio Reformado, e não deixando nenhum rastro em quaisquer línguas ameríndias.

Ademais, com tanto ouro e prata à sua disposição, Lehi nunca contratou um escrivão para lhe confeccionar cópias genealógicas (que, como homem rico e de suposta nobreza, lhe deveria ser profundamente importante quesito social) e de demais escritos proféticos avulsos?

E também para que lhes preservemos as palavras que foram proferidas pela boca de todos os santos profetas, as quais lhes foram dadas pelo Espírito e poder de Deus desde o começo do mundo, até o tempo presente.

As compilações que formariam a Bíblia Hebraica não haviam sido organizadas e compiladas nesse período. Uma versão do Torah existia, com manuscritos adicionais permanecendo avulsos e separados do texto central, e grande parte do Ketuvim e do Nevi’im ainda sequer havia sido escrito ou compilado, e certamente ainda não haviam sido incluídos no cânone masorético. Em suma, não havia um único registro compilando as “palavras de todos os santos profetas” nessa época. Essa é a impressão que alguém no século XIX teria ao ver a Bíblia compilada e supor que tais compilações já existiriam em 597 AEC.

Todos os escritos hebraicos sagrados encontravam-se em pergaminhos ou folhas de papíro, não entalhados em placas de metal, e eram guardados no Templo. Não há menção ou indício de nenhum documento hebraico sacro entalhado em placas de latão (ou outros metais).

Atos 3:21 – “pela boca de todos os santos profetas desde o começo do mundo”

E aconteceu que, com essas palavras, persuadi meus irmãos a permanecerem fiéis aos mandamentos de Deus.

Não confundindo-os através do poder do Espírito, como fez Lehi?

E aconteceu que descemos à terra de nossa herança e recolhemos nosso ouro e nossa prata e nossas coisas preciosas.

A família de Lehi abandonou suas riquezas e semanas depois ninguém os saqueou ainda?

E depois de havermos reunido essas coisas, subimos novamente à casa de Labão.

Labão supostamente conhecia Lehi e seus filhos, e sabia de suas riquezas que Labão deveria saber que Lehi possuía. Se quisesse ser subornado ou vender as placas, por que Labão não teria se aberto à possibilidade? Por que Labão se deixaria ser subornado se a posição de guardião das placas era algo tão sagrado ou socialmente importante? Por que, ao invés de partir diretamente para o suborno, Néfi não optou por oferecer dinheiro para contratar uma cópia das placas?

E aconteceu que entramos na casa de Labão e pedimos-lhe que nos entregasse os registros que estavam gravados nas placas de latão, pelos quais lhe daríamos nosso ouro e nossa prata e todas as nossas coisas preciosas.

Em outras palavras, tentamos fazer, novamente, a mesma coisa pela qual Labão tentou assassinar Lamã há um dia atrás.

E aconteceu que quando Labão viu que nossos bens eram muitos, cobiçou-os, de modo que nos pôs para fora e enviou seus servos para nos matarem, a fim de apoderar-se de nossos bens.

Uma reviravolta nada surpreendente.

E aconteceu que fugimos dos servos de Labão e fomos obrigados a abandonar nossos bens; e eles caíram nas mãos de Labão.

Verborragia para quem está entalhando caracteres numa placa de metal. Um simples “Fugimos para salvar nossas vidas” teria expressado tudo.

E aconteceu que fugimos para o deserto e os servos de Labão não nos alcançaram; e escondemo-nos na cavidade de uma rocha.

“Fugimos para salvar nossas vidas e nos escondemos no deserto”, economizando espaço nas placas e horas de entalhamento.

E aconteceu que Lamã se enfureceu comigo e também com meu pai; e também Lemuel, porque deu ouvidos às palavras de Lamã. Lamã e Lemuel usaram, portanto, de expressões rudes para conosco, seus irmãos mais jovens; e açoitaram-nos com uma vara.

O tema da oralidade da narrativa do Livro de Mórmon recorrerá com bastante frequência, apenas por ser tão óbvio em tantos lugares. Repare na construção improvisada e hesitante, sem sinais de planejamento prévio:

“E aconteceu que Lamã se enfureceu comigo”

“e também com meu pai”

“e também Lemuel”

“porque deu ouvidos às palavras de Lamã”

“Lamã e Lemuel usaram, portanto, de expressões rudes”

“para conosco”

“seus irmãos mais jovens”

“e açoitaram-nos com uma vara”

Ao invés de, por exemplo, “Lamã se enfureceu conosco, convencendo a Lemuel, passando ambos a nos insultar e nos agredir fisicamente”.

Frequentemente, vemos o fluxo de narrativa ir e voltar, para corrigir ou elaborar ou clarificar, como é esperado numa narração oral espontânea.

E aconteceu que enquanto nos açoitavam com uma vara, apareceu um anjo do Senhor que, pondo-se à frente deles, lhes disse: Por que açoitais vosso irmão mais jovem com uma vara? Não sabeis que o Senhor o escolheu para ser vosso governante, devido a vossa iniquidade? Eis que tornareis a subir a Jerusalém e o Senhor entregará Labão em vossas mãos.

Néfi, que tirou tempo para nos contar que é forte e grande, foi incapaz de suspender as agressões físicas por seus irmãos. Então, ele é salvo por um anjo! Onde estava esse anjo quando os servos de Labão os tentavam matar?

E depois de nos haver falado, o anjo partiu.

Novamente. Entalhando. Placas. Precisamos do “e depois de nos haver falado”? Néfi não se daria bem com Twitter, isso é certo.

Note como a mesma informação desse versículo recorre no versículo seguinte:

E depois que o anjo partiu, Lamã e Lemuel começaram novamente a murmurar, dizendo: Como é possível que o Senhor entregue Labão em nossas mãos? Eis que ele é um homem poderoso e pode comandar cinquenta, sim, ele pode mesmo matar cinquenta; por que não a nós?

A reclamação deles faria muito mais sentido se fosse “por que o anjo pode proteger Néfi de nós, mas não pode vir nos proteger de Labão?” ou então “por que Néfi não convoca cinquenta anjos para nos proteger dos cinquenta leões de chácara do Labão?”

Novamente, Lamã e Lemuel são descritos como personagens unidimensionais servindo de contraponto à Néfi, queixando-se de um milagre sobrenatural segundos após o seu término.


Leia o texto do Livro de Mórmon aqui em sua última versão em português publicada pela Igreja SUD.

Leia os nossos comentários adicionais do Livro de Mórmon aqui.

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