O Livro de Mórmon é a obra literária mais sagrada para milhares de mórmons, centenas de igrejas e seitas da tradição Santos dos Últimos Dias, e o principal volume de escrituras para membros de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.

Imagem inspirada na descrição das Placas de Ouro por Joseph Smith
Dedicamos aqui um artigo para cada capítulo do Livro de Mórmon , cobrindo todo o seu texto (utilizando, como base, a última edição da Igreja SUD), acompanhados de comentários adicionais do ponto de vista historiográfico, racional, e científico para incentivar uma leitura diária do texto sacro e facilitar um estudo mais intelectual dele. Postagens passadas podem ser encontradas aqui.
O trecho de hoje é: 1 Néfi 5
Primeiro Livro de Néfi
Capítulo 5
E aconteceu que depois de havermos descido para o deserto até nosso pai, eis que ele se encheu de alegria; e minha mãe, Saria, também se alegrou muito, pois verdadeiramente havia pranteado por nossa causa.
Perdendo-se em questões de continuidade, a narrativa coloca-os acampados no “deserto” aqui, apesar de haver determinado previamente que eles estavam acampados na “costa do Mar Vermelho” em um “vale, à margem de um rio de águas”, onde certamente não seria “deserto”.
Pois ela pensara que havíamos perecido no deserto e queixara-se também de meu pai, acusando-o de visionário, dizendo: Eis que tu nos tiraste da terra de nossa herança e meus filhos já não existem; e nós pereceremos no deserto.
Saria queixa-se de “perecer” no “deserto, porém a costa arábica é a região mais fértil de toda peninsula, situada entre a cordilheira de Hejaz ao leste e o Mar Vermelho em si (além do Golfo de Aqaba) ao oeste, permeada por diversos oásis em toda sua extensão. Não à toa era a região mais populada e desenvolvida da peninsula na antiguidade (inclusive, até a presente data), e não à toa é o lar das duas principais cidades da história e religião islâmica, Meca e Medina.
E era desse modo que minha mãe se queixava de meu pai.
Considerando o alcoolismo de Joseph Smith, Sr. e considerando os muitos problemas financeiros que a família sofreu por causa desse alcoolismo, a “minha mãe se queixava de meu pai” provavelmente era um tema recorrente na infância e adolescência de Joseph Smith, Jr.
E aconteceu que meu pai lhe respondeu, dizendo: Sei que sou um visionário, pois se não houvesse visto as coisas de Deus numa visão não teria conhecido a bondade de Deus, mas teria permanecido em Jerusalém e perecido com meus irmãos.
Joseph Smith, Sr., era conhecido como “visionário” entre familiares e amigos. Inclusive, uma de suas visões mais notáveis foi incorporada à narrativa do Livro de Mórmon.
A profecia de Lehi é simplesmente equivocada. Quando ele afirma que teria “perecido com meus irmãos”, supõe-se que ele faz alusão à invasão babilônica iminente. Contudo, Nabucodonosor II tomou Jerusalém em 597 AEC (lembrando que estamos, nesse ponto da narrativa, em 600 AEC, apesar do óbvio erro de cálculo no calendário!) com um sítio prolongado e quase sem derramar sangue, aceitando a capitulação e empossando um rei (Zedequias) fantoche. Após a traição de Zedequias, Nabucodonosor II invadiu a Judéia novamente, e em 586 AEC tomou Jerusalém e a destruiu por completo. Apesar das baixas militares e de escravizar mais de 4000 pessoas da elite judaica, a população civil em si foi poupada. Ademais, o grande profeta judeu da época, Jeremias, que havia sido aprisionado pelas elites, não apenas foi solto e protegido pelos babilônios, mas honrado e dotado com residência preferencial sob a proteção babilônica.
Eis que obtive, porém, uma terra de promissão, pelo que me regozijo; sim, e sei que o Senhor livrará meus filhos das mãos de Labão e no-los devolverá no deserto.
A 400 km de distância de Jerusalém e sem celulares ou WhatsApp, e ainda assim Lehi e Saria sabiam que Néfi e irmãos precisavam ser “livra[dos]… das mãos de Labão”.
O continente americano (ou os EUA) começa a ser descrito como “terra de promissão”, iniciando a narrativa de que a terra em si, e o continente, foram entregues aos ameríndios por Deus, dotando o Livro de Mórmon com uma variante da narrativa de “Destino Manifesto”. A doutrina do destino manifesto, muito popular no início do século XIX, expressava “a crença que o povo dos Estados Unidos é eleito por Deus para civilizar a América, e por isso o expansionismo americano é apenas o cumprimento da vontade Divina.”
E com essas palavras meu pai, Leí, confortava minha mãe, Saria, a nosso respeito, enquanto viajávamos pelo deserto para a terra de Jerusalém a fim de obtermos o registro dos judeus.
800 km de viagem a pé através do deserto em alguns dias.
E quando voltamos à tenda de meu pai, eis que sua alegria foi completa e minha mãe ficou confortada.
E ela falou, dizendo: Agora sei com certeza que o Senhor ordenou a meu marido que fugisse para o deserto; sim, e tenho também certeza de que o Senhor protegeu meus filhos e livrou-os das mãos de Labão; e deu-lhes o poder de executarem o que o Senhor lhes havia ordenado. E desse modo ela falou.
“Executar” o que o “Senhor lhes havia ordenado” certamente é uma escolha de palavra (trocadilho?) macabro.
E aconteceu que se regozijaram muito e ofereceram sacrifícios e holocaustos ao Senhor; e renderam graças ao Deus de Israel.
Saria estava preocupada de “perecer” no “deserto”, mas agora eles gozam de abundância de provisões para realizar “sacrifícios e holocaustos”?
E depois de haverem rendido graças ao Deus de Israel, meu pai, Leí, tomou os registros que estavam gravados nas placas de latão e examinou-os desde o princípio.
E viu que continham os cinco livros de Moisés, que faziam um relato da criação do mundo e também de Adão e Eva, que foram os nossos primeiros pais.
Apesar da crença popular em 1829, ou mesmo em 600 AEC, Moisés certamente não foi o autor dos “cinco livros” que compõe o que chamamos de Pentateuco ou Torá. Estudos acadêmicos demonstram que o Torá foi composto por múltiplos autores, agrupados em 4 grupos ou escolas de pensamento distintos: Javistas, Elohistas, Deuteronomistas, e Sacerdotais. Apesar de versões Javistas e Elohistas do Torá já existirem nessa época, Deuteronomistas só abordariam esses textos durante e após as invasões babilônicas (e, portanto, após Lehi ter saído de Jerusalém) e os Sacerdotais apenas durante o exílio babilônico. O consenso acadêmico é que a edição confluente destas 4 escolas e seus textos só ocorreu após o retorno do exílio, no período de reconstrução, e o Torá ou Pentateuco como o conhecessemos só surgiu em torno de 500 AEC. Contrariando toda evidência textual, a narrativa do Livro de Mórmon anacronisticamente presume a existência desses “cinco livros” mais de um século antes.
E também um registro dos judeus, desde o princípio até o começo do reinado de Zedequias, rei de Judá.
Reinado que, ironicamente, só se iniciaria 3 anos depois de Lehi ter supostamente saído de Jerusalém, e após a segunda invasão babilônica (a primeira de Nabudonosor II).
E também as profecias dos santos profetas, desde o princípio até o começo do reinado de Zedequias; e também muitas profecias que foram proferidas pela boca de Jeremias.
As profecias de Jeremias, cujo ministério deveria ser contemporâneo ao de Lehi, cujos ensinamentos só seriam anotados e escritos em pergaminhos após a terceira invasão babilônica em 586 AEC e seu resgate e financiamento pelo rei Nabucodonosor II, e que fora terrivelmente impopular por toda sua carreira profética, especialmente entre as elites, aparecem em um documento entalhado em metal antes de 600 AEC.
E aconteceu que meu pai, Leí, também descobriu nas placas de latão uma genealogia de seus pais; soube, portanto, que ele descendia de José, sim, aquele mesmo José que era filho de Jacó e que fora vendido no Egito e que fora preservado pela mão do Senhor para que pudesse preservar seu pai, Jacó, e toda a sua casa, evitando que morressem de fome.
Joseph (José) Smith Jr., filho de Joseph (José) Smith Sr., relata como todos os ameríndios são descendentes de José (Joseph).
Quais seriam os tamanhos dessas placas para que a genealogia de todos os judeus da época (ao menos suficiente para que Lehi pudesse encontrar seu nome e os de sua família) pudesse ser documentada por milhares de gerações cobrindo um período de mais de mil anos?
E foram também tirados do cativeiro e da terra do Egito pelo mesmo Deus que os havia preservado.
Diferentemente do conhecimento acadêmico em 1829, hoje pesquisadores como historiadores e arqueológos conseguem demonstrar uma rica e detalhada historiografia egípcia da Antiguidade e não há quaisquer evidências para José do Egito ou a imigração (e subsequente emigração) de milhares e centenas de milhares de Israelitas.
E assim meu pai, Leí, descobriu a genealogia de seus pais. Labão também era descendente de José, razão por que ele e seus antepassados haviam mantido os registros.
Mais de mil anos de múltiplas genealogias registrados em placas de latão que Néfi e Zorã carregaram sem quaisquer problemas.
E então, quando meu pai viu todas essas coisas, encheu-se do Espírito e começou a profetizar sobre seus descendentes —
Os ameríndios. Aqui é importante ressaltar que a narrativa do Livro de Mórmon, equivocações modernas não obstante, é clara sobre as origens genealógicas dos Nativos Americanos ou “índios”.
Que essas placas de latão iriam a todas as nações, tribos, línguas e povos que fossem de sua descendência.
E, não obstante essa profecia, após uma única geração após Néfi, as “placas de latão” inteiramente desaparacem para sempre, inclusive da própria narrativa do Livro de Mórmon.
A expressão “todas as nações, tribos, línguas e povos” é uma citação direta do Novo Testamento.
Disse também que as placas de latão jamais seriam destruídas ou escurecidas pelo tempo. E profetizou muitas coisas sobre sua semente.
Não seriam destruídas mas nunca mais seriam vistas ou lidas.
Como “sua semente”, leia-se ameríndios.
E aconteceu que até então meu pai e eu havíamos guardado os mandamentos que o Senhor nos dera.
Néfi não perde uma oportunidade para estabelecer suas credenciais espirituais. Humildade pessoal não é um tema central.
E havíamos obtido os registros que o Senhor nos ordenara e os havíamos examinado e visto que eram de grande valor; sim, de tão grande valor que poderíamos preservar os mandamentos do Senhor para nossos filhos.
De “tão grande valor” para “preservar os mandamentos” que elas raramente (ou nunca) são citadas, mencionadas, ou lidas.
Era, pois, sábio para o Senhor que os levássemos conosco enquanto viajávamos pelo deserto rumo à terra da promissão.
Porque o Senhor não poderia ditar para Lehi ou Néfi seus conteúdos, de modo que pudessem eles, mesmos, anotar essas informações. Com todos os milagres que veremos ocorrer nessa viagem, esse já seria um milagre além do razoável.
Leia o texto do Livro de Mórmon aqui em sua última versão em português publicada pela Igreja SUD.
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