Igreja Mórmon Contra Trans

Com menos de um mês de administração do Presidente Donald Trump, A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias assinou e entregou um documento legal chamado amicus curiae à Suprema Corte do país em repúdio a uma diretriz do Ministério da Educação norte-americano que protege o direito de estudantes transgêneros a utilizar toaletes públicos designados ao gênero com o qual se identificam.

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A Igreja Mórmon, como é popularmente conhecida, anunciou na sexta-feira passada que se juntava a 6 outras igrejas para peticionar a Suprema Corte para bloquear a proteção federal dos direitos civis de pessoas transgêneros através dessa extensão da Lei Federal Título IX.

Ironicamente, a Igreja SUD recentemente sofreu enorme pressão pública justamente por violar essa mesma lei federal ao permitir a punição de meninas estudantes vítimas de estupro e violência sexual, e até contribuir com tais crimes ao promover impunidade. Eventualmente, a Igreja sucumbiu aos clamores e alterou as regras apenas o suficiente para acalmar a opinião pública.

Com relação à proteção de alunos transgêneros, a Igreja SUD havia permanecido cautelosamente quieta quando o então Presidente Barack Obama assinou o tal decreto no ano passado, limitando-se apenas a publicar uma nota desejando que oficiais públicos “criassem regras e leis que equilibram segurança, privacidade, e dignidade para todos.”

A situação política dos Estados Unidos encontra-se completamente diferente em 2017 comparado a 2016. O Partido Republicano, notoriamente hostil às causas de pessoas LGBT, passou a controlar ambas as  câmaras do Legislativo Federal (controlava apenas a câmara inferior), o Executivo, e após passar quase um ano bloqueando (imoralmente) a nomeação de um nono juiz para a Suprema Corte, poderá logo controlar o Judiciário.

É nesse contexto político onde a Igreja SUD passa, subitamente, de observadora passiva para instigadora de remoção de proteções de direitos civis de minorias LGBT. A Igreja havia tentado, infrutiferamente, a mesma tática no passado. Há dois anos atrás, a Igreja SUD assinou e entregou um similar documento de amicus curiae à Suprema Corte do país em repúdio à então recente legalização do casamento homoafetivo em âmbito nacional, peticionando a Corte para que efetivamente revogasse esse direito civil de famílias LGBT. [Leia texto completo abaixo]

Naquela empreitada a Igreja SUD também havia se unido a outras igrejas cujas pregações e militâncias homofóbicas são bem estabelecidas e notórias: Southern Baptist Convention, Lutheran Church-Missouri Synod, National Association of Evangelicals, Free Methodist Church – USA, e a International Pentecostal Holiness Church. Inclusive, muito de linguajar ecumênico é similar, se não idêntico, entre ambos documentos apresentados.

Neca Allgood, membro da Igreja SUD e mãe de um jovem transgênero, expressou sua reação de surpresa e confusão à posição da Igreja:

“A minha própria experiência pessoal é de que a igreja não tem uma política clara precisamente estabelecida sobre pessoas transgênero. Não me ficou claro porque a Igreja tomaria tal posição ao interpretar o Título IX. Não me parece uma questão de liberdade religiosa para mim.”

O que é uma pessoa transgênero?¹

Transgêneros são pessoas que têm uma identidade de gênero ou expressão de gênero diferente de seu sexo atribuído ou biológico. É também um termo abrangente: além de incluir pessoas cuja identidade de gênero é o oposto do sexo atribuído (homens trans e mulheres trans), pode incluir pessoas que não são exclusivamente masculinas ou femininas (pessoas que são genderqueer, por exemplo, bigênero, pangênero, genderfluid ou agênero). Outras definições de transgênero também incluem pessoas que pertencem a um terceiro gênero, ou conceituar pessoas transgênero como um terceiro gênero.

Ser transgênero é independente da orientação sexual: as pessoas transgêneros podem se identificar como heterossexuais, homossexuais, bissexuais, asexuais etc, ou podem considerar os rótulos convencionais de orientação sexual inadequados ou inaplicáveis. O termo transgênero também pode ser distinguido de intersexo, termo que descreve pessoas nascidas com características do sexo físico “que não se encaixa nas noções binárias típicas de corpos masculinos ou femininos”.

O grau em que os indivíduos se sentem genuínos, autênticos e confortáveis dentro de sua aparência externa e aceitam sua identidade genuína tem sido chamado de congruência transgênero. Muitas pessoas transgênero experimentam disforia de gênero e alguns procuram tratamentos médicos como terapia de reposição hormonal, cirurgia de redesignação sexual ou psicoterapia. Nem todos os transgêneros desejam esses tratamentos e alguns não podem se submeter a eles por razões financeiras ou médicas.

A maioria das pessoas transgêneros enfrenta discriminação no trabalho e ao tentar um trabalho, em acomodações públicas e cuidados de saúde. Os transgêneros não são, apesar de culturalmente inclusos sob a bandeira LGBT (literalmente completando-a), legalmente protegidos de discriminação em muitos países, mesmo onde há proteção para homossexuais.

Mórmons e LGBT

A Igreja SUD tem uma relação complexa com a comunidade LGBT.

Durante as décadas de 1980, 1990, e até 2008, a Igreja secretamente investiu centenas de milhões de dólares para prevenir a aquisição e para remover os direitos adquiridos de homossexuais. Em 2008, a Igreja se atirou na campanha para remover os direitos de gays  se casarem legalmente no estado da Califórnia, e a participação da Igreja SUD nessa eleição, tornada pública apesar de objeções da liderança da Igreja, resultou em protestos e muita mídia negativa. Além de investir em dezenas de milhões de dólares em campanhas publicitárias em 2009 para aliviar sua imagem pública, a Igreja decidiu aproximar-se da comunidade LGBT em Utah para lhes ajudar a passar leis antidiscriminação que há anos eram obstruídas por legisladores mórmons.

Contudo, em novembro de 2015 descobriu-se, também a contragosto da liderança mórmon, que a Igreja aumentou a institucionalização de sua discriminação contra famílias LGBT, inclusive crianças em lares LGBT. Desde então, houve um alarmante aumento na taxa de suicídios entre jovens SUD, particularmente afetados por essa política discriminatória, resultando inclusive na mobilização de mães SUD que organizaram para proteger seus filhos da própria Igreja.

No meio dessas controvérsias, o vice-governador do estado de Utah, Spencer Cox, proferiu um emocionado, sincero, e tocante discurso em honra às vítimas do atentado terrorista em Orlando, no qual pediu desculpas à comunidade LGBT pela homofobia do passado. Membro ativo da Igreja e do Partido Republicano, Cox admite ter crescido com noções e atitudes homofóbicas das quais ele se arrependeu e pelos quais pede sinceras desculpas, reconhecendo ter demorado para perceber a discriminação, o preconceito, e o ódio frequentemente imposto a esse grupo minoritário. Estranhamente, o jornal oficial da Igreja SUD escondeu o conteúdo do discurso e, contestado publicamente, distorceu sua omissão.

Mórmons e transgêneros

A política oficial da Igreja SUD para com seus membros transgêneros é ambígua e até hostil, dificultando o batismo para alguns casos, impossibilitando para outros, recusando ordenações para outros, e ameaçando com excomunhão ainda outros, discriminando contra todos.

Recentemente, vídeos privados da liderança apostólica da Igreja vazaram ao público, entre eles alguns que demonstravam bizarras exibições de homofobia (contra uma pessoa transgênero, coincidentemente) entre alguns Apóstolos. [Leia transcrição e tradução para o português do vídeo abaixo clicando aqui]

Porém nem todos mórmons são homofóbicos ou transfóbicos.

Neca Allgood, a mãe citada acima, relata como recebeu revelação pessoal em resposta a suas preces, e as preces de seu filho transgênero. Nascida e criada como uma menina chamada Grace (“Graça”) que, após anos de sofrimento e depressão, e tratamentos médicos, encontrou paz emocional e espiritual quando abraçou finalmente sua identidade de gênero masculina, mudou seu nome para Grayson, suas roupas para masculinas, e passou a frequentar aulas do Sacerdócio. A mãe reconta:

“A resposta às minhas orações era que eu deveria amá-lo e ajudá-lo a viver como um rapaz. Isso aumentou o meu testemunho e a minha compreensão do Espírito Santo.”

Mesmo que a Igreja ainda o proíba de ser ordenado ao Sacerdócio, e ainda insista em manter seu nome de registro no feminino, Grayson recebe total apoio de suas colegas correligionários, e de seus líderes eclesiásticos locais.

Apesar de todo investimento da Primeira Presidência e dos 12 Apóstolos para ilegalizar o casamento homoafetivo em estados distantes (sem sucesso), impedir sua legalização em Utah (sem sucesso), e silenciar membros da Igreja que apóiem sua legalização publicamente (sem sucesso), há um crescente côro de mórmons que decidiram que não há motivos racionais, éticos, ou morais para seguir discriminando contra uma classe inteira de pessoas por causa de sua orientação sexual ou mesmo sua identidade de gênero.

Quando a Igreja SUD iniciou sua cruzada legislativa e judicial anti-gays, há exatas três décadas e centenas de milhões de dólares atrás, o número mórmons que abraçavam seus correligionários LGBT era baixo. A despeito da demonstração de sinais de preocupação na liderança pela crescente aceitação de homossexuais e demais LGBT na sociedade em geral, e entre mórmons em específico, e a despeito das retaliações da liderança da Igreja contra membros que a contradigam, cada vez mais mórmons (famosos, como Jon Huntsman, ou o vice-governador, ou membros comuns) rejeitam a imposição do preconceito e da discriminação e abraçam seus irmãos e irmãs LGBT assim, como são.


Amicus Curiae d’A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias et al. junto à Suprema Corte dos Estados Unidos, abril de 2015:

 

19 comentários sobre “Igreja Mórmon Contra Trans

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