Nesta semana (dia 27) comemoramos o aniversário de 45 anos de quando o Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque devolveu para A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias os papiros originais usados por Joseph Smith, jr., para produzir o Livro de Abraão.
Esse evento foi comemorado com grande antecipação e efusivos sentimentos de antecipação, esperança, e até uma sensação de validação. Por mais de um século, estes antigos documentos haviam sido dados como perdidos, e subitamente em 1967 não apenas haviam sido re-encontrados, mas haviam sido retornados à Igreja!
Contudo, tão logo passou a euforia e o regozijo inicial, recaiu sobre a Igreja o que apenas pode ser descrito como “desconforto” sobre o documento, levando a quase silêncio da instituição oficial, e a décadas de esforços intensos (e inúteis) de dúzias de apologistas.
Como houve bastante interesse em comentários passados, em outros posts, sobre discutir a importância desse achado arqueológico, eu acho que essa data importante é a perfeita oportunidade (desculpa) para abrirmos espaço para essa discussão. Segue abaixo apenas uma breve introdução ao tema.
Entre 1798 e 1801, o Primeiro Cônsul Francês Napoleão Bonaparte embarcou na Campanha do Mediterrâneo para estabelecer controle de interesses franceses em rotas de comércio. Durante essa campanha, as forças francesas invadiram (e destruíram) o império Mameluco que controlava o Egito, apenas para serem rechaçados subsequentemente pelos ingleses.
Apesar do enorme fracasso militar e comercial, a expedição teve a boa-aventura de um grande sucesso: Napoleão incluiu na campanha militar um gigantesco grupo de cientistas e acadêmicos (167 intelectuais) com o explícito mandato de espalhar princípios do Iluminismo (i.e., as sementes do que hoje chamamos de Ciência e Racionalismo) e para realizar investigações e experimentos.
O contato súbito e inicial com as ruínas do passado egípcio imediatamente fascinaram muitos destes intelectuais que, por sua vez, trouxeram esse fascínio para a Europa Continental (e, depois, para a Grã-Bretanha) e estudos, investigações, pilhagens, e comércio de relíquias floresceram durante quase todo o século XIX.
Esse fervor cultural alastrou-se para os Estados Unidos, e um período chamado de “Egitomania” espalhou-se como fogo por toda a cultura Norteamericana durante todo o século XIX, afetando todos os aspectos culturais: literatura, arquitetura, arte, e até a academia.
Entre 1818 e 1822, um dos centenas de escavadores e pilhadores no Egito chamado Antonio Lebolo encontrou várias múmias e papiros, entre outras relíquias, em Tebes, e consequentemente foram removidas para a Europa para comercialização. Onze destas múmias, com vários “livros” de papiro (em rolos), foram parar nas mãos de Michael Chandler na Cidade de Nova Iorque no começo dos anos 1830. Conhecedor do lucrativo mercado gerado pela “Egitomania” nos EUA, Chandler passou a viajar pelo país, expondo e vendendo as relíquias egípcias.
Durante o verão de 1835, Chandler transitou pelo estado de Ohio. Ouvindo rumores dos feitos de Joseph Smith, que teria aprendido a decifrar e traduzir os caracteres da escrita egípcia (até então, feito impossível fora de um restrito círculo de acadêmicos franceses, e largamente desconhecido pelo público em geral). Curioso para averiguar as habilidades de Smith, ou espertamente pronto para lucrar com a óbvia fascinação de Smith com o Egito Antigo, Chandler foi até Kirtland encontrar-se com o Profeta Mórmon.
O encontro foi frutífero para ambas partes. Smith imediatamente anunciou que os papiros eram documentos originalmente escritos, de próprio punho, por Abraão, além de José (bisneto de Abraão), e o terceiro era um conto sobre a Princesa Katumin. Considerando os achados arqueológicos como sagrados, Smith iniciou negociações com Chandler para compra-los deste, e angariando uma pequena fortuna entre amigos e membros (estimados entre 50 e 100 mil dólares atuais), a Igreja adquiriu 4 múmias e 4 papiros (3 rolos ou livros, e 1 hipocéfalo).
Joseph Smith passou a expor as múmias como fazia Chandler, cobrando modestos preços de admissão de curiosos e viajantes, porém mais importantemente, começou o processo de tradução pelo Livro de Abraão, usando Oliver Cowdery e William Phelps como escrivões. Smith montou um caderno de traduções, com decifração dos hieróglifos egípcios e anotações sobre as regras gramaticais e pronuncias, e durante vários meses, produziu o que hoje chamamos de Livro de Abraão. Nem o rolo de José, nem o rolo da Princesa Katumin, foram agraciados com tentativas ou esboços de tradução.
A Igreja publicou o Livro de Abraão em 1842, em forma seriada, no jornal oficial Times and Seasons, incluindo cópias das ilustrações (com explicações por Smith) e do Hipocéfalo (também com explicações de Smith), e subsequentemente no jornal oficial da Igreja na Europa Millennial Star 5 e 6 meses depois. Em 1878, a Igreja publicou o Livro de Abraão completo numa coletânea chamada ‘A Pérola de Grande Valor’, que dois anos depois foi canonizada como Escritura Sagrada no jubileu de 50 anos.
Enquanto isso, os papiros originais (junto com as múmias) haviam permanecido em posse da família Smith, que optou por permanecer em Nauvoo, Illinois, durante a migração para o Oeste. Em 1856, Emma Smith decidiu vender os artefatos egípcios para Abel Combs, que os vendeu para o Museu de Saint Louis. Este museu faliu, e vendeu o grosso de sua coleção para o Museu de Chicago, e este, havendo multiplicidade de peças egípcias, vendeu a coleção Smith para o Museu Wood, também localizado em Chicago.
Em Outubro de 1871, uma conflagração desconhecida iniciou um incêndio que destruiu uma enorme parte da cidade, matando 300 pessoas e deixando mais de 100 mil desabrigados (um terço da população total de Chicago). Entre os prédios afetados, o Museu Wood e, presumidamente com ele, a coleção Smith e os livros de Abraão e José.
Aparentemente, em 1878 Apóstolos Orson Pratt e Joseph F. Smith viajaram por Chicago na tentativa de averiguar a sobrevivência dos papiros após a destruição do Museu Wood, e caso positivo compra-los de volta, mas sem sucesso.
Papiros destruídos pelo fogo. Fim de história.
Fim?
Em 1966, um professor da Universidade de Utah Aziz Atiya estava no Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque fazendo pesquisa para um livro quando, fortuitamente, bateu os olhos num papiro comum com uma ilustração comum. Porém, esta ilustração continha uma alteração nada comum: o papiro estava colado numa folha de papel moderna, e faltando-lhe alguns pedaços no papiro original com falhas na ilustração, desenhos haviam sido completados no papel moderno! Atiya, que não era Mórmon mas que havia morado em Utah por décadas, chocou-se com uma percepção súbita: este era o papiro que Joseph Smith havia usado (e desenhado) para o seu Livro de Abraão!
Angustiado e surpreso com sua descoberta, Atiya vasculhou a pilha de documentos onde este papiro havia sido arquivado e a sorte lhe continuou a sorrir: não só encontrou mais fragmentos de papiros que haviam sido posse de Smith (incluindo as demais ilustrações usadas no Livro de Abraão), Atiya encontrou a carta escrita e assinada por Emma Smith para certificar que estes seriam os papiros usados por Joseph Smith!
Como os papiros foram parar no Museu de Nova Iorque foi, tanto quanto o achado em si, uma história interessante a se destrinchar. Para encurtar uma longa estória, parece que Abel Combs não vendeu *esses* documentos e *estas* múmias para o Museu de Saint Louis (mas outros papiros e outras múmias), e reteve os papiros de Joseph Smith consigo, deixando-os para a enfermeira que cuidou dele em seus últimos meses de vida. A filha (e neto) desse enfermeira venderam os artefatos ao museu em Nova Iorque após anos (décadas) de negociações.
As negociações e comunicações entre Atiya, a Primeira Presidência da Igreja, e os curadores do Museu, também tardaram, mas não duraram pouco mais de um ano, até que no dia 27 de Novembro de 1967 os papiros foram devolvidos para a Igreja.
Durante um pouco mais de um ano de negociações e conversas secretas confidenciais, algumas das Autoridades Gerais expressaram sentimentos de esperança e antecipação. Por exemplo, durante as negociações, N. Eldon Tanner da Primeira Presidência afirmou que a Igreja tinha enorme interesse nos papiros e que pagaria “qualquer preço” por eles.
A própria Primeira Presidência (David McKay, Hugh Brown, Eldon Tanner) escreveu:
Essa coleção é muito significante porque ela cria um elo distinto com a história inicial da Igreja e apoia completamente a asserção feita pelo Profeta Joseph Smith. Esses documentos importantes… serão valorizados e bem cuidados e ajudarão em pesquisas futuras e adicionar evidências à autenticidade da Pérola de Grande Valor.
Milton Hunter cita, ainda, N. Eldon Tanner regozijando que:
…o fato importante é que agora temos parte do manuscrito original do Livro de Abraão e que certamente comprova o fato de que Joseph Smith escreveu o Livro de Abraão de manuscritos em papiros antigos…
Contudo, não foi isso que ocorreu. Tão logo a Igreja recebeu os papiros, convocou acadêmicos e estudiosos (principalmente da BYU) para analisa-los, e o que se percebeu imediatamente e inequivocadamente foi que os documentos de onde Smith “traduziu” o Livro de Abraão simplesmente não dizem nada sobre Abraão, mas sim são textos funerários comuns. Ademais, as ilustrações foram reconstruídas de maneira equivocadas, completamente sem sentido, e os textos das ilustrações não correspondem em nada às descrições oferecidas por Smith.
Junte-se a isso o fato de que por um século críticos haviam previsto as lacunas nas ilustrações (corretamente) e que o alfabeto e o dicionário de Smith não correspondiam ao que acadêmicos haviam aprendido sobre egípcio antigo desde então (corretamente), e a Igreja viu-se na posição desconfortável de um achado histórico que desconfirma, ao invés de confirmar, afirmações históricas sobre o passado fundacional da Igreja. Inclusive, é muito possível que, movidos ainda pelo desdobramento negativo desse evento, as Autoridades Gerais tenham se esforçado tanto para comprar e esconder documentos históricos sensíveis de modo a se exporem excessivamente ao engodo de Mark Hoffman 15 anos depois.
No frigir dos ovos, a recuperação dos papiros não é hoje celebrada oficialmente. Talvez porque os papiros não apoiam a asserção de que Joseph Smith tenha encontrado, fortuitamente, escritos do profeta Abraão e corretamente traduzido-os no livro que hoje se encontra no cânone SUD oficial. Pelo contrário, os papiros demonstram que Smith “traduziu” o Livro de Abraão de um texto funerário 3000 anos mais novo que Abraão, sem quaisquer conhecimentos da língua ou cultura egípcias antiga.
Como lidar com essa constatação segue sendo um desafio para Mórmons modernos, e claramente, para a Igreja SUD. De qualquer modo, 45 anos atrás esta semana foi um marco importante na história, e para o futuro, da Igreja Mórmon.
Bibliografia
Larson, Stan. Quest for the Gold Plates: Thomas Stuart Ferguson’s Archaeological Search for The Book of Mormon. Freethinker Press, 2004.
Peterson, Donl. The Story of the Book of Abraham. Mummies, Manuscripts, and Mormonism. Deseret Book, 1995.
Peterson, Donl. Antonio Lebolo: Excavator of the Book of Abraham, em BYU Studies, 1991.
Rhodes, Michael. The Hor Book of Breathings: A Translation and Commentary, Studies in the Book of Abraham. FARMS, 2002.
Ritner, Robert. The Joseph Smith Egyptian Papyri: A Complete Edition. Signature Books, 2012.
Esta é uma reportagem da BBC e uma entrevista com o Apóstolo Holland a respeito desse e outros assuntos: http://www.youtube.com/watch?v=XNHM7I1WJIk
1) Alguém se aventuraria a fazer um tradução escrita da reportagem com o Elder Holand?
Vídeo compartilhado pelo Philip: http://www.youtube.com/watch?v=XNHM7I1WJIk
2) Alguém se aventuraria a fazer o mesmo pelos escritos de defesa publicados na “Improvement Era” nos meses de fevereiro a setembro de 1913 da qual citou o manual História da Igreja na Plenitude dos Tempos?
Artigos compartilhado pelo Marcello: http://gospelink.com/library/contents/1436
Com certeza, seria uma ótima contribuição ao tema discutido…
Marcos disse:
“…mesmo que as evidências da nova história apontem contra a veracidade do Livro de Abraão, eu não deixarei de tê-lo como verdadeiro e sagrado.” (05/12/2012 a 5:48 pm)
Irmão, você está confundindo as coisas, não é isso, não é o que o artigo propõe. E o que eu quis dizer foi o seguinte:
“a nova história diz que esses registros que Joseph recebeu de Chandler não são sagrados, mas sim, papiros funerários comuns.” (04/12/2012 a 6:45 pm)
Ou seja, que as evidências históricas apontam contra a autenticidade dos PAPIROS – como sendo escritos do próprio punho de Abraão e o relato de Joseph Smith ao dizer que era – e não, contra “a veracidade do livro de Abraão” e “o seu teor sagrado”, ou contra o chamado profético de Joseph. Capitou?
Para você, o conteúdo do Livro de Abraão que consta em Pérolas de Grande Valor é verdadeiro e sagrado? Estou fazendo esta pergunta porque talvez eu não tenha capitado o que você quis dizer.