Lição sobre Linhagem, 1970

Em dezembro de 1970, a Missão Brasil Norte de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias publicava a seus jovens missionários a mais recente versão de uma palestra a ser usada com potenciais membros brasileiros. Nela, após revisar conceitos sobre revelação, profetas e autoridade divina, falava-se sobre os negros não poderem ser ordenados ao sacerdócio.

A Primeira Presidência à época: presidente Joseph Fielding Smith e seus conselheiros President Harold B. Lee, e Eldon Tanner.

A Primeira Presidência formada em 1970: presidente Joseph Fielding Smith e seus conselheiros Harold B. Lee e Eldon Tanner.

A segregação de negros e afrodescentes do sacerdócio era explicada na forma de um diálogo entre os missionários e o “Irmão Nunes”. As falas do investigador hipotético eram guiadas cuidadosamente por perguntas prescritas aos missionários.

A lição afirmava que os negros descendiam de Caim e que as razões para sua exclusão do sacerdócio não eram plenamente conhecidas. Ela ainda incluía a narrativa de que a exclusão racial na Igreja havia sido estabelecida por seu profeta fundador Joseph Smith.

Usando uma citação de David O. McKay, garantia-se que futuramente o direito ao sacerdócio seria dado aos homens negros. Depois de ter presidido a Igreja por quase duas décadas, McKay havia falecido em janeiro daquele ano.

Na parte final da palestra, os missionários deveriam perguntar se a pessoa tinha antepassados negros. Em caso negativo, o “Irmão Nunes” deveria firmar um compromisso de que, caso viesse a descobrir ascendência africana em sua genealogia, informaria o presidente de ramo local:

Se no futuro o senhor descobrir que um dos seus antepassados era negro o senhor avisará ao Presidente de Ramo?

Caso viesse a descobrir antepassados negros, também seria esperado que permanecesse ativo na instituição SUD. A palestra encerrava com a seguinte pergunta:

O senhor acha que nesse caso permaneceria firme e fiel à igreja e seus convenios com Deus? [sic]

Curiosamente, as duas questões deveriam ser feitas apenas após a pergunta se “Nunes” aceitaria o sacerdócio, caso lhe fosse oferecida a possibilidade de ordenação pela autoridade local.

Nessa palestra pré-estabelecida, não constam instruções de como os missionários deveriam agir caso a pessoa declarasse ter antepassados negros. Ou mesmo se demonstrasse discordar da doutrina do banimento do sacerdócio.

A lição missionária de 1970 tampouco traz qualquer informação sobre como mulheres negras, ou com antepassados negros – as quais eram impedidas de receber sua investitura ou selamentos, ou mesmo de servir como missionárias – seriam afetadas pela política racial então vigente na Igreja.

Havia diferentes versões desta palestra circulando em diferentes missões do Brasil e do mundo? A Missão Brasil Norte encontrava maior dificuldade com o perfil racial de seus potenciais conversos? Como os missionários ensinavam sobre o banimento de negros do sacerdócio a pesquisadores com ascendência africana conhecida? Quando ensinada a mulheres, negras ou não, qual era o compromisso buscado no final da palestra?

Você lembra de ter usado esta palestra como missionário? De tê-la ouvido como não-membro?

Diversas questões surgem pela leitura desta palestra missionária e certamente requerem futura pesquisa, não apenas dos textos utilizados no proselitismo mórmon, mas especialmente das memórias daqueles que vivenciaram os esforços missionários e a expansão da Igreja no Brasil durante o período anterior a 1978.

Pg. 1 - Palestra do SacerdcioPg. 2 - Palestra do SacerdcioPg. 3 - Palestra do SacerdcioPg. 4 -Palestra do Sacerdcio

27 comentários sobre “Lição sobre Linhagem, 1970

  1. Fui batizado aos 15 anos, em 1971, no Ramo Jardim Botânico, na Cidade do Rio de Rio de Janeiro (quando havia apenas um distrito em toda a Região Metropolitana) e me lembro muito bem dessa doutrina: os missionários que ensinavam minha família, ao final das lições e sem deixar claro o objetivo, pediram para ver fotos antigas de nossos parentes vivos e antepassados falecidos. Como não possuíamos nenhum de cor negra, a data do batismo foi marcada. Alguns anos mais tarde, quando nos mudamos para o Espírito Santo, o Ramo de Vitória promoveu, juntamente com o Ramo de Vila Velha, uma “Expomórmon” a fim de atrair investigadores (à época, havia apenas dois ramos em todo o Estado, ligados diretamente à antiga Missão Brasil-Norte) . Os visitantes eram convidados a deixar seus nomes, endereços e telefones em um caderno para que os missionários pudessem mais tarde entrar em contato com eles. Mas, recordo-me que junto ao nome daqueles que tinham a pele escura — e sem que o interessado soubesse — era inserida a letra “C”, significando “descendente de Caim”.

    Se a Igreja fosse oficialmente racista, isto tudo seria explicável, embora, talvez, não justificável. O problema, no entanto, vai muito mais além: pelo que sabemos hoje, negros eram batizados e ordenados ao Sacerdócio durante a Presidência de Joseph Smith, deixando de sê-lo a partir da Presidência de Brigham Young e voltando a sê-lo na Presidência de Spencer Kimball. Se a Igreja é supostamente guiada por revelação, será que Deus teria dado uma ordem a Joseph Smith, voltado atrás com Brigham Young, e, muitos anos mais tarde, sob Spencer Kimball, retornado à orientação anterior? Essa história me parece muito mal contada, e desses fatos posso, em princípio, inferir duas hipóteses: a) A igreja não é guiada por revelação e sim pela vontade pessoal de seus presidentes, sendo alguns deles racistas, outros não; b) A Igreja é, sim, guiada por revelação, mas Deus muda de vez em quando de opinião para ver como nos comportamos aqui no andar de baixo em questões tão sensíveis como a racial. Recuso-me a acreditar que Deus dirija sua criação jogando dados, assim sou forçado a entender que a primeira hipótese seja a mais provável.

    Calma, não há razão para deixarmos em massa nossa Igreja! Continuo acreditando que ela é possuidora da maior parcela da verdade frente a outras igrejas, porém creio também que durante os quase dois séculos que se passaram entre a Restauração e hoje, a natureza humana por detrás de sua liderança pode ter jogado um papel muito forte no sentido de moldá-la segundo outros interesses que não aqueles que justificaram sua criação. Sinceramente, penso que é preciso retornarmos ao que é básico, quem sabe dando as mãos novamente às duas outras denominações que levam o nome da nossa: a Igreja Fundamentalista de JCSUD e a Igreja Reorganizada de JCSUD (Comunidade de Cristo). Me procure quem desejar dar um passo nessa direção.

      • Caro irmão Danilo, meu e.mail pessoal é friederi@voila.fr. Vai ser um prazer me corresponder com você e com quaisquer outros irmãos e irmãs que desejarem. Abraço para você e para todos. Friederick.

    • Irmão Friederick, gosto muito de ler seus comentários, são um poço de sabedoria inteligência e História da Igreja na versão nacional, com a visão de um judeu-alemão-brasileiro, convertido ao Evangelho restaurado. Confesso que pelo fato de ser de descendência palestina-afro-brasileira-nordestina (bem mestiço, por sinal), eu me simpatizo contigo. Confesso que fico com o coração chateado quando leio sobre esse passado da Igreja, mas tento não ficar muito negativo com a Igreja (ou seus lideres brancos). Confesso que depois dessa conferência cheguei a perguntar para o meu irmão se ele acha que a Igreja é racista, sua resposta foi interessante, mas nela pude perceber, meu irmão absorveu o racismo institucional da nossa organização religiosa.

  2. Hj está claro para mim que essa questão de negar o Sacerdócio para negros foi puro e simples racismo; coisa de homens, nada de Deus envolvido. Acho que a revelação de 1978 foi mais um puxão de orelhas do que um “agora pode”. Pq não falar a verdade né? Fica bem menos feio do que inventar trezentas histórias diferentes pra justificar isso… Como negra isso me incomoda pero no mucho até pq é passado, já foi, já aconteceu, já era… me incomoda mais os racistas de hj em dia na Igreja mas racista tem em todo lugar, pq na Igreja seria diferente né?

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