A Igreja Mórmon finalmente emitiu uma resposta oficial e pública condenando estupros e violência sexual contra alunas em sua universidade.

Protesto de alunos da BYU contra punição de vítimas de estupro por causa de políticas oficiais da universidade. (Foto: Kim Raff, The New York Times)
Contudo, no mesmo release, antes mesmo de emitir tal condenação, a Igreja prioriza condenar jornalistas por investigar e publicar sobre o problema.
Entenda o caso.
O Departamento de Relações Públicas d’A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias publicou anteontem, em sua seção “Mormonismo nas Notícias: Fazendo Direito” [1], uma nota oficial entitulada “Igreja Responde À Cobertura do Assunto de Violência Sexual na BYU”.
O “assunto de violência sexual na BYU” refere-se ao problema crônico de políticas institucionais oficiais que punem alunas vítimas de estupros e violência sexual, protegem muitos dos estupradores, e até encorajam a violência através da expectativa do silêncio das vítimas.
O problema ganhou notoriedade com um caso específico (que nós cobrimos aqui) de uma aluna-vítima lutando contra a universidade mórmon, levando a outras alunas e ex-alunas também vítimas testemunhando os seus casos (que nós cobrimos aqui), e subsequente vasta cobertura jornalística. Há um mês atrás, a universidade se pronunciou oficialmente admitindo a existência do problema (que nós cobrimos aqui), mas a Igreja havia se recusado a pronunciar-se. Novas testemunhas, novas descobertas, e novos relatos levaram a novos artigos e o assunto permaneceu sob os holofotes jornalísticos nesse último mês, até que finalmente a Igreja decidiu pronunciar-se oficialmente.
E a primeira ordem, literalmente, a ser tratado nesse pronunciamento é uma condenação à cobertura jornalística do problema.
“Durante várias semanas, o Salt Lake Tribune informou de forma agressiva sobre a incidência de supostas agressões sexuais na Universidade de Brigham Young. Em um relatório de 06 de maio de 2016, o jornal não só implicava que a “cultura de estupro” existe na BYU, mas que as doutrinas de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias contribuíram significativamente para essa cultura. Apesar de fazer tais afirmações extraordinárias, os repórteres do Tribune não se aproximaram da Igreja para comentar o assunto. Após a sua publicação, um representante de Relações Públicas da Igreja contatou o jornal e perguntou por que a Igreja não tinha sido oferecida a oportunidade de comentar sobre tamanha história. Um dos dois escritores reconheceu o “lapso de julgamento”, e disse que sentiu que a inclusão de uma referência ao manual de liderança da Igreja era suficiente. Nota para os editores da Tribune: não era.
Na quinta-feira desta semana (19 de maio), depois de se tornar ciente de que o Tribune iria logo publicar um novo relatório com entrevistas de estudantes da BYU que tinham sido agredidas, um porta-voz da Igreja novamente contatou editores do Tribune e recebeu um compromisso que a Igreja seria dada ampla oportunidade de participar em futuras histórias que envolvem a Igreja. Menos de duas horas depois, o jornal publicou a história, novamente sem dar à Igreja a oportunidade de responder.
Isso é análogo ao que é conhecido no meio como “jornalismo de pegadinha” [2] – uma prática indigna de qualquer jornal sério em busca de equilíbrio no seu jornalismo.”
Antes, ou ao mesmo ao invés, de abordar o assustador e triste fato que uma política oficial estabelecida pela Igreja resulte em punições severas para adolescentes vítimas de estupros e violências sexuais, e contribua para a impunidade, ou mesmo possa incentivar tais crimes hediondos, a Igreja procura invalidar as investigações jornalísticas que trouxeram o problema à luz. Pior ainda, a Igreja lança dúvidas e difamações implícitas contra o caráter das vítimas.
“Durante várias semanas, o Salt Lake Tribune informou de forma agressiva sobre a incidência de supostas agressões sexuais na Universidade de Brigham Young.”
Quando a Igreja decide caracterizar os testemunhos de vítimas como “supost[o]s”, ela está insinuando que essas moças podem estar mentindo sobre a violência que sofreram. Quando o faz na primeira sentença do que seria um comunicado para assegurar o público que a Igreja protege vítimas, apenas demonstra novamente insensibilidade por elas e uma disposição para inflingir-lhes dor emocional desde que sirva para proteger a instituição.
O famoso comediante (popular entre mórmons por seu humor “dentro dos padrões”) Bill Cosby passou décadas intimidando jornalistas e descreditando vítimas com a mesma tática. Agora com mais de 50 mulheres acusando-no, insistir no “suposto” como defesa beira o absurdo. Ainda assim, a Igreja deliberadamente escolhe caraterizar as vítimas, membros da Igreja, alunas em sua escola, como “supostas” mentirosas.
Ademais, a Igreja copia Cosby e tenta intimidar os jornais.
A cobertura jornalística dessa questão, como se pode notar nos artigos citados (em links) acima, tem constituído em oferecer uma plataforma às vozes das vítimas e permitindo que testifiquem suas histórias pessoais. Oficiais da universidade foram entrevistados e seus relatos também foram incluídos nos artigos. Manuais oficiais da Igreja e da BYU foram citados. Oficiais da Igreja recusaram comentários, como é frequente. Ainda assim, a Igreja prefere insistir na mentira de que o trabalho desses profissionais fora “injusto” ou “agressivo” ao lidar com o horrendo, e muito verdadeiro, problema que tais artigos denunciam.
Após injusta, desonesta, e covardemente denegrir as vítimas de violência sexual e os jornalistas que trouxeram suas histórias ao conhecimento público, a Igreja passa ao pronunciamento oficial deplorando os crimes e as crueldades. Crimes pelos quais ela é parcialmente responsável. Crueldades pelos quais ela é inteiramente responsável. E, obviamente, cujas existências a Igreja gostaria que permanecessem longe do conhecimento público.
“Hoje, A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias divulgou a seguinte declaração:
Agressão sexual é uma preocupação séria em campi por todo o país. Na Universidade de Brigham Young, os estudantes entram no campus sabendo que deles são esperados viver de acordo com elevados padrões de conduta e moralidade pessoal, e certamente qualquer forma de abuso ou agressão cai bem abaixo de qualquer tal padrão. A notável comunidade do campus da BYU reflete o caráter e o compromisso dos alunos em viver vidas exemplares.
Infelizmente, há exceções. Os meios de comunicação têm publicado histórias profundamente pessoais de vítimas de agressão sexual que sentem [3] que foram maltratadas ao denunciar a agressão. Eles são dolorosas de ler, mas não acreditamos que elas representam os ideais que a BYU ou os líderes da Igreja seguem ao responder às vítimas. [4]
Vamos ser perfeitamente claros: Não há tolerância para agressão sexual na BYU ou na Igreja. Agressão de qualquer tipo é crime grave, e apoiamos as denúncias, investigações e repressões em todo o alcance da lei. [4] Vítimas de agressão ou de atenção sexual indesejada devem ser tratadas com sensibilidade, compaixão e respeito e devem sentir que aqueles a quem elas denunciam a agressão estão empenhados em ajudá-las a lidar com o trauma que sofreram. [5] Nos casos em que pode ter havido [6] conflito entre atender as prioridades do Código de Honra e do Título IX, a BYU está dando passos significativos, incluindo a formação de um conselho consultor para explorar estas circunstâncias e fazer recomendações para mudanças, conforme necessário.
Hoje, a universidade emitiu uma carta descrevendo esse processo e lançou um site convidando sugestões. Nós acreditamos que esse trabalho deve receber tempo e espaço para proceder de modo que possa resultar em um processo que reflita de forma mais completa o atendimento às vítimas de violência sexual e que crie um campus mais seguro.”
Se alguma vez, alguém se perguntou “qual é a relevância de se relatar problemas ou publicar fatos negativos?”, a Igreja SUD oferece aqui uma resposta inequívoca e clara. Problemas, mesmo os mais graves, mesmo os mais óbvios como ajudar e apoiar vítimas de estupro, muitas vezes só são abordados e resolvidos quando expostos ao escrutínio público. A “BYU está dando passos significativos, incluindo a formação de um conselho consultor” apenas, e unicamente apenas, após “inform[ação] de forma agressiva” do público. Esses primeiros passos para avaliar o grave problema [7] surgiram não por profecia ou revelação, não por recomendação de líderes ou administradores, mas em reação a meses de denúncias e semanas de cobertura jornalística resultando em danos de relações públicas.
Em resumo:
- A Igreja mente quando diz que jornalistas não exploraram a posição do ponto de vista da Igreja através de oficiais da Igreja (ou da universidade);
- A Igreja mente quando sugere que o problema pode estar sendo exagerado ou mesmo não existir;
- A Igreja mente quando sugere incompetência ou animosidade por parte dos jornalistas cobrindo o assunto;
- A Igreja mente quando sugere que os jornalistas do Salt Lake Tribune tomaram uma postura “agressiva” ao mesmo tempo ignorando as dúzias de outros jornais publicando artigos nos mesmos tons;
- A Igreja propositadamente ignora a correlação entre suas políticas oficiais e o problema em si;
- A Igreja mente quando sugere que jornalistas afirmam que essas tragédias são experiências representativas do corpo estudantil;
- A Igreja mente quando sugere que não há uma “cultura de estupro” na Igreja;
- A Igreja mente quando sugere que a publicidade negativa não influenciou na decisão de repensar a política oficial da BYU para esses casos.
“Publicidade é justamente elogiada como um remédio para doenças sociais e industriais. A luz do sol é dito ser o melhor dos desinfetantes; a luz elétrica o policial mais eficiente.” — Louis Brandeis
NOTAS
[1] Ironicamente, o Departamento de Relações Públicas que tanto insiste em exigir de jornalistas que não se refiram à Igreja SUD como “Mórmon”, abraça-o para si com vigor: Além de nomear seu site de “Sala de Notícias Mórmon”, organizam seus artigos escritos para criticar tais jornalistas sob a égide “Mormonismo no Noticiário”. A Igreja literalmente “desencoraja” o uso do termo Mórmon enquanto o usa liberalmente.
[2] “Jornalismo de pegadinha”, ou no original, “gotcha journalism”, é um termo pejorativo para jornalistas que preparam armadilhas para induzir erros de entrevistados. O termo surgiu durante a campanha da candidata republicana à vice-presidência dos EUA em 2008, Sarah Palin, quando a jornalista Katie Couric lhe perguntou em entrevista quais jornais ela costumava ler e ela respondeu “a maioria deles”, e quando Couric insistiu numa resposta específica, Palin foi incapaz de nomear um jornal. Humilhada pela própria incompetência, Palin acusou Couric de lhe armar uma cilada [Vídeo]. A Igreja (ou o Apóstolo Jeffrey Holland) acusou o jornalista John Sweeney do mesmo quando Sweeney percebeu que Holland havia mentido em uma de suas respostas [Vídeo].
[3] Elas não “sentem” que foram mal tratadas. Elas foram mal tratadas, e seus testemunhos provam isso. Ao qualificar as histórias delas como sendo subjetivas e possivelmente inverdadeiras (i.e., elas apenas “sentem” que foram mal tratadas), a Igreja novamente desqualifica seus testemunhos e ignora suas dores e sofrimentos.
[4] Os fatos, conforme narrados pelas vítimas, e publicados por esses jornalistas, demonstram que isso simplesmente não é verdade.
[5] Devem, mas não são. Essa é a questão.
[6] Novamente, a Igreja tenta desprestigiar os relatos das vítimas. “Pode ter havido”? Não. Houve. Muitos. Isso é o que os relatos das vítimas demonstram.
[7] É mister notar que não houve mudanças quaisquer, ou indicações de mudanças, mas apenas a formação de um comitê explorador.
[8] A Igreja sugere aqui que se pare de publicar relatos de vítimas apenas porque ela formou um comitê explorador para “estudar” o problema e montou um site para sugestões. O início e o fim dessa nota oficial demonstram claramente que a preocupação principal da Igreja não é com as vítimas, mas sim com sua reputação e seus esforços de relações públicas.
Estou estarrecido com tudo isto que acabei de ler bom não sei nem o que posso dizer a respeito mas posso afirmar que a instituição não prega de hipótese alguma e nem encoraja estupro pois isto está fora de questão é absurdo tentar envolver a igreja nisso pois a universidade também não admite isto, mas se realmente aconteceu que estou dizendo claramente que possa ou não ter acontecido o culpado deve sim responder perante a justiça e desde já ser expulso da universidade e também da igreja é claro !
Não apenas aconteceu como a faculdade sabe que acontece.
A Igreja também sabe e não faz nada ou muito pouco para coibir.
Outro problema são as doutrinas que promovem a cultura do estupro, como por exemplo dizer que as mulheres são parcialmente responsáveis pelo que os homens pensam por conta de como elas se vestem.
Graças ao poder da mídia estamos tendo conhecimento dos fatos que sempre aconteceram na BYU.
Tal fato deveria ser levado também à imprensa de porte nacional lá nos Estados Unidos. Quanto mais pressão a Igreja sofre, mais disposta ela fica para dar satisfação e responder a perguntas.
Parece que os clamores internos de seus membros não surtem efeito.
Rosano, é verdade. A imprensa deveria falar muito disso nos seus telejornais e nas redes sociais. Adoraria ver a “justificativa inspirada” que eles inventariam!