O diretor contratado pela Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias para dirigir os três filmes que passavam nas sagradas ordenanças de investiduras em seus templos, Sterling Van Wagenen, foi indiciado este mês por pedofilia e abuso sexual de uma segunda criança, uma menina entre 7 e 9 anos de idade.
Van Wagenen, que havia sido exposto há 2 meses por ter sido gravado em áudio¹ confessando ao menos um caso de pedofilia e abuso sexual de menor, ocorrido cerca de 20 anos antes de sua comissão apostólica, agora responderá criminalmente pelo abuso sexual de criança ocorrido há apenas 4 anos.

Sterling Van Wagenen. (Foto: IMDB)
Plenamente ciente das acusações de pedofilia e abuso sexual infantil de quase 30 anos atrás, a Igreja SUD limitou-se apenas a uma punição eclesiástica restrita e temporária (mais abaixo) enquanto pressionara a família da vítima a não prestar queixas criminais, após o que louros sociais e prestígio religioso que permitiram-lhe que abusasse de outra criança.
Prestígio entre Mórmons
As ordenanças do templo são tão sagradas para a fé mórmon que apenas membros considerados “dignos” podem sequer frequentar os templos e participar de suas ordenanças, e deles se exige absoluta discrição para nunca se discutir, que dirá descrever, tais ordenanças fora dos templos. Assim contextualiza-se a confiança da alta liderança apostólica da Igreja depositada nos ombros do homem responsável por produzir e dirigir os filmes que proveem a narrativa em tais ordenanças para uso em todos os templos mundo afora.
A Igreja SUD utilizava dois filmes, produzidos no final da década de 1980, para suas ordenanças templárias. Em 2013, a Igreja SUD lançou três novos e modernizados filmes para substituí-los, todos produzidos e dirigidos pelo pedófilo e estuprador confesso Van Wagenen. No começo do ano, a Igreja alterou partes doutrinárias das ordenanças para reduzir a percepção de misoginia, e consequentemente alterou sua apresentação, substituindo os filmes de Van Wagenen por slides estáticos destes mesmos filmes.
Além dessa profunda honra eclesiástica, Van Wagenen também produz filmes que a produtora da Igreja SUD compra para distribuir, como a ficção histórica de 2018 Jane e Emma. Ele ainda foi um dos co-criadores do festival Sundance, que fez de Utah uma parada obrigatória do cinema mundial.
Os Abusos
Entre 2013 e 2015, Van Wagenen abusou de uma menina entre 7 e 9 anos idade¹:
“Sterling Van Wagenen foi indiciado por uma acusação de abuso sexual agravado de uma criança0… no 3º Tribunal Distrital em West Jordan.
A menina tinha entre 7 e 9 anos de idade quando o abuso supostamente ocorreu entre 2013 e 2015, de acordo com o boletim de ocorrência. Ele relata que a garota disse a seus pais que Van Wagenen havia tocado nela de forma inadequada duas vezes: uma vez em sua casa no condado de Salt Lake e uma vez em um local no condado de Utah. Van Wagenen tocou a menina por debaixo de sua roupa em um dos encontros, afirma o boletim.
Van Wagenen pagou US$ 75 000 em fiança na segunda-feira, de acordo com registros do tribunal.”
De acordo com o indiciamento, os pais da criança acusam Van Wagenen de “se aproveitar de uma posição de confiança” para abusar da menina, e que se condenado, Van Wagenen enfrentará penas de 15 anos à prisão perpétua.
O caso pode ter recebido ajuda após a publicidade de outra vítima de Van Wagenen vir a público em fevereiro p.p. Em 1993, o jovem de 13 anos de idade “David” (nome fictício para proteger a identidade da vítima) estava dormindo na casa de um amigo da mesma faixa etária, quando acordou subitamente ao notar que o pai de seu amigo, Van Wagenen então aos 46 anos de idade e pai de 6 filhos, o estava masturbando, ou tentando masturbá-lo. Assustado, David levantou-se e correu para um banheiro, onde se trancou e resistiu as muitas chamadas de Van Wagenen para que saísse. Traumatizado, eventualmente David conseguiu tomar coragem para contar aos seus pais o que havia ocorrido, e estes entraram em contato com um amigo deles que servia como Bispo em sua Estaca. Este Bispo imediatamente entrou em contato com o Presidente da Estaca, Harold Brown, que além se servir como líder eclesiástico, trabalhava para a organização sem fins lucrativos da Igreja SUD, Serviços da Família SUD, que entre outras coisas oferece aconselhamento psicológico e terapia para vítimas de abuso.
Brown convocou Van Wagenen para uma entrevista, que supostamente confessou seu crime imediatamente. Van Wagenen foi desassociado da Igreja por 2 anos. Brown teria encorajado Van Wagenen a entregar-se à polícia, o que ele fez. Porém, boletins de ocorrência² da polícia sugerem que Van Wagenen teria mentido em seu depoimento para minimizar o evento como um simples mal entendido. Enquanto David afirma que Van Wagenen manuseou seu pênis diretamente por debaixo da roupa em movimentos rítmicos, Van Wagenen declarou à polícia que apenas havia esbarrado em seu “abdômen” e no “pênis” por cima da roupa, ainda sugerindo que a criança teria sonhado o abuso pois este apenas “acordou 2 minutos depois”.
David relata haver sido traumatizado pela experiência e passado décadas com sentimentos de vergonha, culpa, e depressão. Afirma que jamais fora contatado por nenhum líder da Igreja SUD ou pelos serviços de terapia e aconselhamento psicológico, que aliás a Igreja afirma publicamente oferecer a vítimas de abuso sexual, mesmo com um Presidente de Estava ciente e envolvido no caso e que ainda trabalhava, profissionalmente, para a Igreja nesse departamento específico.
Apesar de não culpar a Igreja pelo ocorrido, David sentiu-se constantemente humilhado pelo enorme sucesso e prestigio do qual Van Wagenen gozava dentro da Igreja, e decidiu agendar uma entrevista com ele e gravá-lo em segredo³.
Precedentes
David não relata em sua narrativa de onde havia tirado a inspiração para confrontar o seu agressor e gravá-lo em segredo, mas possivelmente estava seguindo o exemplo de um ano antes quando uma missionária retornada fez o mesmo com o Presidente do CTM que a havia estuprado logo no início de sua missão de tempo integral.
Indignada em ver seu agressor servindo como Bispo, Presidente de Estaca, Presidente de Missão, trabalhado para a Igreja como Agente de Bem Estar, lecionando a adolescentes na universidade da Igreja Brigham Young University, e até tendo seus livros vendidos no site oficial da editora da Igreja SUD, ela decidiu fazer justiça com as próprias mãos. Agendou um encontro com seu agressor, e gravando às escondidas, confrontou-o com seus crimes até que confessasse.
Após repercussão pública dessa gravação secreta, descobriu-se que esse Presidente de Missão já havia sido acusado por duas missionárias de estupro ou violência sexual por décadas para líderes eclesiásticos da Igreja, e que tais acusações haviam sido acobertadas até por Autoridades Gerais.
Ademais, descobriu-se que a Igreja tentou acobertar o caso mais uma vez, pressionando legisladores de Utah a passar uma lei que criminalizaria a publicação de tais gravações secretas tão logo ficaram sabendo da existência dessa gravação, porém alguns meses antes de sua publicação.
A gravação da confissão de Van Wagenen ocorreu uns 6 meses após a repercussão deste caso, então é possível que David tenha sido inspirado pela coragem daquela ex-missionária. David cita como sua motivação principal para suas ações incentivar vítimas a se sentirem encorajados a expor e denunciar seus agressores.
Cultura de Estupro Mórmon
Esses casos sequer seriam únicos ou inusitados dentro da cultura mórmon.
Eis uma lista pública com mais de 400 casos (com milhares de vítimas) oficialmente documentados de abuso sexual, abuso sexual infantil, violência sexual, e estupros cometidos por membros da Igreja SUD entre os anos de 1959 e 2017, invariavalmente acobertados por líderes eclesiásticos da Igreja.
De acordo com a então diretora da força tarefa contra abuso sexual do Condado de Weber (Utah) Marilyn Sandburg:
“A maioria desses casos de abuso foram levados ao judiciário por indivíduos que não eram os líderes religiosos, apesar de que em muitos desses casos, o abuso havia sido inicialmente denunciado aos membros do clero muito antes de ser denunciados às autoridades… Em um caso de incesto específico no qual eu trabalhei, o abuso havia sido denunciado a 6 Bispos diferentes, e apenas 1 deles fez a denúncia às autoridades. O abuso continuou por um período de 11 anos.”
Por décadas, a Igreja manteve uma política de punir alunas de sua universidade que denunciavam sofrer estupros ou violência sexual, inclusive acobertando estupradores de repercussões criminais ou mesmo eclesiásticas. Até o ano retrasado, quando decidiu rescindir tal política misógina apenas após meses de severa repercussão negativa na mídia norte-americana, e não antes da Igreja tentar manipular jornalistas e a mídia para não cobrir tais denúncias. Naturalmente, tal política coibia vítimas de denunciar abusadores e estupradores, criando uma atmosfera propícia para violências sexuais nas faculdades da Igreja por décadas resultando em centenas, se não milhares, de vítimas.
Ameríndios da tribo Navajo estão processando a Igreja SUD alegando que eles sofreram abusos sexuais e estupros durante a infância enquanto sob a tutela de famílias de mórmons, acusando a Igreja não apenas de saber dos crimes cometidos , como de retornar as crianças para os lares onde os abusos sexuais havia sido cometido, mas também de acobertá-los e proteger os culpados sob a guisa de não embaraçar a Igreja, instruindo líderes locais e membros a não cooperarem com oficiais da lei ou denunciarem os crimes.
E no Brasil?
Recentemente, a ativista social que vinha ajudando vítimas a denunciar os casos de estupro cometidos pelo médium espírita João de Deus, Sabrina Bittencourt, recontou em entrevista que sofrera três abusos sexuais de pessoas da Igreja SUD:
“Sofri abusos sérios por homens da mesma religião que eu frequentava na época: os mórmons. O primeiro aconteceu dos 4 aos 8 anos. Nada foi feito a respeito, muito embora tivéssemos levado o assunto às instâncias mais altas da igreja. Era um pediatra que abusava de mim, fazendo ‘exames nos genitais’ com a gente. Até que um dia minha mãe viu e ficou furiosa, tirou satisfação com ele. Minha tia o defendeu, dizendo que era algo ‘normal’. Ele nunca havia pedido autorização para os meus pais para isso.
O outro caso foi de um menino que tinha quase 18 anos, eu 15, e era meu melhor amigo, em 1996. Meu pai o batizou logo depois da sua tentativa de estupro, pois o achava o ‘rapaz ideal, escoteiro, recém-convertido à religião, pronto para ser um excelente missionário’. Entrou numa barraca de camping que eu estava e tentou forçar sexo comigo. Ficou bastante agressivo quando eu neguei e passou os anos posteriores me difamando e caluniando na igreja para meus amigos.
O terceiro, também aos 15 anos, foi numa viagem religiosa, dentro do ônibus de peregrinação em que a maioria eram jovens e senhoras (estavam meus irmãos mais novos e exclusivamente gente da igreja mórmon). Ele se sentou ao meu lado enquanto eu dormia e começou a lamber minha orelha, tocar nos meus seios. Acordei assustada, saí da poltrona e fui sentar lá na frente perto do bispo. Fiquei chorando a noite toda. Não podia acreditar que aquilo estava acontecendo. Somente após a viagem, consegui contar à minha mãe e demais líderes.”
Sabrina Bittencourt reconta como também foi vítima de estupro de um desconhecido ainda aos 16 anos de idade. Seu relato é horrível, incluindo ameaça de morte, fuga arriscada, humilhação com policiais, e medo constante de morte ou doenças. Contudo, na maturidade de seus 38 anos, contextualiza a traição sofrida entre os Santos dos Últimos Dias:
“Para mim, sempre foi muito pior os abusos com pessoas conhecidas e que tinham minha confiança, que do estuprador desconhecido. Era uma sensação de impotência, inadequação, vergonha, solidão, desamparo por homens e pelo ‘Deus’ a quem me foi ensinado acreditar.”
E Bittencourt narra a sensação frequentemente repetida por vítimas de abuso sexual em contexto SUD:
“Não pude mais me relacionar com rapazes na época que faziam parte da mesma religião. Era considerada impura, uma vergonha para essa microssociedade.”
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NOTAS
[1] Leia o boletim de ocorrência da polícia de 2019 aqui:
[2] Leia o boletim de ocorrência da polícia de 1993 aqui e aqui:
[3] Ouça o áudio da entrevista entre David e Van Wagonen aqui (ou leia as transcrições aqui):
Os psicólogos devem investigar o papel da religião no estímulo sexual dos membros, me parece que a religião fomenta o fetiche do proibido nas pessoas, estimulando elas a exercerem com mais vigor sua natureza sexual. O ambiente de bondade e confiança fomenta a ação de predadores. O ambiente religioso proporciona aproximação e relacionamentos sociais próximos e intensos, um sociopata pode se aproveitar disso com muitas vantagens para exercer seus atos libidinosos. Os mecanismos de conversas, de confissões pessoais e atividades coletivas dão a oportunidade que o imaginário doentio tanto deseja. Existe a capa eclesiástica que fornece algum tipo de segurança ao sedutor e ele ganha confiança. A organização deve estar atenta a proteger os inocentes e estar alerta aos predadores em potencial. Isso envolve tratamento psiquiátrico se for o caso e acompanhamento rigoroso. A organização religiosa deve colaborar para que indivíduos perigosos sejam isolados da sociedade independentemente dos danos institucionais.