Sentinela & Liahona

Você entra no prédio, simples, mas bem cuidado, vê algumas salas e entra num auditório maior e se senta. À sua volta, algumas pessoas conversam em tom simpático se chamando de “irmão”. Pessoas de roupa social e bem arrumadas vêm em sua direção e o cumprimentam, dando boas vindas. Enquanto isso, você vê um púlpito de madeira, bem cuidado, geralmente em tom neutro, e talvez tenha notado a diferença de outras igrejas para aquela.

A reunião tem início: um homem de terno no palco sobe ao púlpito, oferece boas vindas e anuncia o número do hino a ser cantado e também quem fará a primeira oração, bem como os discursos e estudos daquela reunião. A música é ao som de piano, você não o vê, mas o som está ali, todos cantam juntos. Alguém vê que você é novo e se senta ao seu lado com o hinário pra você poder acompanhar. A música termina e começa a oração: “Pai Celestial, que habita nos mais altos céus…”

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Não, você não está numa capela mórmon, você está num Salão do Reino das Testemunhas de Jeová.

Me chamo Thiago, fui criado numa família onde meus avós eram Testemunhas de Jeová, ou popularmente, TJ’s. Quando bem pequeno, eu recebia estudo em casa, frequentava as reuniões com os meus avós.

TJ6Eu via algumas vezes duplas de jovens com mochilas passando na frente de casa, e vinha na minha cabeça “Ué, quem são eles?”, pareciam os jovens Testemunhas de Jeová que frequentavam a nossa casa. A minha avó me dizia: “Eles são os mórmons!”.

Com 17 anos entrei para as TJ’s de cabeça, deixei de lado o sonho de ser militar que tanto queria para fazer carreira nessa organização. O meu sonho passou a ser “tornar-me um pioneiro”!

Pioneiros são pessoas que trabalham de tempo integral, tem a meta de 70 horas por mês de proselitismo (naquele tempo, hoje não sei) e geralmente são muito espiritualizados e simpáticos. Formalmente são chamados de Pioneiros Regulares de Tempo Integral, trabalham apenas na sua área, que chamam de “território”, dividido como na igreja SUD como áreas iguais. Os pioneiros são muito parecidos com os élderes e sisteres, o mesmo espírito de fé e dedicação.

TJ8Depois de muito estudo e trabalho batendo portas eu me batizei. Passei a pregar em tempo semi-integral, Pioneiro Auxiliar, tipo um missionário de ala. Foram anos felizes, com amigos de boa conduta e bom aprendizado. Geralmente cruzávamos as ruas e passávamos por missionários SUD, os élderes sempre nos cumprimentavam, eu achava muito legal o respeito que tinham, pareciam militares de exércitos distintos prestando continência em sinal de respeito. Me confundiam muito com mórmons. Uma vez uma moça mandou eu entrar em seu apartamento e chamou a mãe dela: “Mãe, eles chegaram”. Pela cara, a moça deve ter pensado: “Simpático, esse gringo!”, mas quebrou a cara quando a mãe dela chegou e perguntou: Vocês são élderes… dos mórmons?”. E nós confessamos: “Não, somos Testemunhas de Jeová!”. A moça ficou visivelmente envergonhada, tinha quase colocado uma dupla errada de missionários dentro de casa, e de gringo eu só tenho a cara.

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Me xingavam na rua e na escola por “ser mórmon”. Pois é, eu não era por realmente ser, mas por maioria de votos. Uma vez, na época do início da Guerra do Iraque, uns caras me xingaram “OLHA OS ENLATADOS AMERICANOS”! Diziam-me que era por eu ser claro, mas uma vez fui duramente advertido por um ancião (o equivalente a um Bispo) por andar de mochila e parecer mórmon. Outra vez, outro ancião notou que a minha roupa era parecida com a dos élderes. Eu apenas ria. Parecia destino. Os membros SUD eram os únicos que nunca me trataram mal nas portas, a educação dos membros SUD me chamou a atenção.

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Aí passei a pesquisar sobre a Igreja SUD. Deixei as TJ’s em 2005, por motivos pessoais. Eu havia me enchido com tantas regras. Não procurei a Igreja. Fiquei no mundo mesmo. Em 2010, enviei o equivalente a carta de resignação (i.e., “carta de dissociação”) e saí em definitivo.

Em 2012, comecei a frequentar a Igreja SUD. Fiquei boqueaberto com a semelhança entre as duas organizações. Historicamente, nunca tiveram nada a ver uma com a outra (o fundador das TJ’s, Charles Taze Russel, no início, escrevia artigos com pastores Adventistas do Sétimo Dia), porém tudo é muito parecido. Expressões, maneira de se organizar, a maneira que praticam a disciplina em “membros errantes”, os livros, as gravuras, os hinos, as melodias, orações, a forma polêmica com  a qual ambos segundos presidentes teriam passado por cima de ordens dos fundadores e tomado as rédeas da organização depois de suas mortes, etc. Até vídeo-conferência anual transmitida pela internet nos salões de reuniões tem, como é na SUD com a Conferência Geral.

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As TJ’s não têm templos ou rituais restritos, também não há dízimo (embora seria organizacionalmente ótimo para eles), apenas contribuições em caixinhas discretamente espalhadas pelos prédios. Algumas diferenças que notei foi na maneira de agir dos membros nas reuniões. Os mórmons daqui onde eu moro são simpáticos, mas não têm o senso de humor das TJ’s. Não têm a habilidade de fazer uma amizade em pouco tempo. Nas TJ’s existe o mesmo espírito de ajudar os outros, a mesma disposição de fazer propaganda da fé por meio de boas atitudes, mas mesmo às vezes cumprindo obrigações de dar boas vindas, acabam fazendo amizade com o possível converso. Outra coisa que estranhei muito foram os títulos. TJ’s nunca usam títulos como “o Ancião Fulano fará o discurso”, “sob a supervisão do Superintendente Sicrano” ou “sou esposa de ancião/fui missionário”, todos são vistos como iguais. Falar que é amigo de político? Suspensão de discurso ou até de cargo! Nome de irmão de fé artista pop numa reunião? Jamais! Marca de carro citado em discurso mesmo que brincando? Poderia ser visto como auto-promoção ou exibição.

Em 2015 me batizei como SUD, mas em pouco tempo deixei de ir. O que posso dizer sobre isso? Foram experiências maravilhosas, pessoas incríveis que conheci, de diversos estados e países. Tanto na SUD como nas TJ’s, aprendi muita coisa boa, nunca deixei de crer no Novo Milênio, ou Reinado Milenar de Cristo na Terra, pregado nas duas igrejas com ilustrações idênticas. Embora eu não frequente mais nenhuma das duas, jamais vou nutrir mágoas generalizando, nunca! Onde tem meia dúzia de humanos, pelo menos, existirão problemas, fofocas, falhas e até mesmo contradições! Eu procuro usar as coisas boas que aprendo tanto na Liahona como na Sentinela, tanto na “Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas” quanto em Doutrina & Convênios, ou no Livro de Mórmon.

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Quando me perguntam a minha religião? Eu sempre falo sem pestanejar “mórmon inativo criado numa família de Testemunhas de Jeová”. Sempre com muito orgulho da “fé mórmon” e nunca com ressentimento da antiga fé.


A autoria do artigo será mantida anônima a pedido expresso do autor.

22 comentários sobre “Sentinela & Liahona

      • O IBGE já me perguntou isso duas vezes na vida. Nas duas respondi mórmon, e na primeira me assustei que o pesquisador tivesse essa opção na sua folha de dados. Era década de 90 e eu um adolescente recém batizado.

        Hoje responderia a mesma coisa, embora eu seja um mórmon diferente em cada vez que houve a pergunta. Já no futuro, sobre esse nada sei.

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