Somos aquilo que recordamos e também o que resolvemos esquecer.
Iván Izquierdo
Na última terça-feira, o veto ao casamento entre pessoas de mesmo sexo foi derrubado na Califórnia. O veto conhecido como “proposição 8” havia sido aprovado em um referendo de 2008, quando os californianos reverteram, por 52% dos votos, a decisão da Suprema Corte estadual que autorizava tais casamentos. Nesta semana, porém, o veto foi considerado inconstitucional por um tribunal de apelação, visto que a Proposição 8, de acordo com os juízes, contradizia a emenda 14 da constituição dos EUA, que garante a proteção igualitária a todos os seus cidadãos. O relatório do tribunal afirmou que
A Proposição 8 não serve a outro propósito e não tem efeito a não ser diminuir o status e a dignidade humana de gays e lésbicas na Califórnia e reclassificar oficialmente suas relações e famílias como inferiores àquelas de casais de sexos opostos. A Constituição simplesmente não permite “leis desse tipo”.
Outros recursos, no entanto, estão ainda por vir, de forma que a disputa em torno do casamento gay na Califórnia está longe de terminar. A
primeira reação contrária à decisão estava dentro do próprio tribunal. O juíz N. Randy Smith, natural de Utah e formado pela BYU, foi voto vencido entre os três juízes. Nesse mesmo dia, A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias publicou uma declaração, contrária à nova decisão:
A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias lamenta a decisão de hoje. Eleitores da Califórnia por duas vezes determinaram em uma eleição geral que o casamento deveria ser reconhecido entre um homem e uma mulher. Sempre tivemos essa visão. Tribunais não deveriam alterar essa definição, especialmente quando o povo da Califórnia se manifestou tão claramente sobre o assunto.
Milhões de leitores da Califórnia enviaram uma mensagem que o casamento tradicional é crucial para a sociedade. Eles expressaram seu desejo, através de processo democrático, de manter o casamento tradicional como o alicerce da sociedade, como há sido por gerações.
A Igreja sud não foi a única instituição religiosa a promover a Proposição 8 e uma motivação moral e religiosa parece ter sido bastante presente na campanha. Vários outros grupos religiosos -incluindo católicos romanos, cristãos ortodoxos orientais, evangélicos e judeus ortodoxos – haviam tomado parte na campanha a favor do veto, motivados pela defesa do “casamento tradicional”. Pesquisas também indicaram uma forte adesão da população negra, o que dificilmente poderia ser atribuído à Igreja sud. No entanto, apesar de toda a diversidade entre os apoiadores da proposição 8, é inegável que o esforço humano empregado e as doações em dinheiro para a campanha por parte da Igreja sud sobrepujaram as de qualquer outra organização religiosa. A Igreja sud chegou inclusive a ser multada por uma comissão estadual que investigava os financiamentos de campanha, por irregularidades nos registros de doações. Alguns membros sud na Califórnia expressaram o desconforto que sentiram com a enorme pressão nos serviços dominicais e contatos com líderes eclesiásticos e até mesmo no Brasil eu me vi em meio a uma conversa tendo que explicar por que mórmons estavam supostamente “contra os gays”.
O que levou a Igreja sud a se embrenhar nessa questão política? Ressalte-se que apenas a questão doutrinária de conceber o homossexualismo como pecado e a suposta necessidade de defender o modelo tradicional de família não são em si suficientes para uma igreja que defende e se beneficia, ao redor do mundo, da separação entre religião e estado. Se cada princípio ensinado pela Igreja sud a levasse a ações políticas, teríamos a igreja, por ex, lançando uma campanha pela proibição da tatuagem(!) ou se envolvendo no intrincado debate público sobre aborto. Também caso a posição doutrinária fosse a única ou maior motivação, a posição da Igreja sud seria a mesma em todos os países. Mas, como vimos no Brasil, a Igreja (felizmente) não procurou sequer se manifestar publicamente sobre o debate em torno da questão em nosso país.
Dentre as possíveis motivações para os líderes da Igreja sud darem tanta ênfase à iniciativa de impedir o casamento gay nos EUA, segundo algumas opiniões, está a tentativa de aproximação ideológica com o público evangélico norte-americano que, em geral, vê os mórmons como não-cristãos. A atitude militante da Igreja sud liderando uma causa conservadora de muitos cristãos norte-americanos aparentemente está dando bons frutos à campanha de Mit Romney. Não sabemos como será tratado o tópico no embate com Obama, mas nas prévias republicanas, Romney – como não podia deixar de ser – tira vantagem entre a direita republicana.
(Leia também: L. F. Veríssimo fala sobre Romney e evidencia a persistência da poligamia como imagem-chave do mormonismo)Outro possível motivo estaria na abertura que o casamento entre pessoas do mesmo sexo daria para a descriminalização da poligamia nos EUA, praticada por milhares de “outros mórmons”, não filiados à Igreja sud. Neste momento em Utah, por ex., uma família de mórmons fundamentalistas está pedindo a inconstitucionalidade da lei anti-bigamia. Por mais distante que esteja o passado polígamo da Igreja sud, esse parece ser um fantasma do qual a própria Igreja quer se livrar. E aqui voltamos à declaração divulgada pela Igreja na terça-feira.
Como fica claro na declaração da hierarquia sud, a Proposição 8 também é anti-poligamia: “A Igreja (…) lamenta a decisão de hoje. Eleitores da Califórnia por duas vezes determinaram (…) que o casamento deveria ser reconhecido entre um homem e uma mulher” (grifo nosso). A inclusão do artigo indefinido singular não é um mero detalhe. Em uma importante declaração de 1995, A Família: proclamação ao mundo, lê-se “marriage between man and woman” – casamento entre homem e mulher – ou, pela tradução oficial da igreja ao português, casamento entre “o homem e a mulher“, onde o artigo definido não traz a ideia singular tão presente em “um homem e uma mulher”. A ênfase na monogamia expressa na declaração da última terça até poderia ser um ponto livre de conflito, dada a mudança no entendimento oficial sud sobre casamento, desde a proibição total do casamento plural pela Igreja. O que mais compromete a declaração é a frase seguinte: “Sempre tivemos essa visão”. Sempre?
Joseph F. Smith, posando na foto acima com sua extensa família, com certeza não iria corroborar esse “sempre”. Nem ele, nem gerações de homens e mulheres que viveram as mais duras perseguições e provações por causa do casamento plural. Para colocar a questão em termos de número na hierarquia máxima da Igreja, tivemos sete presidentes da igreja que estiveram em algum momento envolvidos com a prática do casamento plural (de Joseph Smith a Heber J. Grant) e nove presidentes que foram sempre monogâmicos (de George Albert Smith a Thomas S. Monson). O presente sud é monogâmico e mesmo anti-polígamo. Tudo bem. Mas estaria correta essa edição da história ao se declarar que “sempre” fomos a favor do casamento entre “um homem e uma mulher” e contrários a qualquer outro arranjo?
No séc. XIX, A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias sofreu a perseguição do governo federal americano. Homens e mulheres mórmons foram encarcerados por “coabitação ilegal” e a Igreja chegou a ser legalmente desconstituída. O estado tinha o direito de fazer isso com os mórmons?
Um grave erro foi cometido contra a liberdade religiosa de um grupo minoritário, privados de seus direitos civis pela impopularidade de seus arranjos familiares. É portanto questionável que a mesma Igreja sud hoje considere o estado como tendo o direito, ou mesmo o dever, de definir o que é casamento de modo a excluir outros arranjos não-tradicionais.
Ou será que a Igreja sud um dia ainda agradecerá aos Estados Unidos da América que “se manifestou tão claramente” e “enviaram uma mensagem”, através da usurpação de direitos e da violência estatal, para que os pioneiros mórmons pudessem aprender a “manter o casamento tradicional como o alicerce da sociedade, como há sido por gerações”, ou seja, “entre um homem e uma mulher”?
Existe algo de perverso na tentativa de barrar o direito ao casamento de uma parcela da população. Perverso não só contra os homossexuais, mas contra a própria memória e identidade mórmon.
Perfeito!
Pois é, e na biblia diz que “poligamia” é pecado! Abominação aos olhos do Senhor é so procurar lá…
Bom, estou certo de que a Bíblia pode servir de base a muitas “listas de pecado”. Não só para aquilo que seu texto classifica como tal, mas também para aquilo que está ali como algo normal ou até mesmo ordenado pelo Deus bíblico.
Caro heberll, a Bíblia tem cerca de 1200 páginas. Que tal vc ajudar a gente e indicar os textos que tratam a poligamia como pecado e abominação ao Senhor? Detalhe: não sou favorável à poligamia; apenas não conheço texto bíblico a esse respeito.