Vítimas de Estupro: Mudanças nas Regras

Autoridades eclesiásticas e membros d’A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias frequentemente defendem uma posição de culpar e punir, ao menos parcialmente, mulheres vítimas de violência sexual pelo abuso sofrido.

Essa é, por exemplo, a política oficial da universidade da Igreja SUD, a Brigham Young University (BYU), determinada pela Primeira Presidência. Na BYU, moças estupradas são rotineiramente investigadas e punidas quando denunciam o abuso [ver aqui, aqui, aqui, e aqui].

Profetas [e.g., ver Spencer Kimball aqui] e Apóstolos [e.g., ver Richard Scott aqui e Dallin Oaks aqui] também pregaram o mesmo princípio. E para ver o ânimo com o qual muitos membros abraçam essa atitude, basta ler alguns dos comentários aqui e aqui.

A votação numa Conferência Geral oferece uma oportunidade para membros da Igreja expressarem seu apoio aos líderes… ou sua oposição a eles.

A votação dos líderes que determinam o “Manual”.

Não obstante essa repugnante e ignóbil postura misógina, a política oficial da Igreja mudou progressivamente durante os anos, e mais profundamente entre 1985 e 2006, para corrigir essa postura alarmantemente popular.Na edição do secreto sagrado Manual de Instruções da Igreja¹² (doravante “Manual”) de 1985¹², lê-se várias instruções sobre conduta sexual entre solteiros, conduta homossexual, “cirurgia para transexual”, etc., mas absolutamente nada sobre abuso sexual ou estupro, exceto para discutir aborto de gestações resultante de estupros. Não há nada sobre como lidar com estupradores, e muito menos sobre vítimas de estupro.

Já na edição seguinte de 1989¹², lê-se as seguintes instruções sobre “abuso e crueldade”:

“Membros que abusam ou são cruéis com seus cônjuges, filhos ou outros membros da família violam tanto as leis de Deus e do homem.

As leis civis foram promulgadas para proteger as vítimas e para ajudar os infratores e membros da família obter assistência necessária. (Ver também “Restituição”, p. 10-2). Os membros da Igreja que abusam de seus familiares estão sujeitos à disciplina da Igreja. Tais membros não devem ser chamados para cargos na Igreja e não devem ser autorizados a realizar ou receber uma recomendação para o templo. Todo esforço deve ser feito para que procurarem o conselho de seus bispos e, se necessário, receber aconselhamento profissional através dos Serviços Sociais SUD ou outro órgão público ou privado. Os líderes locais devem consultar o folheto Abuso Infantil: Ajuda para Líderes Eclesiásticos para adicionais informações.”

Na edição subsequente de 1998¹², nota-se uma clara evolução nessa mesma seção, abraçando uma maior preocupação com o bem-estar, e a inocência, da vítima (ênfases nossas):

“A posição da Igreja é que abuso não pode ser tolerado em qualquer forma. Aqueles que abusam ou são cruéis com seus cônjuges, filhos, outros membros da família, ou qualquer outra pessoa, viola as leis de Deus e do homem. Esses membros estão sujeitos à disciplina da Igreja. Eles não devem receber chamados na Igreja e não podem ter uma recomendação para o templo. Mesmo que uma pessoa que abusou uma criança sexual ou fisicamente seja disciplinada pela Igreja e depois é restaurada para associação plena ou readmitida pelo batismo, os líderes não devem chamá-la para qualquer posição trabalhando com crianças ou jovens, a menos que a Primeira Presidência autorize a remoção da anotação no registro de membro dela.

Em casos de abuso, a primeira responsabilidade da Igreja é ajudar aqueles que foram abusados e proteger aqueles que podem ser vulneráveis a futuro abuso. Vítimas de abuso sexual (incluindo estupro) muitas vezes sofrem graves traumas e sentimentos de culpa. Vítimas de atos malignos dos outros não são culpadas de pecado. Os líderes da Igreja devem ser sensíveis a essas vítimas e dar atenção cuidadosa para ajudá-las a superar os efeitos destrutivos do abuso.

Os presidentes de estaca e bispos devem fazer todos os esforço para aconselhar aqueles que estiveram envolvidos em abuso. Os membros também podem precisar de aconselhamento profissional. Quando apropriado, os bispos devem entrar em contato com os Serviços Sociais SUD para identificar recursos para prover tal aconselhamento em harmonia com os princípios do evangelho. Se o transgressor é um adulto que tenha cometido uma transgressão sexual contra uma criança, o comportamento pode ser muito arraigado e o processo de arrependimento e reforma pode ser muito prolongado.

Nos Estados Unidos e no Canadá, a Igreja tem estabelecida uma Linha de Ajuda gratuita (telefone 1-801-240-1911 ou 1-800-453-3860, ramal 1911) para promover orientação aos bispos e presidentes de estaca em casos de abuso. Se um desses líderes se torna ciente de abuso físico ou sexual envolvendo membros da Igreja, ou se ele acredita que uma pessoa pode ter sido abusada ou está em risco de ser abusada, ele deve ligar para a Linha de Ajuda. Ele será capaz de consultar com os serviços sociais, legais e outros especialistas que podem ajudar a responder perguntas e formular medidas que devem ser tomadas. Fora dos Estados Unidos e Canadá, presidentes de estaca e bispos devem chamar a Presidência da Área de orientação. Um bispo também deve notificar o presidente da estaca de casos de abuso.

Se informações confidenciais indicam que as atividades abusivas de um membro podem ter violado a lei aplicável, o bispo ou presidente de estaca devem instá-lo a relatar essas atividades para as devidas autoridades do governo. Os líderes podem obter informações sobre requisitos de informação locais, através da Linha de Ajuda. Onde relato é exigido por lei, o líder deverá encorajar o membro a contratar aconselhamento jurídico qualificado.

Para evitar implicar a Igreja em questões legais das quais não é parte, os líderes devem evitar depor em casos civis ou criminais ou outros procedimentos envolvendo abuso. Para orientações específicas, consulte “Questões Legais”, página 151.

Para obter informações adicionais, presidentes de estaca e bispos podem consultar o folheto Respondendo ao Abuso: Ajuda para Líderes Eclesiásticos e os panfletos Prevenção e Resposta à Violência Entre o Casal e Prevenção e Resposta ao Abuso Infantil.

A Igreja publicou clara e inequivocadamente que vítimas de abuso e violência sexual não são culpadas de pecado, devem ser tratadas com carinho e sensibilidade, e ainda que é a “primeira responsabilidade da Igreja” protegê-las de maiores “traumas e sentimentos de culpa”.³

Na mesma seção do Manual publicado em 2006¹², lê-se mais mudanças sutis, porém relevantes (ênfases nossas):

“A posição da Igreja é que abuso não pode ser tolerado em forma alguma. Aqueles que abusam ou são cruéis com os seus cônjuges, filhos, outros membros da família ou qualquer outra pessoa, violam as leis de Deus e do homem. Todos os membros, especialmente os pais e líderes, são encorajados a estar alertas e diligentes e fazer todo o possível para proteger as crianças e outros contra abuso e negligência.

Membros que abusaram de outros estão sujeitos à disciplina da Igreja. Eles não devem receber chamados na Igreja e não podem ter uma recomendação para o templo, até que se arrependam e toda a disciplina da Igreja seja resolvida.

A uma pessoa cujo registro de membro é anotado por ter abusado sexual ou fisicamente de uma criança não deve ser dado qualquer chamado ou designação envolvendo crianças ou jovens. Além disso, consideração cuidadosa deve ser levada a outras atribuições, tais como o ensino familiar ou professora visitante. Essas restrições devem permanecer intactas até que a Primeira Presidência autorize a remoção dessa anotação (ver 6.13.4 para obter informações sobre anotações).

Em casos de abuso, a primeira responsabilidade da Igreja é ajudar aqueles que foram abusados e proteger aqueles que podem estar vulneráveis a abusos futuros. Vítimas de abuso sexual (incluindo estupro) muitas vezes sofrem graves traumas e sentimentos de culpa.

Vítimas de atos malignos dos outros não são culpadas do pecado. Os líderes da Igreja devem ser sensíveis com tais vítimas e dar atenção cuidadosa para ajudá-las a superar os efeitos destrutivos de abuso.

Os presidentes de estaca e bispos fazem todo esforço para aconselhar aqueles que estiveram envolvidos com abuso. Esses líderes podem referir-se ao livreto Respondendo ao Abuso: Ajuda para Líderes Eclesiásticos e os panfletos Prevenção e Resposta à Violência entre o Casal e Prevenção e Resposta ao Abuso Infantil. O DVD Proteger a Criança: Respondendo ao Abuso Infantil também descreve as responsabilidades dos líderes e outros membros na prevenção e combate ao abuso infantil. Todos os conselhos de ala são convidados a assistir este DVD e discuti-lo de acordo com o guia na parte de trás da caixa do DVD.

Além da ajuda inspirada dos líderes da Igreja, os membros podem precisar de aconselhamento profissional. Nos Estados Unidos e Canadá, presidentes de estaca e bispos podem entrar em contato com Serviços de Família SUD para identificar recursos para prover tal aconselhamento em harmonia com os princípios do evangelho (1-801-240-1711; 1-800-453-3860, extensão 2-1171; ou ldsfamilyservices.org). Fora dos Estados Unidos e Canadá, presidentes de estaca podem contatar a Presidência de Área para orientação. Se o transgressor é um adulto que tenha cometido uma transgressão sexual contra uma criança, o comportamento pode ser muito arraigado e o processo de arrependimento e reforma pode ser muito prolongado.

Nos Estados Unidos e Canadá, a Igreja estabeleceu uma linha de ajuda para auxiliar os presidentes de estaca e bispos em casos de abuso (1-801-240-1911 ou 1-800-453-3860, ramal 2-1911). Esses líderes devem ligar para a linha de ajuda se eles:

1. Tornaram-se cientes de abuso físico ou sexual
envolvendo membros da Igreja.

2. Acreditam que uma pessoa pode ter sido abusada
ou está em risco de ser abusada.

3. Tornaram-se cientes da visualização, compra ou
distribuição de pornografia infantil.

Ao ligar para a linha de ajuda, os líderes serão capazes de consultar com conselheiros profissionais e especialistas legais que podem ajudar a responder perguntas e formular medidas a tomar. Um bispo também deve notificar o presidente da estaca de casos de abuso.

Nos países que não têm uma linha de ajuda, um bispo que descobre abuso deve contatar o seu presidente de estaca, que vai buscar a orientação da Presidência de Área.

Se informações confidenciais indicam que as atividades abusivas um membro tenha violado a lei aplicável, o bispo ou presidente de estaca devem instigar o membro a reportar essas atividades às autoridades governamentais apropriadas. Os líderes podem obter informações sobre os requisitos locais para relato obrigatório através da linha de ajuda. Onde relato é exigido por lei, o líder incentiva o membro para contratar aconselhamento jurídico qualificado.

Para evitar implicar a Igreja em questões legais das quais não é parte, os líderes da igreja devem evitar depor em casos civis ou criminais ou outros processos envolvendo abuso. Para orientações específicas, consulte 17.1.26.”

A Igreja repete, clara e inequivocadamente, que vítimas de abuso e violência sexual não são culpadas de pecado, devem ser tratadas com carinho e sensibilidade, e ainda que é a “primeira responsabilidade da Igreja” protegê-las de maiores “traumas e sentimentos de culpa”.³

A subsquente edição de 2010¹², a versão atualmente vigente do Manual, reproduz o texto desta seção integralmente.³

É certamente encorajador ver o progresso e a evolução das políticas oficiais da Igreja com relação a vítimas de abuso, violência, e violência sexual. Até 1985, a Igreja sequer reconhecia a existência do problema ou a necessidade de treinar a liderança eclesiástica em como ajudar vítimas, exceto para permitir vítimas de estupro abortar fetos em gestações resultantes de estupros. Desde então, a Igreja progressivamente reconheceu a existência das necessidades emocionais e espirituais das vítimas e de se prevenir abusos no ambiente doméstico.

Não obstante, ou talvez ainda mais obstante, se a posição oficial da Igreja é de não culpar a vítima, por que membros, oficiais da universidade da Igreja, e até Autoridades Gerais da Igreja insistem nessa conduta e nesse discurso já repudiados por seu próprio código eclesiástico?


NOTAS
[1] O Manual é um livro de instruções destinado apenas a líderes eclesiásticos como Bispos e Presidentes de Estaca, servindo como autoridade máxima na literatura SUD em conjunção com as escrituras. Publicado sob vários títulos e em vários formatos diferentes desde 1899, o Manual é a última palavra em termos de política e guia oficial a emanar da Primeira Presidência e do Quórum dos Doze Apóstolos para a direção da Igreja e a conduta dos membros. Ele é “secreto” porque apenas tais líderes eclesiásticos podem lê-lo e consultá-lo (ver nota #2). Desde as edições de 1998, ele vem sido dividido em dois volumes, e desde a edição de 2010 o segundo volume encontra-se disponível online para qualquer pessoa.
[2] Todas as versões do Manual vazaram online e podem ser visualizadas aqui. A Igreja tentou processar o site WikiLeaks quando a edição de 2006 vazou pela primeira vez, porém não conseguindo conter a rápida disseminação de múltiplas versões que passaram a surgir na rede, desistiu do processo.
[3] Além disso, é interessante notar que nesse Manual de 1998 a Igreja: 1) Estabelece uma Linha de Ajuda dedicada a ajudar líderes a lideram com casos de abusos e violência sexual (voltaremos a esse tema em outro artigo); 2) Orienta seus líderes a não denunciar abusos e violência sexual às autoridades legais, exceto quando e onde exigido por lei; 3) Orienta seus líderes a instigar o culpado, quando membro da Igreja, a se auto-denunciar, mas não à vítima a denunciá-lo (voltaremos a esse tema em outro artigo). As subsequentes edições de 2006 e 2010 apenas expandem nessa questão jurídica.

5 comentários sobre “Vítimas de Estupro: Mudanças nas Regras

    • Maiara, você pode não ter interesse em estudar, ler, ou aprender história.

      E você pode não ter interesse em como se trata mulheres vítimas de violência sexual.

      Saiba, porém, que nem todas as pessoas compartilham dessa sua falta de interesses.

      Procurar o que fazer? Nós procuramos, justamente, isso para fazer: Estudar, ler, e aprender os fatos históricos, e discutir como tratamos, e como devemos tratar, vítimas de violência sexual.

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