Profetas vivos são a parte mais idiossincrática da história, da teologia e da tradição mórmons. Tanto que o primeiro hinário mórmon, de 1835, continha uma estrófe celebrando a natureza ímpar desse quesito fundamental:
“Uma igreja sem um Profeta,
Não é a igreja para mim,
Ela não tem um cabeça para liderá-la,
Não pertenceria a uma assim.”¹
O conceito de profetas vivos permanece firme e forte, com mórmons cantando hoje “Graças damos, ó Deus, por um profeta; Que nos guia no tempo atual”. A celebração, e reverência, de profetas passados é quase tão forte quanto o culto aos profetas vivos atuais, inspirando publicações de biografias autorizadas e livros didáticos para mantê-los vivos na memória coletiva.

Detalhe de O Profeta Isaías por Michelangelo (afresco no teto da Capela Sistina)
Não obstante, seja por divergência de tradições, seja por falta de interesse ideológico ou eclesiástico, ou por apatia literária ou historiográfica, muitos profetas da história e tradição mórmons são ignorados ou esquecidos. Esta série de artigos servirá para explorar as biografias e os legados desses líderes mórmons com sucintas introduções a seus chamados proféticos.
O artigo de hoje discutirá: Gladden Bishop.
Francis Gladden Bishop nasceu em janeiro de 1809, na região dos Lagos de Dedo do noroeste de Nova Iorque, a meros 50 km da Manchester de Joseph Smith e do Monte Cumora.
Bishop, ou como era mais popularmente conhecido em vida, Gladden, converteu-se ao mormonismo em julho de 1832, prontamente sendo ordenado élder e, em 1833, presidente do ramo de Westfield, Nova Iorque.
Gladden foi excomungado em agosto de 1835 porque “ele tinha cometido um erro de espírito e de doutrina, e [era] consideravelmente inclinado a entusiasmo, e muito animado”. Em menos de dois meses, ele havia sido restituído com um aviso para não mais “pregar doutrinas heréticas”.
Em 1838, Gladden foi ordenado Setenta e serviu missões na Carolina do Norte, Virginia, Maryland, Massachussetts, Nova Iorque, e no Canadá. Não obstante, passados alguns anos Gladden passou a pregar que ele havia sido escolhido por Deus em revelação para suceder a Joseph Smith como Profeta da Igreja, e em 1842 ele foi novamente excomungado por heresia.
Gladden afirmou, em seu julgamento eclesiástico, que havia recebido o sacerdócio de Melquisedeque diretamente de Jesus Cristo, e posteriormente testemunhou que um homem chamado Néfi, um dos Três Nefitas citados no Livro de Mórmon, o havia visitado e entregue 8 artefatos em conexão com o livro: As Placas de Ouro, o Urim e Tumim, o Peitoral de Moroni, a Liahona, a espada de Labão, uma pequena coroa de prata representando o sacerdócio aarônico, uma grande coroa representando o sacerdócio de melquisdeque, e as 116 páginas do manuscrito do Livro de Mórmon que Martin Harris havia perdido em 1828.
Logo após sua excomunhão, Gladden foi visitado em visão, recebendo sua unção e ablução (antes de Smith introduzir esse ritual em suas ordenanças templárias) e coroado rei da nação unida de Israel. Diversas famílias mórmons espalhadas pelos estados de Iowa e Illinois aceitaram o chamado profético de Gladden Bishop e passaram a seguir suas revelações, entre eles o Apóstolo e Testemunha do Livro de Mórmon Martin Harris. Uma dessas revelações os instruiu a coligar em Kirtland, Ohio, onde Gladden deveria assumir controle do Templo de Kirkland dedicado por Joseph Smith em 1836. Assim, para lá emigraram Gladden e os mórmons que o seguiam como seu Profeta em 1851.

“Eu posso cagar um profeta melhor e peidar revelações melhores” — Brigham Young
Não estavam lá mais que um ano quando Gladden recebeu uma revelação de que deveriam todos emigrar para Utah, onde Gladden assumiria controle da Igreja estabelecida lá e aboliria a prática recém-anunciada publicamente de poligamia. Gladden enviou epístolas para Brigham Young e demais Apóstolos chamando-os ao arrependimento por introduzir apostasias à Igreja, como poligamia, e prestando testemunho de que Deus lhe havia revelado o manto profético de Joseph Smith.
Se Young respondeu as cartas, não há evidências documentadas, porém Gladden decidiu não acompanhar os seus seguidores que emigraram para Utah. Young, contudo, demonstrou plena ciência de quem Gladden era, de suas reivindicações proféticas, e dos mórmons que o seguiam. Por exemplo, em janeiro de 1852, a viúva Polly Conklin foi se entrevistar com Young para conseguir recomendação para se selar a um pretendente mórmon e, durante a conversa informal antes da entrevista, Conklin elogiou alguns pronunciamentos proféticos de Gladden. Young, visivelmente irritado, cortou a conversa e deixou claro sua opinião sobre ele:
“Eu posso cagar um profeta melhor e peidar revelações melhores”
Em agosto de 1852, Alfred Smith foi convidado a discursar no Tabernáculo e, aproveitando a oportunidade, pregou por horas das revelações de Gladden Bishop para um Tabernáculo lotado. Ao terminar, Young teceu alguns comentários breves porém contundentes, e imediamente excomungou Smith, sua esposa Ann, a viúva Conklin, John Gallop, e muitos outros dos ali presentes.
Enquanto isso, Gladden e família chegavam à estação mórmon de imigrantes em Kanesville, Iowa, a caminho de Kirtland para Salt Lake City para assumir controle da Igreja. Notícias das excomunhões e de alguns conflitos iniciais, contudo, lhe deram motivos para reconsiderar ir a Utah e pausou em Kanesville para reavaliar e aguardar novos desenvolvimentos.
As esperanças de Gladden por uma reunião e conciliação com o maior grupo de mórmons assentados em Utah rapidamente ruiram. Em fevereiro de 1853, uma turba armada de mórmons avançou sobre uma congregação de seguidores de Gladden e dispersou os presentes sob ameaça de violência. Para certificar-se que não se reuniriam, arrastaram o idoso Strong e Gallop até a residência deste que, após horas de cativero e ameaças, refugiaram-se na segurança do lar de Gallop, tremendo porém ilesos.
No começo de março de 1853, Smith foi pregar e distribuir a recente revelação de Gladden em sua nova publicação “The Ensign” de pé na sua carroça estacionada na rua próxima ao Tabernáculo, quando foi ameaçado por alguns dos mórmons que congregaram para ouvi-lo, porém ao ser defendido por alguns presentes, o prefeito de Lago Salgado Jedediah Grant ordenou a dispersão dos congregados.
Em resposta a esse incidente, em 27 de março de 1853, os Apóstolos Parley Pratt, Amasa Lyman, e Erastus Snow, e o Presidente Brigham Young pregaram publicamente invectivas pessoais contra Bishop e Smith, condenando-os e denunciando suas pregações, além de instruir bispos que os proibissem de falar em público. Young chegou, inclusive, a ameaçá-los do púlpito com violência como retaliação sob aclamação e aplausos dos presentes:
“Ouvi dizer que um certo cavalheiro, um fabricante de fotos nesta cidade, que quando os meninos queriam puxar a carroça na qual este apóstata estava de pé, tornou-se violento com eles, dizendo: “Deixem este homem em paz, estes são os Santos quem estão perseguindo” (riso sarcástico). Queremos que tais homens se mudem para a Califórnia, ou qualquer lugar que escolherem. Eu digo às pessoas, você não deve flertar com perseguição aqui, a menos que receba tanta perseguição que não vai nem saber o que fazer com ela. Não flerte com perseguição. Conhecemos Gladden Bishop por mais de vinte anos, e sei que ele é um pobre e suja maldição.
…
Digo mais uma vez a vocês, Gladdenitas, não flertem com perseguição, ou vocês vai receber mais do que vocês queriam, e ela virá mais rápido do que vocês queriam. Eu digo a vós, Bispos, não permitam-lhes pregar em suas alas. Quem abriu as estradas por estes vales? Esse nojentinho do Smith e sua esposa? Não, eles ficaram em St. Louis enquanto eu fiz isto, vendendo fitas, e beijando os gentios. Eu sei que eles têm cobrado preços exorbitantes aqui, vendendo essas suas fitas fedorentas e desagradáveis. Nós abrimos as estradas nesta região. Agora, vocês Gladdenitas, mantenham suas matracas fechadas, para que não sobrevenha repentina destruição sobre vocês.
Vou contar-lhes um sonho que tive ontem à noite. Sonhei que estava no meio de um povo que estavam vestidos em trapos e farrapos, eles tinham turbantes sobre as cabeças, e estes também estavam pendurados em farrapos. Os panos eram de muitas cores, e, quando as pessoas andavam, eles ficavam tremulando. Seu objetivo com isso parecia ser chamar atenção. Disseram-me: “Nós somos mórmons, irmão Brigham”. “Não, vocês não são”, eu respondi. “Mas nós fomos,” eles disseram, e eles começaram a pular, e saltitar, e dançar, e seus trapos de muitas cores tremulavam em movimento, para atrair a atenção das pessoas. Eu disse: “Vocês não são Santos, vocês são uma vergonha para eles.” … Com isso, eu peguei a minha grande faca Bowie, que eu costumava usar como um pino em Nauvoo, e cortei uma das suas gargantas de orelha a orelha, dizendo: “Vá para o inferno direto.” E outro me disse: “Você não se atreve a me matar assim.” Eu imediatamente saltei para cima dele, agarrei-o pelos cabelos da cabeça, e, trazendo-o para baixo, cortei sua garganta, e joguei-o sobre seu companheiro; em seguida, disse a ambos, se eles se comportassem que ainda os deixaria viver, mas se não o fizessem, eu arrancaria seus pescoços. Nisso eu acordei.
Eu digo, em vez de deixar os apóstatas florescerem aqui, vou desembainhar a minha faca Bowie, e vencer ou morrer. Agora, vocês apóstatas desagradáveis, sumam daqui, ou o julgamento será colocado à linha, e a justiça ao prumo. Se você diz que isso é certo, levante suas mãos. Vamos invocar o Senhor para nos ajudar com isso, e toda boa obra.
Depois que Alfred Smith foi chamado para ir em uma missão, ele não quis ir, e eu sabia que ele iria apostatar. Você supõe que depois que um homem se recusou a cumprir o seu chamado, ele pode reter o espírito da verdade, e ficar? Não pode. Eles dizem acreditar que Joseph Smith foi um profeta levantado para estabelecer a obra dos últimos dias, e trazer à luz o Livro de Mórmon; e, assim, eles enganam. Mas se você examiná-los você não encontra nada, exceto contradição a todos os princípios de verdade.
…
Eu quero que vocês ouçam, Bispos, o que estou prestes a dizer-lhe. Chutem estes homens para fora de suas alas. Se vocês quiserem apostatar, apostatem e se comportem. Você não devem perturbar minha paz, nem a paz deste povo. Se você quer ir para a Califórnia, vá, e sirva a Gladden Bishop lá, se quiser, mas não perturbem esta comunidade, ou então você vai encontrar o julgamento no fio da navalha. Não flertem com perseguição, pois, lembrem-se, vocês não está brincando com sombras, mas é a voz e a mão do Todo-Poderoso com que você está tentando brincar, e vocês vão se encontrar enganados se pensam o contrário.” — Brigham Young (Journal of Discourses 1:81)
Naturalmente, um espírito de perseguição de mórmons contra mórmons se seguiu, com seguidores de Young assediando e intimitando os seguidores de Gladden. A situação chegou a tal ponto que, para evitar a eclosão de violência de fato, o prefeito Grant novamente intercedeu e organizou uma reunião entre representantes de Gladden e o governador do Território de Utah, Brigham Young.

Instrumento eclesiástico de Brigham Young: Uma Faca Bowie (ilustrada com uma pistola e notas de dólares para comparação de tamanhos)
Apesar da reunião começar combativa (Gallop tentou pregar para Young, Young o cortou com um sonoro “vá para o inferno”), Calvin Siddell acalmou ânimos ao articular a responsabilidade do governador em manter a lei constitucional e proteger as liberdades civis de todos no território. Young concordou, então, em anunciar do púlpito do Tabernáculo uma diretriz denunciando a perseguição dos seguidores de Gladden, apesar de acautelar contra ouvi-los ou dar-lhes atenção.
Apesar do alívio das tensões e dos ânimos após o último pronunciamento de Young de 17 de abril de 1853, Gladden anunciou uma revelação instruindo Smith e outros a fugirem da perseguição em Utah e encontrá-lo em Kanesville. Expulsos de Utah, e desistindo de pertencer à Igreja SUD sob o controle de Brigham Young, a maioria dos seguidores de Gladden o seguiram até um novo ponto de coligação em Crow Creek, Illinois, onde seu Profeta os organizou sob a recém-incorporada A Igreja de Jesus Cristo da Nova Jerusalém.
Em 1854, por motivos mal documentados, muitos abandonaram Crow Creek para voltar para Kanesville, enquanto outros permaneceram em Illinois, de cuja comunidade nasceria a Igreja de Cristo sob a liderança do Apóstolo John E. Page e Granville Hedrick. Em 1860, Gladden Bishop emigrou com alguns de seus seguidores até Nebraska, onde incorporou a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, porém essa comunidade não conseguiu prosperar e dispersou em 1864. Gladden finalmente se mudou, apenas com uma irmã, para Salt Lake City, onde desejava encontrar-se com Young para lhe entregar as relíquias sagradas que ele havia recebido e assim poder inaugurar o reinado do Ancião de Dias. Contudo, Gladden sucumbiu em novembro de 1864 à uma epidemia de escarlatina e faleceu antes de poder se reunir com o outro profeta mórmon.
Notas
[1] Hinário SUD (1835); Hino removido a pedido de Brigham Young em 1844, citado em Quest for Empire: The Political Kingdom of God and the Council of Fifty in Mormon History por Klaus J. Hansen.
Referências
Bringhurst, Newell e Hamer, John (eds.), Scattering Of The Saints: Schism Within Mormonism, John Whitmer Books, 2007.
Bushman, Richard, Joseph Smith: Rough Stone Rolling, Alfred A. Knopf, 2005.
Entz, Gary, ‘The Bickertonites: Schism and Reunion in a Restoration Church, 1880-1905‘ em Journal of Mormon History vol. 32, 2006
Hansen, Klaus, Quest for Empire: The Political Kingdom of God and the Council of Fifty in Mormon History, Michigan State University Press, 1967.¹
Launius, Roger, Joseph Smith III: Pragmatic Prophet, University of Illinois Press, 1995.
Launius, Roger e Thatcher, Linda (eds.), Differing Visions: Dissenters in Mormon History, University of Illinois Press, 2010.
Newell, Linda e Avary, Valeen, Mormon Enigma: Emma Hale Smith, University of Illinois Press, 1994.
Quaife, Milo, The Kingdom of Saint James: A Narrative of the Mormons, Yale University Press, 1930.
Saunders, Richard, Francis Gladden Bishop and Gladdenism : A Study in the Culture of a Mormon Dissenter and His Movement, Utah State University, 1989.
Saunders, Richard, ‘More a Movement Than an Organization: Utah’s First Encounter with Heresy, The Gladdenites, 1851-1854‘ em The John Whitmer Historical Association Journal vol. 16, 1996.
Shields, Steven, Divergent Paths of the Restoration: A History of the Latter Day Saint Movement, Restoration Research, 2001.
Speek, Vickie, God Has Made Us a Kingdom: James Strang and the Midwest Mormons, Signature Books, 2006.
Rapaz, se fizer um infográfico dessas personalidades, vai ser uma coisa bem interessante. Eu não sabia que tinha tantos e nem tantos detalhes sobre estes… Por que será que essas informações históricas são tão desconhecidas?
Pelo que entendi até agora, esse negócio de “crise de sucessão” foi bem mais abrangente e envolveu muito mais lugares, pessoas e eventos do que eu pensava. No começo achava apenas que Rigdon tinha formado uma nova Igreja, nunca tinha entendido a participação de JS III nesta história, nem sabia nada dos Strangitas (pois considerava a mesma coisa que o pessoal de JS III)… e pra completar ainda tem esses mais ‘modernos’, como Warren Jeffs. Agora, eis que surge este, que sequer eu imaginava existir.
Teria a SUD queimado e destruído qualquer registro desses eventos a fim de evitar seu conhecimento entre seus correligionários?
Na verdade Gerson, aquele famoso ditado que diz: A história é contada pelos “vitoriosos” e nunca pelos “vencidos”, se aplica bem em relação a igreja SUD e demais denominações mórmons. Neste caso a mais rica e poderosa conta a história do jeito que quer. Talvez, se um desses grupos fossem maior que a igreja SUD, tivéssemos outra história correndo em nosso meio. De qualquer forma é muito bacana observarmos estes nossos irmãos que partilham de nossa história de fé, que acreditam em Joseph como vidente e no livro de mórmon como obra divina. Este conhecimento nos liberta da “caixinha” e nos faz refletir que os caminhos de Deus são maiores e mais amplos do que nossos pensamentos exclusivistas, preconceituosos e mesquinhos.