Adoção e Salvação dos Mortos

Para Joseph Smith, a exaltação no reino celestial dependia da obediência a todos os mandamentos e o recebimento de todas as ordenanças do evangelho. Conforme tentei esboçar na primeira parte deste estudo, entre tais mandamentos e ordenanças estava a inclusão do indivíduo numa família, formada pelo matrimônio (homem e mulher) e pela adoção (homem a homem). Esses dois tipos de selamento, em suma, deveriam ligar os santos em uma única família, a família de Deus, estabelecendo na mortalidade a única estrutura que existiria na eternidade. Orson Pratt lembra o seguinte fato sobre a organização familiar futura:

Quem serão os súditos sobre os quais reinarão aqueles que forem exaltados no Reino Celestial de nosso Deus? Eles reinarão sobre os filhos do próximo? Oh, não. Sobre quem então irão reinar? Seus próprios filhos, sua própria posteridade serão os cidadãos de seus reinos; em outras palavras, a ordem patriarcal prevalecerá até as infinitas eras da eternidade, e os filhos de cada patriarca serão seus enquanto as eternidades passam. (Journal of Discourses 15:319-320)

Pelo selamento da adoção, um homem adulto era inserido na família de outro homem adulto, estabelecendo entre eles uma relação de pai e filho. Introduzida aparentemente em 1842 a um grupo chamado Quórum dos Ungidos, a lei da adoção ainda marcaria a experiência mórmon de modo mais explícito. ¹

O êxodo para o oeste e a lei da adoção

Foi essa organização familiar, construída através dos convênios da lei de adoção e do casamento patriarcal, que esteve à frente do êxodo de Nauvoo para as Montanhas Rochosas, através das companhias que conduziram a Igreja de Jesus Cristo para o futuro território de Deseret, hoje Utah. Não foi gratuitamente que a organização do êxodo foi chamada em uma revelação de “Acampamento de Israel” (D&C 136:1). “Israel” não evocava uma estrutura apostólica, mas uma organização patriarcal, familiar, tribal, a qual os pioneiros queriam restaurar. ²

Os dois relatos abaixo, de John D. Lee e Wilford Woodruff respectivamente, mostram como os grupos que deixariam Nauvoo rumo ao oeste foram organizados por critérios familiares, em que a lei da adoção estava presente:

No inverno de 1845, reuniões foram realizadas em toda a cidade de Nauvoo, e o espírito de Elias foi ensinado nas diferentes famílias como o fundamento para a ordem do casamento celestial, bem como a lei da adoção. (Life of John D. Lee, p.165)

Eu, Wilford Woodruff, organizei minha companhia familiar esta noite na minha casa, consistindo de 40 homens, a maioria chefes de família. Aqueles que se uniram a mim entraram em um convênio com mãos levantadas ao céu de manter todos os mandamentos e estatutos do Senhor nosso Deus e me apoiar em meu ofício.

Este foi um dia importante na História da Igreja em um aspecto. O Presidente Brigham Young reuniu-se com sua companhia ou organização familiar ou aqueles que foram adotados a ele ou iriam ser e os organizou em uma companhia da qual poderá crescer um povo que pode ser chamado de a tribo de Brigham Young. (…) E eles entraram em um convênio com mãos levantadas ao Céu com o Presidente Young e uns com os outros para caminhar em todas as ordenanças e mandamentos do Senhor nosso Deus. (Wilford Woodruff’s Journal, Vol. 3, p.119)

A lei da adoção e o casamento plural que haviam sido introduzidos pelo profeta aos membros do Quórum dos Ungidos e do Conselho dos 50, agora eram praticados de maneira mais aberta após o assassinato de Joseph e Hyrum Smith., dando uma nova colaração à igreja que buscava uma terra de refúgio no oeste do continente. Esses dois princípios seriam publicamente enfatizados e institucionalizados durante a liderança de Brigham Young em Winter Quarters (“Acampamento de Inverno”) e depois no oeste. Como observado por Gordon Irving,

(…) enquanto o selamento era uma doutrina aceita em 1844, os santos em geral tiveram pouca oportunidade de se familiarizarem em termos práticos com a doutrina do selamento antes da morte de Joseph Smith. ( Gordon Irving. The Law of Adoption: One Phase of the Development of the Mormon Concept of Salvation, 1830-1900. BYU Studies, n. 3, Spring 1974)

Uma vez que os selamentos não estavam reservados apenas aos vivos, devendo incluir os que estavam do outro lado do véu, além de buscar um pai digno que estivesse na linhagem do sacerdócio, um homem deveria ser também um elo para que seus próprios antepassados já falecidos pudessem entrar na família. Os antepassados – homens e mulheres – deveriam ser por salvos através do batismo e demais ordenanças realizadas no templo e então adotados como posteridade.

Aquele que na vida mortal realizava a ordenança salvava aquele que a recebia no mundo pós-mortal, tendo por isso que presidir sobre quem salvasse. Joseph Smith se referiu ao conceito de ser um salvador e presidir futuramente sobre aqueles para quem o trabalho do templo é realizado:

Use de um pouco de inteligência e sele todos os que puder e quando chegar ao céu diga a seu pai que o que você sela na terra será selado no céu. Eu passarei o portão do céu e reivindicarei o que eu selo e os que seguem a mim e a meu conselho. (Teachings of the prophet Joseph Smith, p. 340)

“Nossos mortos”

Através da lei da adoção, era dado aos santos o privilégio de tornarem salvadores de seus próprios antepassados. A afirmação de que “eles, sem nós, não podem ser aperfeiçoados – nem podemos nós, sem nossos mortos, ser aperfeiçoados”, recebia uma interpretação diferente da que tem hoje na atual teologia sud: os antepassados precisavam de um salvador que recebesse as ordenanças a seu favor e que se tornaria um elo para adentrarem a família ou reino de Deus. Estes antepassados redimidos pelas ordenanças do evangelho (caso as aceitassem) seriam então parte da posteridade daqueles que trabalharam por sua salvação.

Sobre o trabalho pelos mortos, ele [Joseph Smith] disse que na ressurreição aqueles por quem se havia trabalhado cairiam aos pés dos que haviam realizado o trabalho por eles, beijariam seus pés, abraçariam seus joelhos e manifestariam a mais grandiosa gratidão. Não entendemos que bênção essas ordenanças são para eles. (Horace Cummings, citado por N.B. Lundwall, The Vision, p. 141)

Até 1894, o trabalho de redenção dos ancestrais já mortos, ao contrário do que é realizado atualmente nos templos da Igreja sud, requeria que estes fossem adotados como posteridade daquele que realizava tal trabalho, o qual se tornava um salvador no Monte Sião:

(…) se eu tiver um pai falecido que nunca ouviu este evangelho, seria de mim requerido redimi-lo e então tê-lo adotado na família de algum homem e eu adotado a meu pai? Respondo que não. Se temos que realizar as ordenanças de redenção para nossos familiares mortos, então nos tornamos seus Salvadores; e se tivéssemos que esperar para redimir nossos parentes falecidos antes de poder nos ligar à corrente do Sacerdócio, nunca conseguiríamos. (Manuscript sermons of Brigham Young, 1:76)

O selamento entre as gerações, entre mortos e vivos, não precisava reproduzir a sequência de nascimentos; ao contrário, os antepassados se tornavam filhos e filhas, a posteridade daquele que os redimia através da obra vicária no templo. A adoção, portanto, tinha um duplo aspecto: o homem era ligado à família real de Deus e Seu Filho, através de Joseph Smith, sendo selado a ele ou a outro homem que já estive selado à sua família, qualificando-se, então, para servir como um elo para seus próprios ancestrais, os quais passavam a ser sua posteridade.

Hoje, o princípio da adoção não apenas faz parte do passado esquecido pelos sud, como sequer consta em qualquer genealogia na base de dados do Family Search. Como a lei da adoção foi mudada e posteriormente abandonada? Isso será abordado na parte final deste estudo.

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NOTAS

 
1. Não há registro conhecido de uma revelação escrita sobre a lei da adoção, tampouco quando os primeiros selamentos desse tipo foram realizados pela primeira vez. A provável instituição da prática em 1842 seguiu o início dos selamentos de mulheres a seu esposo, em 1841 (sendo o primeiro selamento registrado o de Louisa Beaman ao profeta Joseph Smith em abril daquele ano), e a administração da investidura (em maio de 1842).
 
2. Durante o despertar religioso nos EUA do século XIX, não eram poucos os grupos que buscavam um retorno à pureza da igreja cristã primitiva; porém, o primitivismo mórmon buscava muito além da igreja neo-testamentária, indo até o passado israelita e os patriarcas. Enquanto a autoridade necessária para a restauração da ordem apostólica havia sido recebida de três personagens do Novo Testamento – Pedro, Tiago e João – em junho de 1830 (D&C 27:12; 128:20), chaves pertencentes à ordem patriarcal foram outorgadas, em abril de 1836, por outros três personagens relacionados ao Velho Testamento – Moisés e Elias, o profeta (em inglês, “Elijah”) e um terceiro mensageiro (também chamado de “Elias” na tradução brasileira de Doutrina e Convênios; em inglês, “Elias”) representando a autoridade de Abraão (D&C 110). (Ainda que a identidade de Elias não seja claramente estabelecida, baseado em uma possível relação com D&C 27:6-7, é especulado que esse Elias possa ser Noé.) Mereceria mais atenção a relação entre a restauração dessas chaves a Joseph Smith e Oliver Cowdery no templo de Kirtland e o estabelecimento das ordenanças em Nauvoo.

11 comentários sobre “Adoção e Salvação dos Mortos

  1. Será que nossos antigos profetas realmente possuíam o conhecimento correto das ordenanças de selamento ? Tamanha confusão não causa o certo grau de desconfiança quanto a autenticidade desta doutrina(não me refiro as demais, pois aceito a possibilidade de erros pontuais devidos a prepotência humana)?

    • Fabiano,

      acredito que entenda a surpresa sobre a doutrina da adoção e o seu questionamento acima. Mas o mesmo pode ser questionado em tempo presente: possuímos hoje o conhecimento correto das ordenanças de selamento?

      Ou as leis divinas são dadas de acordo com a capacidade de aprendizado do povo, de forma que toda lei é correta para o povo que a adota?

      No aspecto histórico, a antiga lei da adoção levava às últimas consequência a doutrina de uma coligação, fazendo literal o entendimento de que a igreja deveria ser o povo de Deus. Ou família de Deus.

  2. No livro Ensinamentos do Presidente Wilford Woodrug diz:
    “Nas décadas que se seguiram,os sud sabiam que havia um “elo (…)de um ou outro tipo entre os pais e os filhos”.(D&c 128:18)Contudo,seus procedimentos não estavam completamente em ordem;conforme o Presidente Woodruff observou,o Profeta Joseph não vivera o bastante para “entrar em detalhes sobre essas coisas”.Agindo segundo “toda a luz e o conhecimento que [eles]possuíam,com frequência se selavam (ou eram “adotados”)a Joseph,Brigham Young ou outros líderes da igreja da época em vez de serem selados aos seus próprios pais.Como Presidente da igreja,o Presidente Woodruff citou essa prática dizendo:”Não cumprimos plenamente esses príncipios no tocante as revelações de Deus a nós para selarmos os corações dos pais aos filhos e dos filhos aos pais.Não me sinto satisfeito ,tampouco o Presidente John Taylor nem nenhum outro homem desde o Profeta Joseph que tenha assistido a ordenança de adoção nos templos de nosso Deus.Sentimos que havia mais a ser revelado sobre este assunto do que já havíamos recebido.”

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