“E este evangelho será pregado a toda nação e tribo e língua e povo”, promete a revelação ditada por Joseph Smith, em novembro de 1831.
Contudo, nem todo líder na Igreja SUD acredita nisso.
Eu servi a minha missão no Leste Europeu entre 1993 e 1995, em dois países que haviam acabado de abandonar seus regimes comunistas. Durante as ditaduras comunistas, habitação era um direito básico levado muito a sério pelo Estado. Se, por um lado as habitações populares eram horrendas e massacrantemente uniformes, pelo outro os conceitos de déficit habitacional e moradores de rua eram praticamente desconhecidos.
Um dos efeitos colaterais de uma política de habitação plena é que encorajava a imigração de desabrigados, e itinerantes, de países mais empobrecidos do bloco comunista. Onde eu morava era considerado pobre para padrões europeus, mas em termos de Europa Oriental e Ásia Central tratava-se de “primeiro mundo”. Se houvesse um grupo étnico que se valia disso era os romani.
Os romani são um grupo de povos de cultura itinerante e nômade, cujas origens eram razoavelmente desconhecidas (nômades não costumam carregar documentos históricos) até que cientistas conseguiram coletar evidências linguísticas e genéticas para determinar ancestrais comuns no noroeste do subcontinente Indiano. Eles são conhecidos por vários exônimos como “gitanos”, “calés” e “quicos”, porém o têrmo mais popular é “ciganos”.
Qualquer membro da Igreja SUD que tenha servido uma missão de tempo integral sabe que missionários passam muito mais tempo entre pessoas de baixos níveis sócio-econômicos e, como havia muitos romani nos países onde eu servi, era natural que acabássemos passando tempo entre eles. Não que fossem investigadores fáceis. Eles falam os seus próprios dialetos, muitas vezes sequer sendo fluentes nas línguas dos países onde moram. Eles mantêm essa cultura nômade, o que nos surpreendia com mudanças súbitas de endereços e moradias. E eles eram — e ainda são — vistos com extremo preconceito pelos demais europeus, o que nunca facilitava com as visitas às reuniões dominicais.
Felizmente, eu nunca fui racista, e batia nas portas dos romani com o mesmo vigor e animação com que batia nas demais portas. Eu era, contudo, pragmático e zelosamente dedicado à missão, então evitava muitos contatos se achasse que as visitas não estavam evoluindo a conversões. (Sim, eu era daqueles missionários insuportáveis focados no trabalho e nas metas!) Então, embora tenha ensinado muitos romani nos meus 25 meses de missão, não posso dizer que formei laços ou relacionamentos com nenhum deles.
Num certo dia, enquanto estávamos numa reunião para metade dos missionários da nossa missão (nós mantínhamos nossas reuniões com múltiplas zonas ao mesmo tempo, dividindo a missão em duas “mega-zonas”), o nosso orador visitante, ninguém menos que o Presidente de Área Robert K Dellenbach visitando-nos de seu quartel-general na Alemanha, nos deu clara e inequívoca instrução: “Não ensinem ciganos, não batizem ciganos, não tragam ciganos às reuniões dominicais”.
Aquelas declarações entalaram na minha garganta e eu me senti como se tivesse tomado um soco na boca do estômago. Além de ser a verdadeira antítese da nossa missão como “representantes de Cristo” fazer acepção de pessoas baseados em sua raça, e além de me ofender o uso constante e banalizado do epíteto racista “cigano”, eu comecei a ter flashbacks da política racista da proibição de Negros, o que já me ofendia na época da Primária!
Enquanto eu covardemente debatia na minha cabeça se deveria falar algo ou não, um colega missionário se levantou no fundo da sala. Eu me envergonho até hoje de não me lembrar do seu nome mas me lembrar da cidade onde trabalhava (naquela época, eu pensava na missão apenas baseado em mapas), e mais ainda me envergonho de não ter tomado a posição que ele tomou naquele dia. Com lágrimas nos olhos e a voz trêmula com revolta, ele narrou (prestou seu testemunho) sobre uma família que eles estavam preparando para o batismo, constituída do pai, da mãe, e de seus 7 filhos. Obviamente, esse missionário já havia passado tempo com, e investido seu coração, nessa família. Eles queriam se batizar, eles frequentavam a Igreja aos domingos, e eles estavam dispostos a aceitar as regras impostas (i.e., dízimo e palavra de sabedoria). E, mais que tudo, eles amavam seus missionários, e aquele missionário amava aquela família.
O Presidente de Área em nada cedeu após esse poderoso testemunho, insistindo que a ordem viera da Primeira Presidência (na época, comandada pelos conselheiros Gordon Hickley e Thomas Monson, já que o Presidente Ezra Benson encontrava-se senil e enfermo) e que ele era o representante oficial do Profeta para nós. O missionário, a quem eu nunca havia dado muito crédito antes, não se deixou abater e uma discussão desconfortável (especialmente para o meu Presidente de Missão) rapidamente evoluiu para um bate-boca e forçou um precoce intervalo, este ainda mais desconfortável por causa do silêncio sepulcral.
Eu nunca mudei a minha posição pessoal, e ensinei vários romani depois desse fiasco. Eu ouvi alguns companheiros reclamarem um pouco, citando essa ordem para evitá-los, mas nenhum deles insistiu muito comigo além do protesto inicial. Mas esses dois sentimentos nunca me abandonaram: a vergonha de não ter vocalizado a minha oposição a essa ordem racista e preconceituosa, e a vergonha de ter recebido uma ordem racista e preconceituosa de meus líderes eclesiásticos, supostamente vindo do topo da liderança eclesiástica da Igreja.
Depois que eu voltei de missão, eu cheguei a trabalhar como Líder da Missão da Ala. Na nossa missão em Campinas, os meus missionários reclamavam de se sentir pressionados a ensinar apenas pessoas de classe média ou classe média alta e evitar os pobres. No Brasil, infelizmente, além do classismo óbvio, essa ordem ainda carrega certa conotação racial.
Compartilho essa experiência pessoal agora porque nós recebemos duas mensagens essa semana justamente sobre esse tema. Coincidentemente, ambos tem a ver com religião e cultura, ao invés de classe social ou raça:
Servi missão em Curitiba 1994-1995. Naquele período, fomos proibidos de pregar o evangelho para Muçulmanos. Até hoje eu não sei o porquê daquela orientação. O presidente da missão era o Sebastião Oliveira. Simplesmente fomos orientados a não ensinar, inclusive a interromper as palestras em andamento, caso a família fosse muçulmana. Apenas obedecemos!
O outro relato que recebemos também envolvia investigadores muçulmanos.
Eu servi no Japão, onde há muitos trabalhadores imigrantes, inclusive do Oriente Médio. Coincidência ou não, após o atentado de 11 de setembro, houve a orientação de que investigadores muçulmanos só poderiam ser batizados se decidissem não mais voltar ao seu país de origem. O presidente de missão disse que estaríamos colocando a vida deles em risco, caso regressassem aos seus países. Não houve nenhum detalhamento sobre quais países seriam esses, o que poderia incluir países de maior diversidade religiosa e liberdades individuais, assim como países onde muçulmanos eram minoria. Preciso verificar isso nos meus diários, mas se não me engano, o presidente de missão disse que precisariam de permissão da Primeira Presidência.
Em outro epísódio, fui informado por outra dupla de missionárias de que não deveria procurar uma investigadora vinda da Mongólia, porque mongóis seriam potenciais transmissores de pneumonia. O Escritória da Missão havia decidido.
Na minha época de missionário, seja de curto prazo, seja de tempo integral, seja na minha ala, eu sempre achei que a ordem divina era “[pregar] este evangelho… a toda nação e tribo e língua e povo”. Estava eu, por acaso, equivocado? O correto seria pregar o evangelho às nações, e tribos, e raças, e classes sociais que fossem mais interessantes para a Igreja?
Interressante, pensei que tal preconceito fosse so na minha época. Recebemos uma designação ainda no CTM de não pregar nas favelas isso do presidente do CTM, lembro de um jovem missionário perguntou se eu encontar um mendigo e quiser batizar, o presidente respondeu: Não tem como pois essa pessoa não tem lar, não tem como acrescenta-la nos registros da igreja, não tem como fazer acompanhamento etc. Na época eu tola aceitei acreditei ser tudo parte do plano de Deus. Hoje tenho outra visão sobre o assunto e creio ser lamentável tal pensamento e atitude.Na própria missão tomamos outra atitude pregamos apenas em lugares pobres eram o que queriam ouvir o evangelho e estavam dispostos a ir na igreja. Alguém tem algum relato parecido?
Priscila, minha cunhada serviu no Rio de Janeiro na década de 80 e ela comentou que não podiam subir nas favelas de lá para fazer o proselitismo, alguns missionários questionaram, mas o motivo que o presidente apresentou era a segurança dos missionários.
A questão não era so segurança lembro que foi dito na época periferia e favela, hoje percebo o preconceito, é apenas minha opinião
Durante a minha missão (BH Leste 2003-2005), mais especificamente enquanto servia como líder de zona, recebemos um treinamento de um 70 de área.
Ele argumentou que deveríamos procurar pesquisadores de condição financeira mais elevada. A tese era de que, uma vez que esses integrassem a Igreja, haveria uma maximização da obra em virtude da influência social e recursos que eles dispunham, e então, por conta de tal maximização o evangelho seria pregado mais eficazmente aos mais carentes.
Uma escritura que embasava tal tese está em D&C 58:6-10 (com ênfase no verso 10)
Quando então repassamos esse ensinamento aos distritos que compunham nossa zona, um dos missionários ficou extremamente contrariado com tal diretriz. Olhando em retrospectiva, e com a maturidade que agora possuo, vejo que também deveria ter me oposto à ela desde o princípio. Não a teria retransmitido aos demais.
Eu lembro de uma vez quando estava servindo missão (SP Sul, ainda quando Santos fazia parte), ensinávamos um homem desempregado, que morava de favor numa casa, não lembro se estava sendo construída ou reformada, se ele só tomava conta ou até mesmo se era abandonada, enfim, não era um lugar apropriado pra se morar, esse cara, muito humilde, gostava muito das nossas visitas, ia à Igreja aos domingos e nunca foi rejeitado por ninguém lá, nunca ninguém falou nada contra ele por ser pobre, não ter onde morar, etc. Muito pelo contrário, lembro até de uma vez que o LMA comprou um botijão de gás e um pequeno fogão (não lembro exatamente se foi isso mesmo, mas foi algo pra ele cozinhar seu alimento), e nós ficamos muito felizes com a recepção que ele teve na Igreja por parte dos membros, nenhum líder se opôs, nas reuniões que tínhamos pela manhã, falávamos do seu progresso espiritual e as questões materiais era pra perguntar se podiam fazer algo pra ajudar, meu Pres. de Missão nunca exigiu que não compartilhássemos o Evangelho c/ pessoas de poder aquisitivo mais baixo… Acho que existe sim gente na Igreja que não vale a pena dar ouvidos, até porque, sinceramente pessoal, a maioria das pessoas no Ocidente, crê em Deus e Cristo e nem por isso são boas pessoas, membros e líderes da Igreja são humanos e sujeitos a falhas… Meu testemunho não se abala quando ouço e vejo coisas desse tipo…
Recebi a mesma orientação no CTM, protestei e fui calado.
Marcello, o mais triste de tudo isso é, constatar que tais coisas acontecem na igreja que se diz a “única e verdadeira sobre a face da terra” e que carrega o nome daquele que pra mim, é cheio de amor, de bondade, de misericórdia, de compaixão e cujo paradigma de suas ideias é totalmente inclusivo.