A conversão de Saulo de Tarso, popularmente conhecido com o Apóstolo Paulo, é uma narrativa popular entre cristãos há quase dois milênios e uma das estórias mais recontadas entre mórmons e por missionários SUD.
Narrando a estória de como um judeu fanaticamente religioso e opositor da nascente fé cristã, Saulo teria visto o ressuscitado Jesus Cristo e dele recebido uma comissão para apoiar e disseminar a Igreja de Cristo na Terra, e esta narrativa serve como fundamentação epistemológica central das fés cristã em geral, e mórmon em específica.

A caminho de Damasco, famosa pintura barroca por Michelangelo da Caravaggio (1571-1610)
Não obstante, existem no registro histórico apenas 4 relatos da conversão de Saulo documentados, dos quais apenas dois contemporâneos a ele.
Ei-los em ordem cronológica aproximada:
¤ ca. 54 E.C.
A epístola aos Gálatas é uma das quatro cartas de Paulo conhecidas como Hauptbriefe, um termo alemão para “cartas principais”, por serem as universalmente aceitas por acadêmicos como autênticas.
Dirigidas provavelmente aos gálatas vivendo no norte da Galácia, nas regiões montanhosas na zona central da Anatólia (atualmente Turquia), a carta demonstra que Paulo estava em direto conflito com outros missionários cristãos enviados pelos Apóstolos em Jerusalém. Nota-se pelo texto da carta que os Apóstolos enviaram missionários para convencer os conversos de Paulo na Galácia que o Evangelho que Paulo pregava era incompleto, pois cristãos deveriam guardar os mandamentos e as regras do Torá. Um dos argumentos centrais e mais convincentes dos Apóstolos era a questão de autoridade, especialmente a questão que Tiago, Pedro, e companhia, teriam recebido autoridade especial de Cristo e que Paulo lhes era inferior ou subordinado. Paulo dedica, portanto, uma porção importante da carta para explicar de onde vem a sua autoridade e equipará-la à autoridade dos demais Apóstolos em Jerusalém [inclusive escoriando e escrachando as crenças de Tiago e Pedro, amaldiçoando-os].
Para tanto, Paulo narra a sua conversão milagrosa, demonstrando a origem carismática de sua autoridade apostólica:
“Irmãos, quero que saibam que o evangelho por mim anunciado não é de origem humana. Não o recebi de pessoa alguma nem me foi ele ensinado; ao contrário, eu o recebi de Jesus Cristo por revelação. Vocês ouviram qual foi o meu procedimento no judaísmo, como perseguia com violência a igreja de Deus, procurando destruí-la. No judaísmo, eu superava a maioria dos judeus da minha idade, e era extremamente zeloso das tradições dos meus antepassados. Mas Deus me separou desde o ventre materno e me chamou por sua graça. Quando lhe agradou revelar o seu Filho em mim para que eu o anunciasse entre os gentios, não consultei carne e sangue.”
¤ ca. 55 E.C.
A epístola aos Coríntos hoje conhecida como I Coríntios é uma das quatro cartas de Paulo conhecidas como Hauptbriefe, um termo alemão para “cartas principais”, por serem as universalmente aceitas por acadêmicos como autênticas.
Dirigidas aos cristãos na cidade grega de Corinto (não confundir com a cidade mineira de Corinto!), a carta demonstra que Paulo estava preocupado com alterações teológicas e filosóficas introduzidas pelos próprios cristãos gregos a partir de costumes e crenças importadas do paganismo autóctone, e de divisões de classe entre os crentes. Uma das alterações teológicas introduzidas referia-se à crença na ressurreição, provavelmente (a julgar pelas respostas de Saulo) uma visão simbólica e não literal do conceito de ressurreição.
Para tanto, Paulo narra a sua conversão milagrosa, demonstrando a literalidade da ressurreição de Cristo:
“Pois o que primeiramente lhes transmiti foi o que recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou no terceiro dia, segundo as Escrituras, e apareceu a Pedro e depois aos Doze. Depois disso apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma só vez, a maioria dos quais ainda vive, embora alguns já tenham adormecido. Depois apareceu a Tiago e, então, a todos os apóstolos; depois destes apareceu também a mim, como a um que nasceu fora de tempo.”
¤ entre 90-110 E.C.
O livro atualmente conhecido como Atos dos Apóstolos foi escrito por um autor anônimo para servir de segunda parte do seu primeiro livro, atualmente conhecido como o Evangelho de Lucas. Em realidade, ambos livros foram compostos provavelmente para serem lidos in tandem, ou seja, um serve como “parte 1” e outro como “parte 2” de uma narrativa única.
A atribuição de autoria desses livros a Lucas é uma tradição posterior, iniciada no segundo século da Era Comum por autores cristãos como Clemente, Irineu, e Tertuliano. Nenhum deles teria conhecido o epônimo Lucas, e sequer reinvidicaram ter conhecido alguém que o teria conhecido. A atribuição, contudo, lhes parecia lógica por evidências internas aos textos em si.
Não obstante, estudos acadêmicos nos últimos 200 anos demonstram que tais “evidências internas” não se sustentam ao escrutínio literário com ferramentas linguísticas modernas. Por exemplo, uma piada famosa no meio acadêmico faz alusão à tese de doutorado de 1919 por Henry Cadbury entitulado ‘O Estilo e o Método Literário de Lucas‘, que essencialmente demonstrou que o autor de Lucas-Atos jamais teria sido um médico: “Cadbury ganhou o seu doutorado ao extirpar Lucas do seu.”
Para o autor de Lucas, os autores do Evangelho de Marcos e do Evangelho de Mateus não entendiam a real natureza do Cristianismo e erraram em suas narrativas de Jesus e do nascimento da fé cristã. Especialmente com relação aos Apóstolos, que para Marcos e Mateus eram a fundação (“rocha”) da nova religião, e para Lucas serviram apenas de testemunhos da missão de Jesus e agentes precursores para a mais importante missão de Paulo (como João Batista fora precursor de Jesus).
Para tanto, o autor de Lucas-Atos narra a conversão milagrosa de Paulo, demonstrando a supremacia carismática de seu chamado apostólico:
“Enquanto isso, Saulo ainda respirava ameaças de morte contra os discípulos do Senhor. Dirigindo-se ao sumo sacerdote, pediu-lhe cartas para as sinagogas de Damasco, de maneira que, caso encontrasse ali homens ou mulheres que pertencessem ao Caminho, pudesse levá-los presos para Jerusalém. Em sua viagem, quando se aproximava de Damasco, de repente brilhou ao seu redor uma luz vinda do céu. Ele caiu por terra e ouviu uma voz que lhe dizia: “Saulo, Saulo, por que você me persegue?”
Saulo perguntou: “Quem és tu, Senhor?”
Ele respondeu: “Eu sou Jesus, a quem você persegue. Levante-se, entre na cidade; alguém lhe dirá o que você deve fazer”.
Os homens que viajavam com Saulo pararam emudecidos; ouviam a voz mas não viam ninguém.
Saulo levantou-se do chão e, abrindo os olhos, não conseguia ver nada. E os homens o levaram pela mão até Damasco. Por três dias ele esteve cego, não comeu nem bebeu.
Em Damasco havia um discípulo chamado Ananias. O Senhor o chamou numa visão: “Ananias!”
“Eis-me aqui, Senhor”, respondeu ele.
O Senhor lhe disse: “Vá à casa de Judas, na rua chamada Direita, e pergunte por um homem de Tarso chamado Saulo. Ele está orando; numa visão viu um homem chamado Ananias chegar e impor-lhe as mãos para que voltasse a ver”.
Respondeu Ananias: “Senhor, tenho ouvido muita coisa a respeito desse homem e de todo o mal que ele tem feito aos teus santos em Jerusalém. Ele chegou aqui com autorização dos chefes dos sacerdotes para prender todos os que invocam o teu nome”.
Mas o Senhor disse a Ananias: “Vá! Este homem é meu instrumento escolhido para levar o meu nome perante os gentios e seus reis, e perante o povo de Israel. Mostrarei a ele o quanto deve sofrer pelo meu nome”.
Então Ananias foi, entrou na casa, pôs as mãos sobre Saulo e disse: “Irmão Saulo, o Senhor Jesus, que lhe apareceu no caminho por onde você vinha, enviou-me para que você volte a ver e seja cheio do Espírito Santo”.
Imediatamente, algo como escamas caiu dos olhos de Saulo e ele passou a ver novamente. Levantando-se, foi batizado e, depois de comer, recuperou as forças. Saulo passou vários dias com os discípulos em Damasco.”
¤ entre 90-110 E.C.
O livro dos Atos dos Apóstolos inclui um relato distinto e diferente do mesmo evento.
A hipótese mais plausível e mais aceita no meio acadêmico é que, assim como “Lucas” utilizou Marcos (e Mateus) como “fontes” (i.e., copiou grandes partes dos textos deles para inclusão no seu próprio texto sem qualquer atribuição), ele teria utilizado outro texto cristão hoje desconhecido para inclusão no Atos dos Apóstolos. Essa inclusão de outro texto faz-se mais óbvia na alternância intermitente entre o narrador na terceira pessoa (e.g., ele disse isso, eles fizeram aquilo, etc.) e o narrado na primeira pessoa (e.g., eu disse isso, nós fizemos aquilo, etc.). Postula-se que as chamadas “narrativas em nós” viriam de um texto do mesmo gênero de Atos dos Apóstolos (e há vários outros textos cristãos do mesmo gênero, como Atos de Pedro, Atos de João, Atos de Paulo, Atos de André, Atos de Pedro e os Doze, Atos de Tomé, e até Atos de Pilatos) que Lucas “copiou” assim como ele copiou de “Marcos” e “Mateus”, porém cujo texto se perdeu para posteridade.
Sendo assim, o autor de Lucas-Atos ou o autor original narra a conversão milagrosa de Paulo:
“Então Paulo disse: “Sou judeu, nascido em Tarso da Cilícia, mas criado nesta cidade. Fui instruído rigorosamente por Gamaliel na lei de nossos antepassados, sendo tão zeloso por Deus quanto qualquer de vocês hoje. Persegui os seguidores deste Caminho até a morte, prendendo tanto homens como mulheres e lançando-os na prisão, como o podem testemunhar o sumo sacerdote e todo o Sinédrio; deles cheguei a obter cartas para seus irmãos em Damasco e fui até lá, a fim de trazer essas pessoas a Jerusalém como prisioneiras, para serem punidas.
Por volta do meio-dia, eu me aproximava de Damasco, quando de repente uma forte luz vinda do céu brilhou ao meu redor. Caí por terra e ouvi uma voz que me dizia: ‘Saulo, Saulo, por que você está me perseguindo?’ Então perguntei: Quem és tu, Senhor? E ele respondeu: ‘Eu sou Jesus, o Nazareno, a quem você persegue’.
Os que me acompanhavam viram a luz, mas não ouviram a voz daquele que falava comigo.
Assim perguntei: Que devo fazer, Senhor? Disse o Senhor: ‘Levante-se, entre em Damasco, onde lhe será dito o que você deve fazer’. Os que estavam comigo me levaram pela mão até Damasco, porque o resplendor da luz me deixara cego. Um homem chamado Ananias, piedoso segundo a lei e muito respeitado por todos os judeus que ali viviam, veio ver-me e, pondo-se junto a mim, disse: ‘Irmão Saulo, recupere a visão’. Naquele mesmo instante pude vê-lo.
Então ele disse: ‘O Deus dos nossos antepassados o escolheu para conhecer a sua vontade, ver o Justo e ouvir as palavras de sua boca. Você será testemunha dele a todos os homens, daquilo que viu e ouviu. E agora, que está esperando? Levante-se, seja batizado e lave os seus pecados, invocando o nome dele’.”
Uma colocação clássica desse problema é: “Quando Saulo se converteu no caminho de Damasco, quem viu a luz, e quem ouviu a voz?”
NOTAS
[1] Um equívoco popular entre cristãos, e mórmons, é achar que Saulo mudou de nome para Paulo após sua conversão para o Cristianismo. Saulo e Paulo sempre foram, ambos, seus nomes. Saulo era seu nome em hebraico e era utilizado por judeus tanto na sinagoga, como pelos falantes de aramaico na Palestina. Paulo era seu nome em grego e latim, e era utilizado pelo resto do mundo civilizado Império Romano afora. Uma analogia comum hoje seria como alguns mórmons brasileiros, especialmente manuais e materiais impressos da Igreja SUD até os anos 1990, chamam Joseph Smith de José Smith. Mesmo nome em línguas diferentes. Os Apóstolos de Jerusalém certamente continuaram chamando-no de Saulo.
[2] A dependência literária do Evangelho de Lucas sobre o Evangelho de Marcos e o Evangelho de Mateus é brevemente discutida aqui.
[3] Todas as traduções para o português são, como indicado pelos links, da NIV, exceto uma correção técnica com relação ao termo “ouvir”. Os tradutores do NIV optaram pelo verbo “entender” para reduzir a discrepância com a narrativa em Atos 9, porém a expressão utilizada ἤκουσαν (errousan) vem do verbo grego ἀκούω (arrouo) que literalmente significa ouvir ou escutar.
[4] Datação dos textos são, obviamente, aproximadas, considerando que nenhum dos textos vem com datas explícitas e as dicas internas são razoavelmente vagas. Não obstante, essas são as datas mais amplamente aceitas pela comunidade acadêmica baseado na preponderância de evidências internas e externas. Sempre haverá hipóteses extremistas que, por exemplo, datam Atos dos Apóstolos no ano 63 EC e no final do segundo século da EC. Embora ambas posições extremas sejam possíveis, elas são muito improváveis considerando todas as evidências, e representam uma margem extrema das avaliações acadêmicas e muito longe do consenso. Discussões sobre pensamento de grupo e viés de consenso, essas datações extremas dependem de uma lista enorme de conjecturas que vão muito além das evidências e ainda não apresentaram soluções que justifiquem sua consideração como racional ou factual. Racionalmente, historiadores dependem do balanço da preponderância de todas as evidências.
[5] Alguns leitores desinformados ou desacostumados com hábitos de leitura certamente reclamarão que os textos acima não estam acompanhados de “fontes” ou constituem “distorções”. Os textos merecem ser respeitados ao serem lidos independentemente de outros textos aos quais sequer fazem alusões. As cartas de Paulo não fazem alusão, ou usam as mesmas definições ou expressões ou mesmo teologia, que as cartas de João ou Pedro ou mesmo os Evangelhos. Respeitar os textos significa buscar entender o que cada autor individualmente está querendo dizer, sem forçar interpretações vindo de outros autores, e especialmente, vindo de autores ou leitores modernos. Isso é ainda mais alarmante considerando os Evangelhos, posto que sabemos que o autor de Lucas simplesmente não gostava do Evangelho de Marcos ou do Evangelho de Mateus e literal e explicitamente afirmou que escrevia os seus livros para corrigir os erros de Marcos e Mateus. Ademais, alguns leitores desinformados ou desacostumados com hábitos de leitura reclamarão que as fontes citadas originaram de alguma publicação “anti-mórmon” ou não são verdadeiras. Nós já publicamos sobre a nescidade e preguiça intelectual do argumento “anti-mórmon”. Uma dica para esses leitores desinformados: Não murmure e choramingue reclame que a citação está “fora de contexto” ou “distorcida” sem antes ler o texto original. Depois que você leu o texto original, e depois que percebeu que a citação não está “fora de contexto” ou “distorcida” (como fora o caso naquele artigo, e como é o caso neste, também), reflita no assunto em pauta. Se, por acaso, você ainda acredita que a citação esteja “fora de contexto” e “distorcida”, delineie especificamente os motivos pelos quais, baseado no texto original, você ainda crê nisso. Não murmure e choramingue apenas, mas argumente sua opinião racionalmente com fatos concretos e argumentos elaborados.
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“Um dos argumentos centrais e mais convicentes dos Apóstolos era a questão de autoridade, especialmente a questão que Tiago, Paulo, e companhia, teriam recebido autoridade especial de Cristo e que Paulo lhes era inferior ou subordinato. ”
Ficou confusa essa frase, possivel erro de digitação …. em vez de “Tiago, PAULO e companhia”, não seria ” Tiago, Pedro (ou outro apóstolo original) e companhia”?
Em vez de “lhes era inferior ou subordinato” não seria “lhes era inferior ou subordinaDo”, a não ser que esteja escrevendo em italiano.
Excelente correções, Jander. Obrigado. Vamos alterar o artigo imediatamente.
(Você não está muito longe com o chute sobre italiano, coincidentemente!)
Não importa como essas palavras chegaram até nós, o importante é que chegaram…E mais importante ainda é o sentimento que nos trazem, quando tocam nossas almas, quando nos enchem de esperanças …