Missionários Robôs?

(…) se tendes OU NÃO o desejo de servir a Deus, sois chamados ao trabalho.

Muitos detectarão no verso acima uma edição sacana da escritura em Doutrina e Convênios 4:3. Quem quer que o compare com o original, perceberá uma mudança total de significado, onde a condição individual de querer ou desejar servir simplesmente perde seu sentido. No entanto, foi basicamente isso que ouvi em um discurso na sacramental, na semana passada.robotsAo falar sobre a importância de compartilhar o evangelho através da missão de tempo integral, o discursante disse “É por isso que aqueles que têm o desejo…”, quando então pausou e se corrigiu: “Não! Para os rapazes que têm ou não o desejo e para as moças que tiverem o desejo…”.

Ou seja, pela última moda sud brasileira, a vontade de servir como missionário é irrelevante para um jovem do sexo masculino. Há só duas alternativas dignas: ou vai para a missão ou vai para a missão. Não é à toa que um dos slogans mais populares na Igreja em nosso país tem sido “o arbítrio não é livre”, uma asneira defendida com inúmeros contorcionismos discursivos por muitos çábios de plantão. Parece assim que o missionário idealizado se assemelha a um robô, cuja vontade não existe: ele faz o que foi programado para fazer. E o primeiro passo é muito óbvio, uma vez que não perguntamos ao robô se ele estará feliz em ser um robô; ele é despachado para onde for necessário. O grande problema com esse culto à obediência cega e manipulação é que não são robôs que são enviados para pregar o evangelho; são pessoas. Querer converter pessoas em robôs não traz resultados muito celestiais.

Como um converso que saiu em missão aos 26 anos, confesso que muitas vezes senti dificuldade em explicar a outros missionários e membros por que estava servindo. Não que eu não conseguisse expressar meus sentimentos ou razões para tanto; mas porque o olhar de muitos me fazia pensar que eu estivesse falando grego. Muitos jovens pareciam ter sofrido diferentes graus e tipos de coerção para estarem ali como representantes da Igreja. Alguns, imagino, não teriam saído em missão caso não tivessem o peso de uma estrutura social e familiar dentro da qual seriam duramente cobrados se não servissem.

Pode parece até razoável supor que pais e líderes religiosos influenciem um jovem a tomar decisões para as quais ele próprio não tem a maturidade para tomar sozinho. Mas, espera um pouco. Alguém que não é ainda responsável para tomar a decisão, será responsável para assumir um chamado de natureza apostólica, servindo como uma testemunha de Cristo ao mundo?

Sei que muitos de nós poderemos ter aquele gostinho sádico de achar que quem não se preparou para a missão que sofra as consequências e que, por bem ou por mal, sairão de lá como homens mais maduros, etc. Esse toque de crueldade em ignorar o arbítrio do outro poderá trazer frutos tão ou mais cruéis.

Na minha missão, um jovem élder tentou o suicídio. Quarta geração mórmon da família, pai ex-presidente de missão. Que opções ele teve quanto a servir como missionário? Talvez aquele triste gesto autodestrutivo tivesse sido a sua única decisão totalmente individual.

Será que a ideia de elevar a barra não resultou em boas estatísticas e estamos de volta ao forçar a barra? Nada melhor do que lembrar de novo a escritura em D&C 4:

(…) se tendes desejo de servir a Deus, sois chamados ao trabalho.


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14 comentários sobre “Missionários Robôs?

  1. A escritura é muito clara -“Se tentedes…o desejo…”.
    Não sou especialsta em português, mas, não precisa ser muito inteligente para entender que o desejo de missão parte de dentro para fora e não de fora para dentro.
    O arbítrio é livre e pertence ao indíviduo.
    Quando os pais que manipulam o arbítrio dos filhos estão se asemelhando ao plano de “Lucifer”.
    Quando fazemos coisas erradas, não desce um raio do céu em nossas cabeças, ou, uma mão gigante para nos dar palmadas. (Mas, as bençãos são retidas).
    Devemos usar o exemplo do Pai Celestial para ensinar e persuadir não o de Stanás.
    A missão não é feita para o indívudo e sem para levar a salvação a os filhos de Deus.
    Eu fiz missão porque quiz, não concordei com certas coisas, como não concordo ainda hoje.
    Mas, fiz missão para as pessoas que ajudei. (Não para mim!).
    Ótimo! Texto.

    • Quando eu fui convidado a sair de missão, recusei, pois senti que não estava preparado para tal empreitada. Somente no ano seguinte, que tive a oportunidade de sair como os missionários e ai então despertei para o desejo de fazer uma missão, fui consciênte do que iria fazer no decorrer dos 24 meses, fui por vontade própia, exerci o meu direito de escolha. Tenho uma filha na missão, ela quis ir para missão, jamais imaginei que ela faria uma missão, foi por livre vontade, apenas apoiei. Tenho um filho que deseja fazer uma missão, mas em momento algum eu o incito, ou preciono, deixo ele exercer seu direito de escolha, o que ele decidir eu apoiarei, e não permito alguém o precionar para tal, os criei e os ensinei a buscarem o melhor nas suas decisões, defendo o direito de escolha, e não aceito algo contrário, e assim deve ser na vida de todos os jovens sud.

  2. Penso que compartilhar o evangelho é uma responsabilidade (ou, um privilégio) que recai sobre cada membro da Igreja. Porém, discordo quanto aos metódos. Penso que pregamos o evangelho quando servimos nossa comunidade, somos bons profissionais, leais, honestos e confiáveis, quando nos esforçamos para ser pais (ou filhos) amorosos, contribuimos para a preservação do meio ambiente ou das manifestações culturais e tradições locais. Pregamos o evangelho quando fazemos o bem aos outros de forma gratuita e desinteressada. Gosto muito da frase atribuída a Santo Agostinho: “Prega o evangelho todo tempo, se necessário use palavras”. Um testemunho de vida ecoa com muito mais impacto na alma que um discurso ou uma “apresentação” sistemática de tópicos do evangelho.

    Entretanto, sobre o tema em questão, acredito que o livre-arbítrio é o maior dom de Deus oferecido ao homem. Nada deve se sobrepôr a isso. Infelizmente, dentro da Igreja, a pressão para servir não se resume à missão de tempo integral para homens. Muitas vezes os líderes locais fazem de si mesmo oráculos e porta-vozes da vontade divina inquestionáveis. Por exemplo, quando afirmam que declinar um chamado é rejeitar a vontade de Deus. É válido lembrar que nem mesmo as autoridades gerais estão autorizada a atuar como tutores da nossa fé em questões de consciência – ou seja, em questões onde, claramente, o Senhor deixou a decisão na mão de Seus filhos. Afinal, como o Apostólo João afirma (em I João 2:20): “Vós tendes a unção do Santo e sabei tudo”. Nesse caso, vale a velha máxima do ingleses: “Fé em Deus e bom senso”. Cada um deve decidir por si mesmo quais são suas prioridades e agir em conformidade com o “dom” que recebeu – afinal o chamado de “evangelista” é apenas um dos muitos dons possíveis no Corpo de Cristo (I Coríntios 12:30).

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