Profetas Mórmons: William Bickerton

Profetas vivos são a parte mais idiossincrática da história, da teologia e da tradição mórmons. Tanto que o primeiro hinário mórmon, de 1835, continha uma estrófe celebrando a natureza ímpar desse quesito fundamental:

“Uma igreja sem um Profeta,
Não é a igreja para mim,
Ela não tem um cabeça para liderá-la,
Não pertenceria a uma assim.”¹

O conceito de profetas vivos permanece firme e forte, com mórmons cantando hoje “Graças damos, ó Deus, por um profeta; Que nos guia no tempo atual”. A celebração, e reverência, de profetas passados é quase tão forte quanto o culto aos profetas vivos atuais, inspirando publicações de biografias autorizadas e livros didáticos para mantê-los vivos na memória coletiva.

Detalhe de O Profeta Isaías, por Michelangelo (Mural na Capela Cistina)

Detalhe de O Profeta Isaías por Michelangelo (afresco no teto da Capela Sistina)

Não obstante, seja por divergência de tradições, seja por falta de interesse ideológico ou eclesiástico, ou por apatia literária ou historiográfica, muitos profetas da história e tradição mórmons são ignorados ou esquecidos. Esta série de artigos servirá para explorar as biografias e os legados desses líderes mórmons com sucintas introduções a seus chamados proféticos.

O artigo de hoje discutirá: William Bickerton.

William Bickerton nasceu na região de Northumberland, no nordeste inglês, em janeiro de 1815. Ainda na adolescência, Bickerton emigrou aos Estados Unidos em busca de oportunidades de emprego, na mesma onda de emigrantes fugindo da severa depressão econômica que assolou o campo inglês na primeira metade do século 19 que levou tantos conversos ingleses para a Nauvoo de Joseph Smith e o Utah de Brigham Young.

Enquanto isso, na cidade mórmon de Nauvoo, o Primeiro Conselheiro na Primeira Presidência, Sidney Rigdon, encontrava-se em constante atrito com o Profeta Joseph Smith. Smith havia proposto casamento plural secreto à filha de 19 anos de Rigdon sem sequer conversar com ele ou admitir publicamente a prática de poligamia, o que ofendera a honra da família Rigdon. Além disso, Smith tentava há anos convencer Rigdon para lhe transferir o lucrativo emprego de chefe dos correios de Nauvoo para si, porém sem sucesso. Resolvendo dois problemas com uma única e simples canetada, Smith enviou Rigdon para Pittsburgh, no estado da Pennsylvania, em missão e para presidir um ramo lá.

Quando Smith foi assassinado em junho de 1844, Rigdon retornou à Nauvoo como o único Presidente remanescente da Primeira Presidência e o único ordenado como “Profeta, Vidente, e Revelador”. Com sua autoridade eclesiástica inatacável, e com o apoio de luminários como o Presidente da Estaca central, William Marks, e a viúva do Profeta, Emma Smith, Rigdon retornou para assumir a liderança da Igreja.

Não obstante, Brigham Young conseguiu articular para os Doze Apóstolos, e consequentemente para si, a anuência de uma pequena maioria de membros presentes na famosa reunião de 8 de agosto de 1844, para aceitá-los como a liderança temporária da Igreja. Todavia, a liderança de Young e os Apóstolos ainda permanecia, nesse momento, em terreno instável, e a notória presença de Rigdon, em conjunção a seu status eclesiástico superior ao dos Apóstolos, causava-lhe consternação e apreensão. Então, em 8 de setembro, exato um mês após o golpe dos Apóstolos, Young organizou uma reunião através do Bispo Newel Whitney e excomungou Rigdon. Por insubordinação e por violar os regulamentos internos da Igreja, Rigdon excomungou metade do Quórum dos Doze, porém não foi capaz de defender sua ação publicamente pois sentiu-se fisicamente ameaçado por Danitas leais a Young (que Young havia, convenientemente, empossado como a recém formada Polícia de Nauvoo) e fugiu de volta para a Pennsylvania para salvar a vida.

De volta em Pittsburgh, Rigdon anunciou a excomunhão dos demais Apóstolos e reorganizou a Primeira Presidência no dia 6 de abril de 1845, alterando o nome de incorporação da Igreja para o seu nome original de 1830, Igreja de Cristo (Young também alteraria o nome de incorporação da Igreja por motivos econômicos e jurídicos). Bickerton, vivendo em Pittsburgh nessa época, converteu-se ao mormonismo através das pregações de Rigdon, sendo prontamente ordenado Élder, e  posteriormente ainda em 1845, Evangelista.

William Bickerton

Na Conferência Geral de 1845, Rigdon anunciou a mudança da sede da Igreja para um novo centro de coligação, onde os mórmons construiriam uma sociedade comunitária no estilo de Sião e Ordem Unida, próximo a cidade de Greencastle, Pennsylvania. Como todas as outras experiências comunitárias mórmon, antes e depois, essa também fracassou espetacularmente, resultando em membros desafetos e desiludidos. Em 1847, a Igreja se racharia e membros proemintentes como William E. McLellin e Benjamin Winchester migrariam para reorganizar a Igreja sob a liderança da Testemunha do Livro de Mórmon David Whitmer. Bickerton, porém, manteve-se fiel ao mormonismo e a sua fé, e anotou em seu diário visões assegurando-lhe que a Igreja de Cristo não seria destruída pelos erros dos homens.

Fiel às suas crenças e às suas visões, Bickerton encontrou-se um crente sem uma igreja. Em março de 1851, uniu-se à Igreja SUD sob a liderança de Brigham Young na cidade de Elizabeth, Pennsylvania, tornando-se um Élder na sua congregação local. Contudo, em 1852 ordens de Utah chegaram a ele informando-lhe que deveria ensinar e praticar poligamia. Acreditando que tal doutrina era terminantemente incompatível com os ensinamentos do Livro de Mórmon, Bickerton decidiu abandonar a Igreja SUD de Young imediatamente.

Mantendo-se ativo entre mórmons na região, Bickerton estabeceleu contato com inúmeras comunidades de mórmons espalhados pelos estados de Pennsylvania, Virginia, e Ohio, e em julho de 1862 presidiu sobre uma conferência dessas congregações na cidade de Elizabeth, Pennsylvania (nos arredores de Pittsburgh), onde reorganizou a Primeira Presidência e o Quórum dos Doze Apóstolos e incorporou-se legalmente como A Igreja de Jesus Cristo. Em conferência geral de membros da Igreja e portadores do sacerdócio em seus respectivos quóruns, Bickerton foi apoiado e sustentado como “Profeta, Vidente, e Revelador” e sucessor legal de Joseph Smith.

Amado e reverenciado pelos membros da Igreja, Bickerton liderou A Igreja de Jesus Cristo até 1880, quando foi desassociado sob acusações de adultério por uma membro do Kansas, e foi sucedido ordeiramente por William Cadman. Bickerton manteve indefatigamente sua inocência, porém manteve-se fiel e ativo na Igreja, sendo restaurado em 1902, pouco antes de falecer em 1905, aos 90 anos de idade.

A Igreja de Jesus Cristo, reorganizada e liderada por Bickerton por 18 anos, e para a qual ele dedicou os últimos 43 anos de sua vida, permanece até hoje sediada em Monongahela, Pennsylvania (na região metropolitana de Pittsburgh).

Entre os principais legados de Bickerton à Igreja destaca-se o foco singular nas escrituras, a saber, a Bíblia Sagrada e o Livro de Mórmon, implicando na aceitação ou na rejeição de quaisquer crenças ou dogmas baseando-se única e exclusivamente na harmonia com a autoridade textual desses dois livros canônicos. Crenças como poligamia, pluralidade de deuses, casamento celestial, batismo pelos mortos, etc., são rejeitados por não serem pregados pelas, ou compatíves com, as escrituras. Por outro lado, por serem citados ou ensinados por elas, ordena-se mulheres diáconas, pratica-se a ordenança do lava-pés, e enfatiza-se os dons espirituais entre os membros e líderes, como línguas, curas, visitações angélicas, profecias, etc.²

Gozando da associação de aproximadamente 20 mil membros mundo afora³, A Igreja de Jesus Cristo orgulha-se¹² de seu vínculo histórico, espiritual, e religioso direto ao Profeta Joseph Smith, através de seu único sucessor legal, Sidney Rigdon, e o sucessor deste, William Bickerton.¹³


Notas
[1] Hinário SUD (1835); Hino removido a pedido de Brigham Young em 1844, citado em Quest for Empire: The Political Kingdom of God and the Council of Fifty in Mormon History por Klaus J. Hansen.
[2] A título de ilustração, A Igreja de Jesus Cristo sempre recusou discriminação racial, quando ainda era uma prática muito comum nos Estados Unidos, especialmente no Sul dos EUA (como Virginia) e entre os mórmons da Igreja SUD sob Brigham Young.
[3] Apenas 15% de seus membros são norte-americanos.
[12] A título de curiosidade, o famoso e icônico roqueiro Alice Cooper cresceu na Igreja de Jesus Cristo.
[13] A Igreja de Jesus Cristo rejeita o epíteto “mórmon” justamente para se distanciar das “doutrinas mórmons” promulgadas por Young e seus herdeiros religiosos.

Referências

Bringhurst, Newell e Hamer, John (eds.), Scattering Of The Saints: Schism Within Mormonism, John Whitmer Books, 2007.

Bushman, Richard, Joseph Smith: Rough Stone Rolling, Alfred A. Knopf, 2005.

Entz, Gary, ‘The Bickertonites: Schism and Reunion in a Restoration Church, 1880-1905‘ em Journal of Mormon History vol. 32, 2006

Hansen, Klaus, Quest for Empire: The Political Kingdom of God and the Council of Fifty in Mormon History, Michigan State University Press, 1967.¹

Launius, Roger, Joseph Smith III: Pragmatic Prophet, University of Illinois Press, 1995.

Launius, Roger e Thatcher, Linda (eds.), Differing Visions: Dissenters in Mormon History, University of Illinois Press, 2010.

Newell, Linda e Avary, Valeen, Mormon Enigma: Emma Hale Smith, University of Illinois Press, 1994.

Quaife, Milo, The Kingdom of Saint James: A Narrative of the Mormons, Yale University Press, 1930.

Shields, Steven, Divergent Paths of the Restoration: A History of the Latter Day Saint Movement, Restoration Research, 2001.

Speek, Vickie, God Has Made Us a Kingdom: James Strang and the Midwest Mormons, Signature Books,  2006.

17 comentários sobre “Profetas Mórmons: William Bickerton

      • Na sua visão, o profeta Monson não é um profeta ou não é o único profeta verdadeiro? Somente os profetas mormons podem ser considerados verdadeiros, ou profetas de outras religioes tambem o podem?

      • Ser “considerados verdadeiros” é uma questão de crença religiosa individual. Nós não tomamos posições religiosas aqui, ao menos não institucionalmente. Cada um tem a sua opinião e a sua crença religiosa pessoal e nós respeitamos todas elas nesse espaço.

        Nós nos dedicamos a estudos histórico-acadêmicas nesse site. Esses homens se consideram ou se consideravam, e são ou eram considerados por seus seguidores, como “profetas verdadeiros”. Essas considerações dessas pessoas, sua evolução histórica através do tempo, e seu impacto social para esses e outros grupos, são o real objeto de estudo aqui.

    • Angelo,
      Este é um artigo sobre história do mormonismo, e não um artigo apologético sobre ” Qual igreja é verdadeira?”.
      O propósito é trazer ao conhecimento dos leitores os diversos grupos mormons que surgiram a partir da morte de Joseph Smith, pelo fato deste não ter deixado regras para sua sucessão.
      Não há, da parte do autor do artigo, qualquer preocupação em apontar qual seria, entre os “profetas” que surgiram no vácuo de poder criado pela morte de J.S., qual seria o “verdadeiro”.

    • Historicamente os verdadeiros Profetas sao geralmente rejeitados, chamados de apostatas e na maioria das vezes eles nao pertencem a nenhuma instituicao religiosa, Alguns exemplos sao Isaias, Moises, Lehi, Nefi, Abinadi, Samuel o Lamanita, Joao Batista, o proprio Jesus Cristo e mesmo Joseph Smith. Deus pode e chama quem ele quer independente de instituicoes religiosas, provavelmente quando Deus chamar novamente um Profeta novamente, ele nao sera reconhecido pelos membros da igreja.

Deixar mensagem para quintinomelo Cancelar resposta

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.