A Igreja SUD confirma, com relutância, rumores de mudanças a seus rituais templários mais sagrados de modo a torná-los menos machistas.

Representação do futuro Templo do Rio de Janeiro © Intellectual Reserve, Inc. 2017
A mais importante ordenança religiosa no mormonismo, o ritual da investidura foi estabelecido pelo Profeta Joseph Smith em maio de 1842, aproveitando sinais, símbolos, expressões, palavras, juramentos, e temas dos rituais maçônicos aos quais fora iniciado 2 meses antes. Desde então, a ordenança recebeu algumas alterações pontuais para se acomodar melhor aos seus contextos sociais contemporâneos. As mudanças apresentadas estas semanas podem ser as mais profundas e impactantes dos últimos 177 anos.
Anúncio atropelado
No primeiro dia do ano, o professor da universidade da Igreja SUD Brigham Young University, Alonzo Gaskill, teria postado em sua rede social pessoal uma nota vazando mudanças profundas às ordenanças de investiduras que ele teria testemunhado no Templo de Nauvoo, e ouvido da liderança da Igreja que seriam incluídas em todos os templos d’A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias durante as próximas semanas.

Print do post original de Alonzo Gaskill de 01/1/2019 (Fonte: Facebook)
Já no dia seguinte, Gaskill apagou sua postagem e postou um pedido de desculpas por haver vazado a notícia em antecedência de um anúncio oficial.
Não obstante, os rumores se alastraram pelas mídias sociais e aos jornalistas norteamericanos, obrigando a Primeira Presidência a emitir uma nota oficial hoje:
A Primeira Presidência de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias emitiu a seguinte declaração:
“Sempre que o Senhor tiver um povo na Terra que obedeça à Sua palavra, receberá ordens para construir templos. As escrituras documentam os padrões da adoração no templo dos tempos de Adão e Eva, Moisés, Salomão, Néfi e outros.
Com a restauração do evangelho nestes últimos dias, o culto do templo também foi restaurado para abençoar a vida das pessoas em todo o mundo e também do outro lado do véu.
Durante esses muitos séculos, detalhes associados ao trabalho do templo foram ajustados periodicamente, incluindo linguagem, métodos de construção, comunicação e manutenção de registros. Os profetas ensinaram que não haverá nenhum fim para tais ajustes, conforme dirigido pelo Senhor a Seus servos.
Um templo dedicado é o mais sagrado de qualquer lugar de adoração na terra. Suas ordenanças são sagradas e não são discutidas fora de um templo sagrado.”
Como a nota oficial da Igreja reafirma, membros são proibidos de discutir detalhes das cerimônias templárias em público.
As mudanças
As mudanças são ostensivamente dedicadas a aliviar a impressão, e as críticas, de que o ritual sagrado seja inerentemente machista.
Por exemplo, a encenação (teatro em alguns templos, filme na maioria dos templos) da criação da Terra e da “queda de Adão”, incluíam cenas entre Deus, Jesus Cristo, Adão, Eva, e Satanás, inclusive com participação especial dos apóstolos cristãos Pedro, Tiago, e João. Até a semana passada, Eva praticamente nada falava, servindo apenas de testemunha passiva dos eventos. Agora, aparentemente não apenas Eva servirá um papel maior, mas terá o seu próprio monólogo, com mais diálogos que Satanás.
Ademais, doravante homens e mulheres farão os mesmos juramentos, ou convênios, diretamente a Deus. Até a semana passada, homens faziam juramento solene para obedecer a Deus, enquanto mulheres faziam juramento solene a obedecer “a lei do Senhor” enquanto “ouviam o conselho de seus maridos” conquanto eles obedecessem a Deus. Com essa nova alteração, não haverá mais diferenças nos juramentos de obediências, e tampouco serão as mulheres obrigadas a jurar obedecer, ou “ouvir os conselhos”, de seus maridos.
Além disso, durante a cerimônia de selamento, que é freqüentemente chamada de “casamento no templo”, a esposa não se entrega mais ao marido, mas sim os cônjuges se entregam reciprocamente um ao outro.
E, finalmente, diz-se que as mulheres não mais serão obrigadas a cobrir seus rostos com um véu durante o círculo de oração e a verdadeira ordem de oração.
Mudanças históricas do passado
Essa não é a primeira vez que a Igreja SUD altera suas ordenanças de investidura para apaziguar críticas de machismo e misoginia. Em abril de 1990, a Primeira Presidência anunciou a então maior alteração ao ritual, eliminando linguagem ainda mais machista de outrora. O juramento de mulheres, que até a semana passada era qualificado com a clausula condicional “conquanto seus maridos ouçam o conselho do Pai”, antes de abril de 1990 era mais diretamente para “observar e guardar a lei de seus maridos, e ouvir seus conselhos em retidão”. Ademais, a narrativa foi alterada para não mais culpar Eva pela “queda de Adão”, tornando sua decisão mais consciente e deliberada. Além disso, removeu-se um dos sinais maçônicos apresentados “junto ao véu” conhecido como “cinco pontos de comunhão” por causa de reclamações de contato físico excessivo com oficiantes masculinos (ver abaixo, em sua versão maçônica).
Assim com as mudanças atuais, as alterações de 1990 foram vistas com bons olhos pela comunidade mórmon feminista e por não-mórmons em geral.
Outras mudanças profundas em abril de 1990 foram a remoção das penalidades maçônicas que ilustravam mortes violentas para os mórmons que divulgassem os segredos das ordenanças do templo. Conhecidos como juramentos de sangue, mórmons prometiam permitir que lhes cortassem suas gargantas, seus peitos, ou seus abdomens no caso de traição desses segredos.
Diversas mudanças menores ocorreram durante os quase 2 séculos desde que Joseph Smith introduziu a ordenança a seus seguidores mais próximos. Em 2005, as ordenanças de unção e ablação tornaram-se menos invasivas. Antes, o membro permanecia nú (ou semi-nú), coberto apenas por um poncho largo e aberto, e era literalmente ungido com óleo em várias partes de seu corpo desnudado por um oficiantes, e posteriormente ajudado a vestir seus garments (ver abaixo) pela primeira vez. A partir de 2005, tal ordenança passou a ser realizada apenas simbolicamente, com um membro já vestido por si mesmo. Em 2016, a ordenança tornou-se ainda mais simbólica, com o membro plenamente vestido com o mesmo uniforme das investiduras, sem ponchos ou unções.
Talvez a mudança mais profunda além destas alterações feministas de 1990 e 2019 ocorreu em 1927, quando a Primeira Presidência removeu o juramento de vingança das investiduras. Introduzido por Brigham Young em 1845, mórmons juravam solenemente buscar vingança contra o governo dos Estados Unidos da América:
“Você, e cada um de vocês, juram e prometem que orarão e nunca cessarão de orar ao Deus Todo-Poderoso para vingar o sangue dos profetas sobre esta nação, e que ensinarão o mesmo a seus filhos e aos filhos de seus filhos até a terceiro e quarta geração.”
Maior mudança nas vestes sagradas do templo desde a década de 1920
Há pouco menos de um ano, a Igreja lançara novos modelos dos garments, as roupas íntimas religiosas usadas por membros que receberam a cerimônia da investidura. Membros que recebem essas roupas íntimas são proibidos com juramentos solenes de remove-los, com exceções óbvias, ou de vesti-los por cima de quaisquer outras peças de vestuário. Os novos modelos trouxeram tecidos mais elásticos e mangas mais curtas para o público feminino. Alguns modelos masculinos e femininos, antes disponíveis nos EUA, também foram descontinuados, como os garments de peça única. Porém, a maior e mais inusitada inovação nas vestes mórmons está na confecção das suas quatro marcas sagradas.
Ao invés de bordadas de forma visível no exterior da peça, as marcas são impressas no avesso, de forma a não serem visíveis de fora. Além disso, devido à impressão, os novos garments têm “validade” prevista de um ano. Na compra dos novos modelos, membros SUD recebem a seguinte explicação:
Foi aprovada uma aplicação atualizada das marcas sagradas. Elas são agora impressas no interior do garment, permitindo que sejam vistas por quem o veste enquanto reduz sua visibilidade externa e aumenta o conforto do seu usuário.
As marcas são usadas para durarem mais do que o garment em condições normais de lavagem e uso (aproximadamente 50 lavagens ou um ano de uso).
Mórmons, instruídos a nunca expor ou revelar seus garments, recentemente viram a Igreja SUD publicando imagens oficiais destas roupas íntimas pela primeira vez:
História dos garments
O uso de roupas com símbolos associados à investidura foi introduzido sob a direção do Profeta Joseph Smith em 1842 em Nauvoo, Illinois. Há evidências de que os primeiros modelos confeccionados fossem constituídos por uma camisa e uma calça. Posteriormente, os primeiros iniciados do Quórum dos Ungidos passaram a adotar uma peça única, como pode-se ver neste exposé publicado em 1879 pelo jornal The Salt Lake Tribune.
O modelo de peça única era similar ao chamado union suit, roupa íntima comum nos Estados Unidos à época. Muitos mórmons fundamentalistas hoje usam exclusivamente o garment longo de peça única.
As marcas sagradas, originalmente cortadas no tecido durante a investidura e posteriormente bordadas pelo iniciado, incluíam o esquadro e o compasso, tradicionais símbolos maçônicos.
A obtenção ou confecção de garments era originalmente uma responsabilidade individual para mórmons do século 19. Já no século 20, em Utah, surgiram empresas privadas que ofereciam garments, com ou sem as marcas sagradas, e competiam entre si no mercado santo dos últimos dias. As opções de escolha estavam nos tecidos (algodão, lã, seda, etc) e mesmo nas cores (branco, bege, pêssego, etc).

Anúncio da empresa The Reliable (“A Confiável”) publicado na década de 1920 em periódicos da Igreja SUD.
Em 1923, o então Presidente da Igreja SUD Heber J. Grant approvou mudanças nas vestimentas sagradas, possibilitando o uso de mangas e pernas curtas, ainda que mantendo a peça única. Foi somente na década de 1970 que a Igreja SUD passou a incentivar o uso dos garments de duas peças (camiseta e shorts) e desincentivar o estilo tradicional.
Monopólio eclesiástico
Na década de 1930, a Igreja adentrou o mercado de garments com sua empresa Beehive Clothing Mills, em Salt Lake City, gradualmente instituindo o monopólio da confeccção e comercialização.
A expansão mundial mórmon e a construção de templos em outros países também implicou na maior demanda de roupas sagradas. A logística e custos de exportação colocaram um fim na produção exclusiva de garments na capital de Utah.
Em 1980, afirma o historiador D. Michael Quinn em seu mais recente livro sobre as finanças SUD, a Beehive Clothing Mills já possuía “fábricas auxiliares em Hunter, Utah; Manchester, Inglaterra; Cidade do México, México; e São Paulo, Brasil”.
Não perca essa série sobre ordenanças templárias mórmons:
- Parte 1 – O Templo antes dos templos e os precedentes para os Círculos de Oração
- Parte 2 – O que significavam investidura e selamento para os mórmons na década de 1830?
- Parte 3 – Simbolismo maçônico e o Ancião de Dias
- Parte 4 – O Quórum dos Ungidos, a Investidura e as Segundas Unções
- Parte 5 – No topo das montanhas
- Parte 6 – Círculos de oração, vestimentas e altares
- Parte 7 – Investidura: instruções junto ao véu
Observação:
Mórmons consideram seus rituais templários secretos sagrados e por isso não devem ser divulgados em público. Em respeito a esta sensibilidade, abstém-se aqui de publicar fotos ou vídeos do ritual templário mórmon, mesmo que eles sejam fartamente disponíveis tanto em formato de vídeo, como em formato de texto, pela internet.
Não obstante, imagens de sinais e símbolos dos rituais maçônicos aos quais Joseph Smith fora iniciado podem ser vistos aqui.
Ótima retrospectiva das mudanças nas ordenanças templárias. Essa do BY eu não sabia.
Parabéns pelo registro bem completo.
Mudanças e mais mudanças. Lembro como se fosse ontem em uma das casas ensinando um pesquisador e o companeiro dizendo que as idéias dos homens sempre muda, mas Deus não.
Quando vemos e analisamos a história da Igreja vemos que não é bem assim, pelo menos para a visão Mormon não. Mudanças são comuns seja em qualquer assunto da igreja incluindo coisas do templo.