Misticismo e ortodoxia

O mormonismo tem sido uma tradição religiosa marcada por duas grandes tendências: o misticismo e a ortodoxia. Das revelações e outras experiências sobrenaturais de Joseph Smith até a formação de uma complexa estrutura que governa a Igreja em escala mundial, houve um extenso caminho a ser percorrido, ao longo do qual a ênfase original na revelação direta e a responsabilidade individual de cada membro por sua orientação espiritual foi sendo relativizada em certos pontos. Ainda que não sejam palavras ou conceitos comumente usados entre os santos dos últimos dias, misticismo e ortodoxia estão presentes na história mórmon mais do que se poderia imaginar. Neste breve artigo, tentarei esboçar como essas duas tendências se manifestaram e manifestam na Igreja sud.

Uso aqui o termo misticismo para me referir à abordagem religiosa que enfatiza a experiência direta e pessoal com o divino, através de experiências que não são mediadas por outros indivíduos ou instituições, que foge aos limites do conhecimento lógico-racional. Por essa concepção, todos os profetas israelitas seriam primeiramente místicos que conheceram o Deus de seus ancestrais não apenas por escrituras ou tradições, mas pelo contato pessoal.

A ortodoxia, por outro lado, como utilizo aqui, refere-se à percepção de que um conjunto de crenças religiosas aprovadas por um grupo ou instituição constituem para seus aderentes a “crença correta” e que, por conseguinte, a diversidade ou discordância dela é necessariamente prejudicial. No pensamento ortodoxo, há uma ênfase da autoridade daqueles que formulam e interpretam o credo.

Uma religião mística e familiar

Joseph Smith nasceu em uma família marcada pela busca espiritual. Experiências místicas de seu pai e avô paterno, por exemplo, são alguns dos elementos que compõe o cenário em que se forma o jovem Joseph. A natureza mística original do mormonismo está portanto fortemente ligada à família Smith: “antes de ser uma organização, o mormonismo era um despertar religioso particular em uma única família”, afirma D. Michael Quinn. [1] Marcado por esse ambiente, Joseph relatou durante sua vida ter diversas experiências espirituais, iniciando com a visitação recebida de Deus e Jesus Cristo durante sua adolescência, passando pela ministração de antigos profetas ressuscitados e o recebimento de diversas revelações divinas. Dessa forma, não seria exagero afirmar que o mormonismo constitui uma tradição religiosa fundamentada na experiência mística, ou seja, na experiência espiritual direta com a deidade.

Um místico é uma pessoa que reconhece a realidade do mundo spiritual e comunga com ele. É uma pessoa que busca Sabedoria, Conhecimento, Poder e Favor de Seres espirituais. Esta é a própria essência do misticismo (…) [2]

Pela definição acima, aquilo que distingue o misticismo de outras expressões de religiosidade é justamente essa comunicação direta que o indivíduo tenta estabelecer com os seres divinos. Um profeta (ou profetisa) seria um místico por excelência. Seu entendimento, portanto, transcende aquele obtido pela leitura dos textos sagrados porque provém de uma experiência pessoal. Sua comunicação com a deidade e seus mensageiros é o que o une ou re-une ao mundo celeste, cumprindo assim o significado literal da palavra religião: re-ligar.

Em Joseph Smith há uma ênfase na experiência espiritual de cada indivíduo, o qual não deveria depender da experiência alheia:

Ler a experiência dos outros ou as revelações dadas a eles, nunca pode nos dar uma visão ampla de nossa condição e verdadeira relação com Deus. O conhecimento dessas coisas só pode ser obtido pela experiência nessas coisas, através da ordenança de Deus estabelecida para este sentido. [3]

Joseph e sua luta contra a ortodoxia

Os ensinamentos de Joseph Smith se colocam em oposição à tradição protestante e a maior parte do cristianismo. Em sua visão mística do evangelho, não havia muito espaço para o formalismo, a rigidez e um conjunto imutável de verdades. A verdade era vista por ele como eterna e infinita, não passível de ser confinada a um conjunto de afirmações.

Questionado sobre as diferenças entre “os santos [dos últimos dias] e os sectários” (membros das diferentes denominações cristãs), Joseph Smith explicou que os últimos eram

todos circunscritos por algum credo peculiar, que privava seus membros do privilégio de acreditar em algo que não estivesse contido nele, enquanto os Santos dos Últimos Dias não têm um credo, mas estão prontos para acreditarem em todos os princípios verdadeiros que existem, à medida que são manifestos de tempos em tempos. [4]

A experiência espiritual direta é, assim, o extremo oposto da ortodoxia, cuja doutrina pode ser limitada a um credo, ou seja, conjunto finito de crenças. Muitos leitores talvez identifiquem as Regras de Fé como um credo mórmon. Porém, é importante  lembrar que elas não englobam a totalidade de crenças do evangelho restaurado e nem sequer foram originalmente escritas para os membros da Igreja, mas foram redigidas por Joseph Smith como uma exposição das suas crenças aos leitores “gentios” de um jornal norte-americano. As Regras de Fé foram incorporadas ao cânon sud em 1880 e novamente “reforçadas” como escritura em 1890, na mesma conferência que propôs o Manifesto.

Joseph Smith nunca propôs um credo; ao contrário, ensinou sobre a necessidade de buscar constantemente a verdade, ao invés de cercá-la com um muro. Lendo os ensinamentos de Joseph conforme registrados por ele e seus contemporâneos, pode-se ver também claramente a evolução de seu pensamento. Ele não permaneceu um “ortodoxo” em sua própria teologia, mas aprendeu e ampliou sua visão. A Igreja de Cristo formada em 1830 em Palmyra possuía doutrinas e organização totalmente diferentes da Igreja deixada por Joseph em 1844 em Nauvoo. Grande parte desse processo pode ser entendido como fruto das experiências que Joseph ao longo dos anos, incluindo obviamente suas experiências místicas que o levaram a conceber Deus como um homem exaltado e tantas outras doutrinas que chocaram (e ainda chocam) a cristandade e – não podemos omitir esta constatação – chocaram (e ainda chocam) muitos santos dos últimos dias. Joseph ilustra o homem descrito por Heráclito que não podia entrar duas vezes no rio: ele mudava a cada vez, assim como as águas que o recebiam.

Para Joseph, revelação divina e ortodoxia não podiam ocupar o mesmo espaço. Em referência ao drama que era encenado nos templos mórmons, Janice Allred explica como a ortodoxia era retratada como um substituto satânico à obtenção de revelação divina:

Pregas a religião ortodoxa? É uma pergunta de Satanás. A religião ortodoxa é o que ele oferece a Adão e Eva como um substituto para o que eles estão buscando. [5]

Uma ortodoxia mórmon

Essa percepção mórmon original sofreu uma forte transformação, à medida em que a Igreja construiu sua própria ortodoxia. Distante da liderança carismática de Joseph Smith, a Igreja sofreu ao longo do tempo mudanças cada vez maiores em sua hierarquia, a qual se passou a se assemelhar a uma burocracia, bem como mudanças doutrinárias, as quais tornaram a Igreja mais semelhante às denominações protestantes, sob a constante assimilação da Igreja pela cultura norte-americana. Pronunciamentos contendo a frase “Assim diz o Senhor” foram diminuindo até saírem de cena.

Um dos mais influentes apóstolos da Igreja SUD no século XX, Bruce R. McConkie, afirmou a necessidade de um pensamento ortodoxo entre seus membros:

No sentido verdadeiro, ortodoxia consiste em acreditar naquilo que está em harmonia com as escrituras. Portanto, a ortodoxia do evangelho requer a crença nas verdades que hão sido reveladas nesta dispensação através de Joseph Smith, e como são compreendidas e interpretadas pelos oráculos vivos que possuem o manto do Profeta.[6]

Ao mesmo tempo em que McConkie coloca as verdades reveladas através de Joseph Smith como um parâmetro de crenças corretas, ele acaba por limitar tais crenças à formulação contemporânea que recebem dos líderes eclesiásticos atuais, expressando o entendimento de que, como coloca Allred, a “ortodoxia no final depende de autoridade ao invés de verdade”.

O curioso nessa construção da ortodoxia é como o próprio princípio de revelação contínua – o qual prevê a mudança e impediria assim um pensamento ortodoxo entre os santos – acaba por ser usado em sentido inverso, para justificar mudanças doutrinárias, hierárquicas ou administrativas que fortalecem a ortodoxia. Nesse sentido, a máxima proferida pelo apóstolo Ezra Taft Benson em 1980 e repetida pelo setenta brasileiro Cláudio R. M. Costa em 2010 provê uma solução definitiva para qualquer contradição: “O profeta vivo é mais importante para nós do que um profeta morto”. Assim, Joseph Smith seria menos importante do que o atual presidente da Igreja.

Reescrevendo o passado

Característico, portanto, dessa ortodoxia é a tentativa de reconstruir o passado, reescrevendo passagens da história mórmon hoje consideradas embaraçosas para os padrões contemporâneos sud, algo que tem sido refletido na história oficial da Igreja e suas publicações. Durante uma conferência geral de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, em outubro de 2006, o apóstolo Boyd K. Packer mencionou a história da Igreja nos seguintes termos:

Não precisamos nos desculpar pela história da Igreja. Tomem, defendam a história da Igreja e o evangelho de Jesus Cristo (…).

A transcrição de seu discurso, no entanto, é lida da seguinte forma:

Defendam com firmeza a história da Igreja e não se envergonhem do evangelho de Jesus Cristo.[7]

A prática de editar discursos após conferências gerais não é nova. Esta mudança no discurso do Élder Packer, no entanto, é particularmente interessante pela supressão da frase “Não precisamos nos desculpar pela história da Igreja”, a qual é, na versão editada, transformada numa referência bíblica de não se envergonhar pelo evangelho. Tal ação sugere que, para os que editaram o discurso, a referência a não se desculpar pela história poderia instigar os membros a se perguntar quais seriam os fatos pelos quais surgiria a “tentação” de se desculpar.

Um misticismo sobrevivente?

Haverá ainda espaço para o misticismo em meio à ortodoxia vigente na Igreja SUD atual? Embora a doutrina e as práticas da Igreja contemporânea estejam marcadas pela ortodoxia, há que se reconhecer que ainda existe em algumas situações certa ênfase na experiência espiritual direta como, por exemplo, no incentivo que não-membros recebem de missionários para orar e descobrir a veracidade da mensagem que ouvem; no relato da Primeira Visão, tão enfatizado na obra missionária; também o templo oferece aos membros introspecção e simbolismo que incentivam a experiência mística.

Também é interessante notar o interesse de muitos membros por relatos não-oficiais de supostas experiências sobrenaturais como a bela história dos “passarinhos verdes”, disseminada em anos recentes pela internet e referida em discursos em muitas capelas ao redor do mundo. Tal interesse talvez constitua uma tentativa de compensar a relativa falta de misticismo na estrutura oficial da Igreja, em contraste com o misticismo que se encontra nas origens da experiência mórmon. O mesmo poderia ser a motivação subjacente para o interesse em ufologia, teorias sobre intraterrenos e outras formas alternativas de pensamento que flertam com o sobrenatural.

Misticismo e ortodoxia ainda permanecem em uma relação dinâmica e conflituosa dentro da Igreja SUD. Ainda que o apelo de saber a verdade por si, através de Espírito Santo, seja a porta a de entrada para muitos conversos à Igreja, a existência de uma ortodoxia que se manifesta em crenças e doutrinas e se perpetua através de uma distante hierarquia marca com cores fortes a religião atual sud, relegando a experiência mística a um plano muito individual e discreto dentro da experiência espiritual de cada membro. Talvez seja apenas na sutil e sincera busca individual que o misticismo que impulsionou a restauração do evangelho possa ainda ser sentido e experimentado.


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Referências

 
[1] QUINN, D. Michael. The Mormon hierarchy: origins of power. Salt Lake: Signature, 1994. p. 1.
[2] COLLIER, Fred C. The trinity. Salt Lake: Collier Publishing, 1997?, p. 01.
[3] EHAT, Andrew F. The Words of Joseph Smith p. 252
[4] SMITH, Joseph. History of the Church vol. 5, p. 215
[5] ALLRED, Janice. Do You Preach The Orthodox Religion? A Place For Theology In Mormon Community. Sunstone 15:2/23 (Jun 91)
[6] McCONKIE, Bruce R., Mormon Doctrine (Salt Lake City: Bookcraft, 1966), 550.
[7] http://www.lds.org/conference/talk/display/0,5232,49-1-646-31,00.html

13 comentários sobre “Misticismo e ortodoxia

  1. Antônio,

    Compartilho também, assim como você, da ideia de que o misticismo e a ortodoxia tem marcado a história da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Realmente também penso que na IJCSUD contemporânea, o misticismo tem sido relegado apenas à experiência individual de seus membros.

    Acredito que seria muito interessante se rastrear e historiar em qual momento da história SUD teria iniciado esta ortodoxia. Será que ocorreu uma ruptura? Ou será que a mudança de um misticismo familiar no início da Igreja com Joseph Smith foi sendo paulatinamente moldado e mudado por uma expressão religiosa ortodoxa? Quais são as explicações teológicas para tal mudança? Você sabe me dizer se existe alguma trabalho acadêmico ou alguma literatura que já tentou responder questões como estas ou mesmo parecidas com estas?

    Quanto à frase dita por Boyd K. Packer na Conferência Geral de outubro de 2006, também penso que a edição do que ele disse e a direferença naquilo que foi publicado na revista Liahona, é certamente uma clara intenção de se reescrever a história SUD, com objetivos de se “maquiar” aquilo que é feio no passado da Igreja. Isto não é típico apenas da IJCSUD, é uma prática utilizada também por países, instituições, sociedades e grupos sociais. Aliás, a História é sempre interpretação, uma representação; está sempre sendo reconstruída, reinterpretada.

    Não tinha conhecimento sobre a distinção muito clara que Joseph Smith fazia da experiência mística em relação à ortodoxia. Muito interessante a frase encenada naquela época no templo colocar a ortodoxia como algo totalmente oposto a oportunidade da experiência mística, de revelação individual, pessoal.

    Por fim, gostaria de dizer que este tema é algo que se pode realizar excelentes estudos e artigos como o seu, Antônio. Acredito que é um tema complexo e polêmico, porque muitos podem indagar da seguinte maneira: Será mesmo que a experiência mística está mesmo ausente do seio da Igreja, entre o profeta atual? Não teria o presidente (profeta) atual, Thomas Spencer Monson experiências místicas equivalentes às de Joseph Smith? Tais experiências seriam sagradas demais para serem divulgadas aos membros, porque os mesmos não estariam “preparados” para recebê-las?

  2. Olá, Jamil,

    é difícil datar certos processos. Mas o final do século XIX foi um momento decisivo para diversas mudanças na Igreja, em busca da americanização de Utah, incluindo o fim da ordem unida, da prática pública do casamento plural e das pretensões teocráticas. Nesse processo também se abandonou muito do aspecto místico do mormonismo.

    Algumas pessoas consideram a presidência de Heber J. Grant como um dos períodos mais marcantes para a consolidação desa mudança, marcado pelo perfil empresarial do presidente Grant.

    O texto que cito acima, da Janice Allred pode ser encontrado online e traz uma reflexão pessoal sobre a ortodoxia entre mórmons. Estudos sobre a correlação podem explicar muita coisa sobre como tal ortodoxia é implementada na igreja.

    Sobre o misticismo em Joseph Smith há também bons trabalhos, como o livro de D. Michael Quinn sobre a influência de tradições mágicas e esotéricas sobre o mormonismo. Early Mormonism and the magical world view.

    Fico devendo para você referências mais concretas. Mas com certeza você acaba de sugerir alguns tantos tópicos para serem explorados aqui 🙂

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