A Errônea Associação do Catolicismo à Corrupção das Escrituras

Um dos fundamentos doutrinários dos santos dos últimos dias é a afirmação de que as escrituras bíblicas não permaneceram intactas desde a pena de profetas e apóstolos até nossos dias, mas sofreram adulterações de forma que passagens foram retiradas, editadas ou acrescentadas.

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Estudo do Retrato do Papa Inocêncio X por Velázquez, de Francis Bacon (1953)

Em 1 Néfi 13, lemos sobre a visão recebida por Néfi da instituição responsável pela corrupção do Novo Testamento, chamada de “grande e abominável igreja”. Muitos santos dos últimos dias interpretam essa instituição como sendo a Igreja Católica Apostólica Romana, embora a ação da “grande e abominável igreja” sobre as escrituras, descrita no Livro de Mórmon, não possa ter nenhuma relação histórica com o catolicismo romano.

 

O que diz o Livro de Mórmon

No Livro de Mórmon, a instituição “grande e abominável” descrita na visão de Néfi apresenta as seguintes características:

– é formada “entre as nações dos gentios” (versículo 4);

– promove tortura, perseguição, exílio e assassinato dos “santos de Deus” (v.5 e 9);

– possui muita riqueza material, a qual é empregada para a obtenção de “ouro e prata e sedas e escarlatas e linho finamente tecido e […] vestimentas preciosas; e […] muitas meretrizes”, coisas que são o seu foco maior (v. 7 e 8);

– realiza uma edição do Novo Testamento, tirando dele “partes que são claras e sumamente preciosas; e também muitos convênios do Senhor” (v. 26).

A identificação da Igreja Católica Apostólica Romana com os primeiros três itens acima faria sentido, tendo em mente sua origem, episódios históricos nefastos como a Inquisição ou o enorme poder econômico de que desfrutava. No entanto, a corrupção das escrituras bíblicas não lhe pode ser atribuída. Por que não?

O que diz a história

Em primeiro lugar, a Igreja Católica Romana sequer existia quando ocorreu a formação do cânon bíblico cristão. O processo descrito na visão apocalíptica de Néfi se dá após as escrituras do Novo Testamento – “o evangelho do Cordeiro”- serem “transmitidas dos judeus aos gentios pela mão dos doze apóstolos”. Quando isso se deu?

Muitos estudiosos contemporâneos consideram que 1 Tessalonicenses seja o livro mais antigo do Novo Testamento, escrito em aproximadamente 51 d.C. Os textos agregados ao cânon mais tarde teriam chegado à compilação cristã no máximo até o ano 150. Ou seja, o processo de formação do cânon teria acontecido entre os primeiros dois séculos da era cristã, o que colocaria “a grande e abominável igreja” agindo nesse mesmo período de tempo.

A designação “católico romano” apenas faz sentido a partir de 1054, quando ocorre o “grande cisma do oriente“, a cisão entre os grupos cristãos que seguem o bispo de Roma e utilizam o latim como língua eclesiástica e aqueles que seguem o bispo de Constantinopla e utilizam o grego. A Bíblia cristã há muito havia sido transmitida aos gentios.

Muitos erroneamente creem que o status de religião aceita dado por Constantino ao cristianismo, em 313, equivale à formação da Igreja Católica Apostólica Romana. Na verdade, Constantino tirou o cristianismo da ilegalidade e abriu o caminho para sua adoção como religião oficial do estado romano, algo que aconteceria décadas depois, sob o imperador Teodósio, em 380. De qualquer forma, Constantino não se envolveu no debate sobre o cânon bíblico, o qual aparentemente não era a maior polêmica do dia entre os cristãos.

O que dizem os membros da Igreja sud

Alguns ramos do protestantismo evangélico tinham a crença de que a “grande prostituta” mencionada em Apocalipse 17 era a própria Igreja Católica, da qual indiretamente descendiam. Essa crença aparentemente foi herdada por alguns dos primeiros mórmons do séc. XIX, incluindo líderes como Orson Pratt. No entanto, as ideias de Pratt nunca se popularizaram totalmente entre os membros. Já no séc. XX, Bruce R. McConkie teve muito mais alcance através do seu bestseller Mormon Doctrine. Na primeira edição do livro, em 1958, o apóstolo afirmava:

É também ao Livro de Mórmon que nos voltamos para a mais clara descrição da Igreja Católica como a grande e abominável igreja. Néfi viu essa “igreja que é a mais abominável do que todas as outras igrejas” em visão. Ele viu “que o diabo era seu fundador” (…).

A pedido da Primeira Presidência – que censurou McConkie pelos erros doutrinário que a obra continha -, essa afirmação sobre o catolicismo foi uma das partes retiradas para as edições seguintes do livro. Contudo, a afirmação de McConkie sobre o catolicismo parece ter se difundido no imaginário mórmon e ter sido percebida pelos membros como uma “doutrina profunda” ou “carne” do evangelho.

Eu já tinha ouvido na Igreja referências ao catolicismo romano como sendo o responsável pela corrupção das escrituras descrita em 1 Néfi 13. Geralmente eram referências sutis, feitas como se um segredo para iniciados estivesse sendo partilhado. Mas em fevereiro deste ano eu escutei um amigo discursar na reunião sacramental e dizer de forma explícita que a Igreja Católica havia corrompido a Bíblia. Fiquei então curioso para saber o quão difundida era tal visão.

Pesquisa entre mórmons brasileiros

Através de uma enquete no site Vozes Mórmons, perguntei aos leitores se eles já haviam escutado na igreja essa afirmação; caso já tivessem, em que reunião havia sido; e se eles acreditavam na mesma afirmação. Essa pesquisa informal apresentou limitações que devem ser consideradas e, espero, evitadas em estudos futuros do tema. [1] Em suma, trata-se de uma pesquisa informal,  estatisticamente insignificante, com valor ilustrativo.

Um crença disseminada

Um total de 35 pessoas responderam à seguinte pergunta: “Em alguma aula, conferência ou reunião de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, você já escutou alguma referência à Igreja Católica Apostólica Romana como sendo a instituição responsável pela deturpação ou corrupção das escrituras?”. Dessas, 51.43% (18 participantes) responderam “sim”, enquanto “não” recebeu 48.57% das resposta (17 participantes). A diferença mínima nos sugere que a identificação da Igreja Católica com a “grande e abominável igreja” é fortemente disseminada, ainda que não atinja todos os membros sud. A pergunta seguinte, porém, nos ajuda a visualizar que dinâmica a difusão dessa crença apresenta.

Escola Dominical e SEI lideram

Todos os que à primeira pergunta houvessem respondido “sim”, foram convidados a responder em que ambientes da Igreja tinham escutado a crença em questão. Estavam listadas como opções todas as reuniões dominicais da Igreja (com exceção da Primária), além de conferências missionárias e das aulas do Instituto e Seminário. Cada participante poderia escolher quantas opções se aplicassem. Com um total de 55 respostas, cada participante teria escolhido em média 3 opções, o que sugere que a exposição a esse ensinamento vem de múltiplas fontes.

A classe de Doutrinas do Evangelho (“membros antigos” ou MAS) foi de longe a mais indicada na enquete, com 20% das escolhas, mais que o dobro da classe de Princípios do Evangelho (“membros novos e visitantes”), com 9,09%. As duas classes, somadas à classe de Preparação para o Templo (1,82%), sugerem que a Escola Dominical seja a principal responsável pela disseminação dessa crença. Aos membros que afirmaram terem sido ensinados tal visão do catolicismo, apenas um não aprendeu isso nas aulas da Escola Dominical.

As duas instituições do Sistema Educacional da Igreja (SEI) presentes no Brasil aparecem na enquete como a segunda maior fonte disseminadora da crença: metade dos participantes indicou uma aula do Instituto de Religião e 1/3 deles, uma aula do Seminário. Na amostra da enquete, o SEI foi o ambiente onde 83% dos participantes tomaram contato com essa interpretação sobre a “grande e abominável igreja”.

Embora sejam as aulas o ambiente preferido para a difundir essa interpretação escriturística errônea, o mesmo índice de 9,09% das aulas de novos conversos foi também atingido pela Reunião Sacramental, representando a indicação de mais de 1/4 dos participantes.

Homens à frente das mulheres

Embora as aulas do Seminário e Instituto, da Escola Dominical e os discursos na Reunião Sacramental atinjam pessoas de ambos os sexos, os resultados da enquete sugerem que um ambiente exclusivamente masculino favorece a disseminação dessa crença. As reuniões do Quórum de Élderes ou Grupo de Sumo-Sacerdotes tiveram três vezes mais indicações do que as reuniões da Sociedade de Socorro – 10,91% e 3,64% respectivamente. A diferença foi ainda maior entre os que tiveram contato com a crença na adolescência: 7.27% dos participantes haviam sido ensinados em quóruns do Sacerdócio Aarônico e  1.82% na Organização das Moças. [2]

Ensino eficaz

A terceira e última pergunta da enquete era “Você acredita que a Igreja Católica tenha sido responsável pela adulteração da Bíblia, como mencionada no Livro de Mórmon?”. 60,71% responderam que sim; 21,43%, não; e 17,86% disseram não saber ou não ter certeza. [3] Os dados sugerem que para uma crença não-oficial, ausente de publicações oficiais da Igreja, tal percepção do catolicismo romano tem uma ampla aceitação entre os membros.

Conclusão

Desprovida de embasamento histórico e sem endosso oficial da Igreja sud, a crença de que a Igreja Católica tenha sido responsável pela adulteração do cânon bíblico encontra popularidade entre os santos dos últimos dias brasileiros. Os dados de nossa pesquisa informal confirmam minha experiência pessoal como membro.

Nesse processo, adolescentes e jovens adultos parecem ser um público especialmente almejado, como sugerem os números acima para o Seminário e Instituto. As aulas da Escola Dominical também são um momento privilegiado de difusão da crença. Essa difusão, pelo que as respostas da enquete sugerem, é mais comum no ambiente das aulas do que no espaço mais público da Reunião Sacramental. Também o universo masculino dos quóruns do sacerdócios de Melquisedeque e Aarônico tende a ser mais receptivo para a interpretação anti-católica do que os ambientes femininos da Sociedade de Socorro e Organização das Moças.

A disseminação dessa crença se dá nos espaços físicos de propriedade da Igreja sud e/ou em suas reuniões e atividades oficiais, tendo como agentes tanto membros laicos quanto funcionários do Sistema Educacional da Igreja. Esse uso de espaços e recursos da Igreja, aliado à forte ênfase em crer no que é ensinado por professores e líderes eclesiásticos, é um forte componente a promover tal interpretação como suposto fato histórico e doutrinário.

Espero que haja acadêmicos dispostos a investigar mais profundamente esse fenômeno cultural mórmon através de uma pesquisa formal ampla em nosso país. Também seria muito relevante comparar as crenças de mórmons brasileiros com as de seus pares em outros países e verificar semelhanças e diferenças.


Notas

[1] Não se sabe se de fato todos os que responderam a enquete eram membros da Igreja SUD ou quanto tempo de filiação à Igreja possuíam; tampouco grau de escolaridade, região do país, gênero ou idade foram incluídos na pesquisa, fatores que poderiam influenciar as respostas.

[2] Novamente, reconheço a falha da enquete ao não incluir o número de homens e mulheres, o que teria sido importante para a interpretação mais precisa desses dados.

[3] Para futuras pesquisas, seria interessante observar que proporção de pessoas expostas a tal crença na Igreja sud acreditaram nela como fato, e que relação poderia ser traçada entre a absorção dessa crença e a idade do contato, posição daquele que ensinou, nível de escolaridade do membro, etc. Da mesma forma, pesquisas mais detalhadas poderiam averiguar a proporção de pessoas que mesmo não sendo ensinadas na Igreja sud essa interpretação vieram – pelo estudo pessoal ou crenças anteriores – a identificar a Igreja Católica como a instituição que corrompeu as escrituras bíblicas.

52 comentários sobre “A Errônea Associação do Catolicismo à Corrupção das Escrituras

  1. A chave dessa profecia esta em 1Nefi:13 no versiculo 5 indica claramente que essa profecia ainda nao foi cumprida pois ela diz que a igreja abominavel mata, tortura, os mantem em cativeiros. No versiculo 9 novamente diz que ela destroi os Santos e os prende em cativeiros, ja no versiculo 13 traz mais sentido para a Profecia, importante lembrar que e Nefi que esta recebendo a Profecia e escrevendo a mesma, ele diz que que os gentios sairam do cativeiro(os gentios Europeus nao estavam em cativeiro) na verdade a Europa era o lugar mais livre do mundo na epoca da colonizacao das Americas. No capt. 14 versiculo 11 Nefi ve que a igreja abminavel formada por Lucifer sentaria sobre muitas aguas (irreantum) que para os Nefitas e o Oceano Pacifico tambem e o local da grande e abominavel igreja, indica que essa igreja ainda sera formada e tera sua sede no Oeste das Americas no Oceano Pacifico e dela ela tera dominio sobre toda a terra, provavelmente technologia avancada permitira uma influencia ainda mais forte sobre os povos. As Profecias de Nefi sao claras e muitas delas ainda nao se cumpriram. A verdadeira Igreja do Cordeiro ainda sera estabelecida e todas as igrejas e organizacoes irao se afiliar a ela ou ser separada dela e se juntar a igreja do diabo (versiculo 10 no capitulo 14) deixa claro sobre essa dividao, pois o Anjo diz que nesse tempo havera apenas duas igrejas, a do cordeiro e a do diabo. Aqueles que achavam que a igreja Catolica era a grande abominavel igreja certamente nao entedem muito bem as escrituras.

  2. Antonio, eu gostaria de fazer uma pergunta da qual não sei se voce pode ajudar.
    Eu gostaria de saber por que escolhemos o modelo protestante de Biblia e não o Catolico.
    Na edição Catolica, mesmo com sete livros a mais ainda é imcompleta e a edição protestante mais imcompleta ainda. Por quê usamos ela ?
    Um antigo Bispo de minha Ala disse que que poderiamos ler os outros textos e mais os apocrifos a titulo de estudo, e mais, disse que também se tratavam de escrituras, já que testificavam do Evangelho de Cristo, então :
    por quê ?

    • Joseph Smith foi mais ou menos influenciado pelo movimento chamado de o grande despertar que tomou conta do Leste Americano no seculo 18, muitos dos imigrantes vindo da Europa eram Protestantes, o ambiente religioso da epoca era mais protestante Luthero do que Catolico.

      • Fábio, a influência luterana sobre Joseph Smith pessoalmente e sobre a região da Nova Inglaterra onde ele nasceu e viveu é mínima, se é que existente. As concentrações de luteranos nos EUA da época, e no período colonial (pré-1776) estavam em outros estados e quase todos seus membros eram de origem alemã, a língua que falavam era alemã. Joseph Smith foi influenciado pelo presbiterianismo (calvinista) e pelo metodismo (John Wesley, que foi pastor anglicano, de tendência teológica arminiana). – A grande maioria dos imigrantes que chegava nos EUA até meados do século XIX eram, sim, protestantes. A grande imigração católica começou com as vagas enormes de irlandeses, depois vieram os alemães católicos, italianos, poloneses, etc.

    • Maurício, a Bíblia que Joseph Smith usava (se bem me lembro do que li) era a King James com os apócrifos do Antigo Testamento. Esses livros eram impressos, em regra, entre as duas grandes partes da Bíblia cristã, e os leitores sabiam que não tinham (para eles, como protestantes) o mesmo valor que os outros, e tampouco eram considerados como inspirados. Daí, o costume continuou de se usarem somente versões da Bíblia sem os apócrifos veterotestamentários. – Não sei dizer, também, onde é que os apócrifos (do Antigo Testamento) pudessem testemunhar do “evangelho de Cristo”, já que Jesus de Nazaré nasceu um bom tempo depois de terem sido escritos. A palavra hebraica “mashiach”, cuja tradução grega é “christos” (“o ungido”, vejam a palavra portuguesa “crisma”, que vem também dessa raiz), é aplicada no AT não no sentido de um personagem divino ou semi-humano, mas em alguém escolhido por Deus (ou pelo povo) com uma missão especial. – Quanto aos apócrifos e pseudepígrafos do NT, não tenho conhecimento de nenhuma igreja cristã que os tenha em seu cânon: aí, o trabalho de supressão foi muito maior. Interessante também notar que, dos apócrifos veterotestamentários, não subsiste nenhuma versão em hebraico: o que temos são textos gregos (na tradução da Septuaginta) e alguns cópticos ou amáricos.

      • Fábio, eu não diria que Joseph foi influenciado muito pelo calvinismo; talvez não tenha me expressado bem. Pelo menos no Livro de Mórmon e em seus escritos posteriores, Joseph estava mais próximo de uma visão arminiana ou universalista (do universalismo, uma corrente teólogica que surgiu no fim do século XVIII), com a possibilidade de uma salvação (no sentido de salvação do fogo do inferno) universal para todos os seres humanos, do que da visão calvinista clássica, em que alguns foram predestinados desde a criação do mundo para a salvação e, em algumas correntes subcalvinistas, outros para a “perdição” eterna. Joseph definitivamente não esposava essa ideia, apesar de vários membros de sua família terem sido membros da igreja presbiteriana local (como sua mãe). Joseph foi membro, ou pelo menos frequentador assíduo, da igreja metodista nos anos depois de 1820.

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